O artigo que segue baseia-se em um relato feito por Peter
Schwarz, membro da comissão editorial do Site Socialista
de Interligação Mundial e secretário do Comitê
Internacional da Quarta Internacional, em um encontro do Partido
da Igualdade Socialista (PSG) ocorrido em Berlim em 7 de janeiro
de 2012.
Nos últimos três anos a economia mundial passou
por sua pior crise desde os anos 1930. Particularmente a Europa
tem sido atingida a ponto de a sobrevivência do Euro e da
União Europeia estarem agora em xeque. Para se entender
o significado e as consequências desta crise, não
basta estudar suas manifestações econômicas
imediatas. Faz-se necessário estudar as relações
sociais que estão por trás dessas manifestações.
No geral, a crise é apresentada como resultado do superendividamento
de alguns países da União Europeia. Afirma-se que
suas dívidas chegaram a um nível em que não
podem mais ser pagas ou refinanciadas. Essa afirmação,
no entanto, não se sustenta se olharmos mais de perto.
Assim, o endividamento total da União Europeia (cerca de
80% do PIB) está consideravelmente abaixo daquele dos EUA
(100%), ou do Japão (220%). A dívida norte-americana
aumentou seriamente durante os últimos cinco anos, de menos
que 60% para mais que 100%. Porém, os EUA ainda são
capazes de financiar sua dívida sem grandes problemas.
Excetuando-se a Grécia (158%), mesmo os países
da EU mais afetados pela crise não estão endividados
a tal ponto: na Espanha, o nível da dívida nacional
é 68%; em Portugal, 102%; na Irlanda, 112%; e na Itália,
120%, aproximadamente o mesmo nível de quando se associou
à zona do Euro. As dívidas governamentais alemã
(82%), francesa (85%) e britânica (80%) estão no
mesmo nível dos países da Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômicos
(OCDE).
Deve haver outras causas para explicar o fato de a Europa ter
se tornado o alvo dos mercados financeiros mundiais. Para examinar
mais a fundo, é necessário levar em consideração
as mudanças sociais que ocorreram nas últimas três
décadas.
Polarização social
Após a Segunda Guerra Mundial, as classes dominantes
na Europa occidental foram forçadas a fazer concessões
sociais para preservar o sistema capitalista. A responsabilidade
do capitalismo em relação ao fascismo e à
guerra ainda estava fresca na memória da população
e era amplo o apoio ao socialismo. Mesmo no início dos
anos 1970, quando um movimento internacional grevista se desenvolveu
no impulso do movimento de direitos civis nos EUA, das revoltas
estudantis internacionais e do movimento contra a Guerra do Vietnã,
a classe trabalhadora conquistou aumentos salariais e outros direitos
consideráveis.
Em 1980, no entanto, a burguesia entrou em uma contraofensiva
que continua até os dias de hoje. Esta contraofensiva era
fortemente ligada às figuras de Ronald Reagan e Margaret
Thatcher, mas não era confinada aos EUA e Grã-Bretanha.
O presidente americano Ronald Reagan quebrou o sindicato de controladores
aéreos (PATCO) na época, enquanto a primeira-ministra
britânica Margaret Thatcher?direcionou seus ataques sobre
os mineiros britânicos. Ambos combinaram seus ataques à
classe trabalhadora com uma desregulação dos mercados
financeiros e um fortalecimento dos elementos mais parasitários
do capital financeiro, à custa da base industrial de seus
países.
O resultado foi um aumento da desigualdade social, que havia
diminuído consideravelmente no período do pós-guerra.
Este desenvolvimento se confirma por inúmeros estudos estatísticos.
De 1910 a 1970, a parcela da renda nacional que pertencia aos
super-ricos decresceu progressivamente por todo o mundo. Essa
tendência foi revertida dos anos 1970 em diante, sendo particularmente
visível nos EUA e Grã-Bretanha, onde a proporção
da renda total em mãos do 1% mais rico caiu de 20% em 1910
para 10% em 1950. Hoje a parcela possuída pelos super-ricos
voltou ao nível de 1910.
Durante os últimos 30 anos, a renda dos 20% mais pobres
nos EUA caiu 4%, enquanto a renda do 1% mais rico subiu 270%.
Durante o mesmo período, a parcela do setor financeiro
nos lucros de todo o setor corporativo subiu de 10% para 40%.
Isso demonstra que o aumento na desigualdade social estava intimamente
ligado com o aumento do setor financeiro.
Os números acima referem-se a renda. Em termos de riqueza,
a polarização social é ainda mais gritante.
Hoje 40% dos títulos globais estão nas mão
do 1% mais rico da população mundial, 51% com os
2% mais ricos e 85% com os 10% mais ricos. Por sua vez, os 50%
mais pobres da população mundial possuem menos de
1% da riqueza mundial.
