Na última semana de junho foram encerradas as últimas
manifestações de um levante de dois meses de luta
dos estudantes, funcionários e professores das universidades
do estado de São Paulo e de todo o Brasil. Foi o renascimento
do movimento estudantil de massa no Brasil, um movimento nacional
como não se via desde a década de 60: assembléias
com mais de 2000 pessoas, passeatas, ocupações,
barricadas, enfrentamentos com a segurança interna das
universidades e com a Polícia Militar.
Desde o início de maio, os estudantes das universidades
estaduais paulistas ocuparam reitorias, diretorias e edifícios
em 12 campi diferentes, e impulsionaram uma greve unificada que
durou mais de um mês. O movimento encontrou apoio de estudantes
em todo o país, e aconteceram mais 13 ocupações
em outros 11 estados. A ocupação da reitoria da
USP, a universidade mais importante do país, que durou
51 dias, foi o estopim de todo o processo e o centro do movimento.
A pauta central da greve estadual em São Paulo era a
derrubada dos decretos inconstitucionais do governador reacionário
José Serra, do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira).
O governador baixou, em seus primeiros meses de mandato, um conjunto
de 5 decretos que fere a autonomia universitária e aprofunda
a submissão das universidades paulistas (USP, UNESP e UNICAMP)
ao grande capital, além de aprofundar também a ruína
e a privatização do ensino técnico estadual.
Os decretos de Serra impedem o controle das verbas pelos reitores
das universidades, vetam a contratação de pessoal
e privilegiam a pesquisa voltada aos interesses das grandes empresas.
Como se não bastasse tudo isso, Serra ainda nomeou secretário
do ensino superior um conhecido político corrupto ligado
a uma grande rede de universidades privadas. Essas e várias
outras medidas causaram, desde os primeiros dias do ano, revolta
e indignação em toda a comunidade universitária.
Apesar desse ataque aberto do governador às universidades,
nos primeiros meses do ano o que se desenhava era apenas mais
uma típica greve salarial esvaziada das universidades paulistas,
controlada pelos burocratas das associações docentes
e dos sindicatos dos funcionários, muitos ainda ligados
ao PT (Partido dos Trabalhadores) de Lula.
A ocupação da reitoria da USP
A coisa começou a mudar quando, no dia 3 de maio, cerca
de 300 estudantes da Universidade de São Paulo ocuparam
a reitoria da universidade. Os estudantes tinham uma audiência
marcada com a reitora Suely Vilela para discutir os decretos,
mas ela simplesmente não compareceu. Quando eles foram
até o prédio da administração, a reitoria
se recusou a recebê-los e fechou as portas. Revoltados,
os estudantes arrombaram um portão de aço e, ainda
que sem imaginar, deram início à maior movimentação
estudantil do país dos últimos 20 ou 30 anos.
Naquele primeiro momento, os estudantes nem vislumbravam a
possibilidade de derrubar os decretos, e a ocupação
tinha uma pauta apenas assistencial e reformista; aumento das
vagas de moradia, reforma em alguns prédios, contratação
de professores. Porém, rapidamente o movimento cresceu,
ganhou uma dimensão estadual e até nacional, e assumiu
um caráter decididamente político.
Na semana seguinte à ocupação da reitoria,
os estudantes da USP fizeram grandes assembléias com 1500,
2000 estudantes presentes; o apoio à ocupação
e à construção da greve eram unânimes
nas assembléias e cresciam a cada dia nos cursos. As propostas
apresentadas pela reitoria, que ofereceu algumas migalhas para
que os estudantes desocupassem, foram sistematicamente rechaçadas
pela massa que mirava cada vez mais longe.
Na terceira semana de maio, chegavam à ocupação
da USP notícias de grandes assembléias e das primeiras
ocupações no interior do estado (Marília,
depois Rio Claro, Assis, Ilha Solteira, Presidente Prudente e
Franca). Os primeiros cursos começavam a entrar em greve
na USP e na UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas). Barricadas
de cadeiras se multiplicavam bloqueando os corredores e impedindo
a entrada nas salas de aulas. Os conflitos se radicalizavam. Funcionários
e professores também entraram em greve. Diretores-burocratas
escreviam cartas de repúdio e sobravam artigos nos jornais
denunciando a violência estudantil. Professores
de esquerda se escandalizavam com as ocupações
e com as barricadas, e exigiam punições aos estudantes
envolvidos.
No dia 24 de maio, os estudantes ocuparam a reitoria da UFAL
(Universidade Federal de Alagoas), a primeira das 13 ocupações
fora do estado de São Paulo (UFAL, UFSM, UFPE, UFMA, UFF,
UFGD, UFPR, UFRGS, UFRJ, UFES, UFBA, UFPA e UFJF). Na grande maioria
dessas ocupações de universidades federais, os estudantes
apoiavam a ocupação da USP e protestavam contra
a Reforma Universitária que está sendo empreendida
por Lula, e que tem o mesmo sentido dos decretos de Serra.
No dia 28, somavam-se à luta os funcionários
de 34 universidades federais, que entravam em greve contra Lula
por melhorias salariais.
Um ato unificado na capital paulista, no dia 31, reuniu mais
de 5 mil estudantes, funcionários e professores de todo
o estado na USP. Naquela manhã, temeroso em relação
ao ato que se direcionaria à sede do governo paulista,
José Serra publicou o Decreto Declaratório No 1,
uma explicação dos primeiros decretos,
dizendo que a autonomia universitária estava assegurada.
A medida não foi suficiente, e os grevistas saíram
da USP em marcha rumo ao Palácio. O governador acionou
então a tropa de choque da Polícia Militar, que
bloqueou a avenida que levaria os manifestantes ao Palácio.
Depois de cerca de 5 horas fechando uma das maiores avenidas da
cidade e tentando forçar a passagem contra a polícia,
o ato terminou voltando à USP.
No dia 6 de junho, o movimento da USP fez mais uma grande demonstração
de força. Diretores reacionários de faculdades e
institutos da USP articularam em conjunto com a reitora um ato
contra a ocupação e a greve. Em resposta, os estudantes
e funcionários chamaram, de um dia para o outro, um contra-ato
para medir forças com a reação. Apesar de
muitos funcionários terem sido coagidos a participar do
ato anti-greve por professores e diretores (que até suspenderam
o trabalho), o ato não reuniu mais de 100 professores reacionários
e funcionários conservadores. Ao mesmo tempo que os diretores
encurtavam o percurso da sua passeata esvaziada, mais de 800 estudantes
e funcionários se manifestavam favoráveis à
greve e defendiam a ocupação!
Depois de 3 semanas de ampliação incessante da
greve, estudantes de todo o estado de São Paulo realizaram
um encontro na reitoria ocupada da USP. Cerca de 700 estudantes
debateram durante uma tarde inteira e aprovaram um programa unificado
que significava um grande salto para a greve estadual. A partir
do questionamento dos ataques de Lula e Serra à educação,
o movimento superava as pautas meramente assistenciais-reformistas
e avançava para o questionamento do poder da burocracia
universitária, os agentes desses governos e do capital
no interior da própria universidade. Eis os 5 pontos de
pauta aprovados no encontro:
* contra os decretos de Serra;
* contra a Reforma Universitária de Lula;
* diretas já: eleições diretas para reitor,
para diretor de unidade e para todos os conselhos, sem necessidade
de titulação dos professores;
* aumento de verbas para a educação;
* contra as punições aos estudantes.
Outro salto fundamental do encontro estadual dos estudantes
foi a criação de um organismo de tipo soviético
para articular o movimento em todo o estado. A dimensão
das assembléias, que reuniam centenas e até milhares
de estudantes em cada campus, tanto quanto o obstáculo
da distância física, tornava urgente a criação
de uma forma de representação não-burocrática
para dirigir o movimento e tomar decisões comuns legítimas.
A partir do encontro, foi criado um Comando Estadual de Greve
formado por delegados eleitos nas assembléias de cada curso
de forma proporcional ao número de estudantes presentes.
A primeira reunião do Comando reuniu quase 80 delegados,
que representavam cerca de 4000 estudantes mobilizados em todo
o estado.