O mesmo processo de polarização social ocorreu
no continente europeu, mas com um certo atraso. Este atraso se
expressa na proporção de gasto público do
PIB, que chega a cerca de 46% na zona do Euro, bem acima da média
de 41% da OCDE. Isso é motivo por que a Europa, não
bastando os cortes salariais e de direitos perpetrados nas décadas
recentes, ainda é vista como um paraíso do Estado
de bem-estar social pela aristocracia financeira internacional.
A liderança europeia nesse quesito é a França,
com uma parcela de 53% do PIB gasta pelo governo. Nos EUA, o número
correspondente é de apenas 39%, e no paraíso bancário
da Suíça, 33%. A proporção na Alemanha
é 43%, pouco acima da média da OCDE. Devido ao programa
Agenda 2010 introduzido pelo governo de Gerard Schröder,
essa porcentagem caiu 5% nos últimos dez anos.
Esses números mostram como a Europa está no meio
do fogo cruzado dos mercados financeiros internacionais. Para
os representantes do capital financeiro, as quantias gastas pelos
Estados europeus em pensões, educação, saúde
e outros serviços e estruturas públicos são
muito altos. Eles estão determinados a usar a crise para
reverter todas as conquistas sociais e direitos democráticos
obtidos pelo movimento dos trabalhadores ao longo de seis décadas.
A Grécia serve como campo de teste. Os representantes
das altas finanças estão ameaçando o país
de falência e impondo um pacote de austeridade após
o outro. Salários estão sendo cortados, serviços
públicos e direitos sociais estão sendo desmantelados.
Calcula-se que o padrão de vida de um cidadão grego
vai diminuir dentro de poucos anos 30%, 40% ou até mesmo
50%. Fora de um período de guerra, isso representa uma
queda sem precedentes.
Esta contrarrevolução social não pode
ser realizada por meios democráticos. A troika composta
pela União Europeia, o Fundo Monetário Internacional
e o Banco Central Europeu assumiu o controle do orçamento
grego e repôs o governo democraticamente eleito com um governo
ilegítimo de tecnocratas. A fim de intimidar a classe trabalhadora,
o partido fascista LAOS foi incluído neste governo.
Os líderes europeus decidiram transformer a Europa inteira
em uma zona de austeridade na linha do modelo da Grécia.
Este é o significado da decisão do reunião
de cúpula da EU de 8/9 de dezembro de 2011: implementar
um freio de dívida nas constituições de todos
os Estados-membros. Critérios de legalidade estão
sendo introduzidos para forçar governos europeus a implementar
políticas rígidas de economia, apesar de toda a
oposição popular.
Essa abordagem é herança da desastrosa política
implementada pelo governo Brüning na fase final da República
de Weimar. O político do partido de direita Zentrum, Heinrich
Brüning, assumiu o posto de chanceler alemão em 1930
em meio a uma crise econômica mundial e descarregou o peso
da crise sobre a classe trabalhadora. Ele baseou seu governo sobre
a autoridade do presidente, por um lado, e no apoio que recebeu
dos Social-Democratas (PSD), do outro. Brüning governou por
meio de decretos emergenciais e contava com o PSD para dar cobertura
a ele no Parlamento - como fazem os governos tecnocratas hoje
na Grécia e Itália.
O governo Brüning era extremamente instável e durou
apenas dois anos. Seu ímpeto por austeridade arruinou a
Alemanha economicamente e provocou uma séria luta entre
as classes. Devido à falência política do
Partido Comunista, os nacional-socialistas saíram como
os vitoriosos dessas lutas. Em 1932, Brüning foi sucedido
pelas ditaduras de curta vida dos generais Franz von Papen e Kurt
von Schleicher, antes de Adolf Hitler assumir o poder em 1933.
Hoje não são insuficientes os apelos à
elite dominante para retomar a consciência e desistir de
sua política devastadora de austeridade na linha de Brüning.
Toda a política do Partido de Esquerda Alemão toma
essa forma. O partido reivindica uma economia social de
mercado do período pós-guerra e proclama como
modelo de conduta Ludwig Erhard, o ministro da Economia do chanceler
conservador Konrad Adenauer.
Um retorno, porém, às políticas econômicas
do período pós-guerra é simplesmente tão
irreal quanto transformar uma pessoa de 80 anos em uma de 20 anos,
uma vez que isso é impossibilitado pelas mudanças
descritas acima. A elite financeira, que emergiu desta redistribuição
de renda e riqueza, domina todas as esferas da vida social e econômica
e está disposta a defender seus privilégios a qualquer
custo.