Completava-se um mês desde que a reitoria da USP fora
ocupada. O que havia começado como um ato isolado, semi-espontâneo
e sem uma perspectiva clara, já era o centro de um grande
movimento que pressionava o governo, ameaçava de fato os
decretos e colocava em xeque o poder da burocracia universitária.
O movimento ocupava todos os dias as capas dos principais jornais
do Brasil, crescia o apoio de toda a população,
e as ocupações se multiplicavam em todo o país.
A grande traição
Na semana seguinte ao encontro que indicava uma politização
crescente da greve e que avançava na construção
de uma direção clara do movimento estadual, a direção
da Associação dos Docentes da USP deu um grande
golpe. Baseando-se no decreto declaratório
editado por Serra em 31 de maio e nas suas conquistas salariais,
os professores saíram da greve no dia 11 de junho, alegando
que a luta estava ganha e abandonando os estudantes e funcionários.
Com a saída dos professores, cresceu a pressão
contrária à greve, e em muitos cursos da USP os
estudantes voltaram às aulas. Pouco depois, os professores
da UNICAMP também suspenderiam a greve, e voltariam a pressionar
os estudantes a desfazer as barricadas.
Esse refluxo da greve na USP deu mais espaço para os
diversos partidos de esquerda que desde as primeiras
semanas tentavam acabar com a ocupação. Não
só o Diretório Central dos Estudantes, controlado
pelo PT e por outros partidos burgueses, mas também os
socialistas do PSOL e os trotskistas do
morenista PSTU, usaram todos os recursos para liquidar o movimento.
Enquanto o DCE do PT se opunha abertamente à ocupação
desde o início, PSOL e PSTU chegaram a participar da ocupação,
porém defendendo desde o dia 10 de maio a desocupação
a partir da primeira proposta oferecida pela reitora.
Esses partidos conciliadores desempenharam um papel central
de bloqueio ao movimento, polarizando ao longo de todas essas
semanas as plenárias, reuniões e assembléias
em torno de uma única questão: desocupar ou não
a reitoria. As assembléias intermináveis se estendiam
até a madrugada e terminavam sempre da mesma forma: com
a derrota dos conciliadores, cada vez mais desmoralizados, porém
sem avançar em nenhum ponto do programa, sem construir
atos, sem fazer nada. Os estudantes comprometidos com a ocupação
gastavam toda sua energia para defendê-la contra os conciliadores,
e assim deixavam de ampliar o movimento.
Assim, com a clara sensação de que as assembléias
não estavam levando a lugar algum, os estudantes começaram
a deixar de freqüentá-las. Após a traição
dos professores, a saída de alguns cursos da greve só
fortaleceu os conciliadores, que começaram então
a esvaziar propositalmente a ocupação.
Apesar do relativo refluxo na USP, o movimento estadual continuava
em franca expansão, com novas ocupações na
UNESP Araraquara (13/06), na UNICAMP (18/06), na UNESP Ourinhos
(19/06) e na UNESP São Paulo (20/06). Enquanto as assembléias
na USP não reuniam mais de 500 estudantes, agora era a
UNICAMP que fazia assembléias com 1000 e até 1500
estudantes.
Serra manda tropa de choque às universidades
Na madrugada do dia 20 de junho, numa ação que
só encontra precedente nos anos sombrios da ditadura militar,
o governador José Serra mandou a tropa de choque desalojar
os estudantes que ocupavam a diretoria da UNESP Araraquara. Mais
de 100 estudantes foram algemados e levados à delegacia,
onde foram todos identificados e listados.
No dia seguinte, aconteceram atos em todo o estado em repúdio
à ação da Polícia Militar. Na USP,
a PM também tentou impedir uma manifestação,
mas os estudantes e funcionários resistiram e a polícia
recuou. Os estudantes da UNESP Franca, que iam desocupar a vice-diretoria
do campus, decidiram manter a ocupação em solidariedade
aos estudantes de Araraquara. Também na USP de Ribeirão
Preto os estudantes que cogitavam suspender a greve mudaram de
idéia e decidiram radicalizar e ocupar a prefeitura do
campus. Da mesma forma, em muitos campi da UNESP foram discutidas
ações radicalizadas para responder à entrada
do choque em Araraquara.
Resposta à repressão: mais traição
No entanto, apesar da absurda ação repressiva
da polícia, apesar das novas movimentações
que apareciam em todo o estado e que indicavam que o movimento
estava ganhando um novo impulso, os conciliadores do PSOL e do
PSTU, junto com a LER (pequeno grupo morenista dissidente do PSTU)
mantiveram o discurso do refluxo. Nas assembléias
daquela semana, em todo o estado eles tentaram acabar com a greve
e com as ocupações, rebaixar as pautas e encerrar
o movimento garantindo apenas que nenhum estudante seria punido
pelos reitores.
Na assembléia dos estudantes da USP no dia 21, com ajuda
da LER, o PT, o PSOL e o PSTU finalmente conseguiram fazer o que
tentavam desde o dia 10 de maio: acabar com a ocupação
da USP, e assim derrubar toda a luta no resto do estado.
A assembléia da USP foi interrompida por um grupo de
professores notáveis, combinados com o PSTU,
PSOL e LER, que trouxe em tom solene uma proposta da reitoria,
como se aquele fosse o último recurso antes da invasão
da tropa de choque. A proposta apresentada não diferia
em praticamente nada da proposta do dia 8 de maio, que já
havia sido inúmeras vezes recusada pelos estudantes como
migalhas. Nem mesmo a não-punição dos ocupantes
foi garantida.
Sem sequer discutir o movimento estadual e nacional, as novas
ocupações, a ação do pelotão
de choque em Araraquara e o grande ato que ocorrera naquele mesmo
dia na própria USP, o PSTU propôs que a assembléia
fosse direto à votação da última proposta
da reitoria. Como verdadeiros agentes da reitoria, os conciliadores
defenderam a proposta da reitoria como uma grande vitória
do movimento. Só convenceram a si mesmos da grande
vitória! Quando a proposta da reitoria venceu, só
os próprios militantes do PSOL e do PSTU comemoraram a
vitória, vitória, na verdade, da traição
ao movimento e ao sacrifício de quase 60 dias de luta.
Na verdade a ocupação foi vendida por migalhas,
e a pauta central do movimento, a derrubada dos decretos do governador,
foi totalmente esquecida. Defendendo a proposta da reitora, os
conciliadores ainda colocaram os funcionários contra a
parede, pressionando-os a aceitar no dia seguinte uma proposta
ainda pior, e assim sair da greve.
Derrubada a ocupação da USP, os conciliadores
finalmente conseguiram ser ouvidos no resto do estado. Na semana
seguinte, a USP saiu da greve. Cresceram as ameaças de
repressão dos reitores, e sem o apoio da USP as ocupações
foram caindo uma a uma. No dia 28, já não restava
nenhuma ocupação, e todos os cursos haviam saído
da greve.
Volta à normalidade?
Graças a esses conciliadores, após dois meses
de luta, greve e ocupações em todo o estado, as
universidades agora voltam ao controle da burocracia, que agradece
aos traidores pelo seu serviço.
Mas ao contrário do que diziam os defensores do recuo,
o fim das ocupações e da greve estadual não
trouxeram nenhuma garantia de que não haverá repressão.
Pelo contrário. Os estudantes não conquistaram nenhuma
garantia de que ações da tropa de choque na universidade,
como as que aconteceram em Araraquara e na USP, não vão
se repetir. Os reitores da USP, da UNESP e da UNICAMP têm
declarado que haverá punições contra os ocupantes,
inclusive na justiça. O controle da universidade volta
a uma ínfima minoria que vai voltar a reprimir arbitrariamente
a maioria dos estudantes: punições, processos, mais
câmeras filmadoras, mais segurança, mais Polícia
Militar e mais seguranças privados.
Os burocratas universitários e os traidores do movimento
estudantil respiram aliviados: agora está tudo bem!.
Mas por quanto tempo? Os estudantes que tomaram as universidades
de todo o estado e do país vão voltar à normalidade,
serem punidos e se calarem?
Certamente não! A luta apenas começou, marcando
o renascimento do movimento estudantil de massa no Brasil, que
unido aos trabalhadores e à juventude de todos os países
do mundo, avista novamente no horizonte um território livre
de burocratas e patrões, um território livre e socialista.