O camarada Nick Beams, secretário nacional do Partido
da Igualdade Socialista (Socialist Equality PartySEP) da
Austrália e membro da Comissão Editorial Internacional
do WSWS, ministrou duas palestras na escola de verão do
SEP em Ann Arbor, Michigan, agosto de 2007. A palestra lida com
alguns dos conflitos cruciais em torno da política econômica
da União soviética durante os anos da década
de 1920. Uma das motivações para as palestras era
responder às distorções avançadas
pelo acadêmico britânico Geoffrey Swain em seu livro
Trotsky, publicado em 2006. Mais material pode ser encontrado
em Leon Trotsky & the Post-Soviet School of Historical
Falsification, por David North.
A análise contida em Towards Capitalism or Socialism,
um dos frutos dos labores intelectuais de Trotsky produzidos enquanto
trabalhou na Comissão de Concessões e outros projetos
econômicos, é um dos mais focados e aprofundados
sumários de sua perspectiva sobre o desenvolvimento da
economia soviética. Suas idéias centrais são
completamente distorcidas por Geoffrey Swain.
De acordo com Swain, "Trotsky nunca se opôs à
idéia de ´socialismo em um só pais´
desde que a política econômica correta fosse seguida."
Ele estava portanto "feliz" em associar-se com a tarefa
do socialismo nacional e seu ensaio [Towards Capitalism or
Socialism] deixava "muito claro" que a União
soviética estava "no caminho para o socialismo."
[1]
Swain aqui deliberadamente confunde duas questões distintas
com o propósito de falsificar a posição de
Trotsky. Trotsky sempre insistiu na possibilidade e necessidade
da tomada de medidas para a construção socialista
na União soviéticaao contrário da caricatura
stalinista da teoria trotskista da Revolução Permanente,
segundo a qual esta teoria afirmava que nada podia ser feito até
que houvesse uma revolução no ocidente. A construção
econômica era tanto possível quanto necessária,
mas longe de construir o socialismo em um só país,
esse mesmo processo criava maiores problemas e desafios.
Em seu prefácio de 1922 ao livro 1905, Trotsky descreveu
sua posição numa passagem que seria citada repetidamente
por seus oponentes: "As contradições na posição
de um governo dos trabalhadores em um país atrasado, com
uma população majoritariamente camponesa, serão
resolvidas somente em um contexto internacional, na arena da revolução
proletária mundial."
As páginas de abertura de Towards Capitalism or Socialismexpunham
algumas dessas contradições conforme elas emergiam
na esfera da economia. A construção do socialismo,
Trotsky aponta, depende do crescimento das forças produtivas,
um processo que envolve engajar o interesse pessoal dos próprios
produtores na economia social.
No caso dos operários, um método era fazer seus
salários dependerem da produtividade de seu trabalho. Mas
o interesse pessoal do camponês vinha do fato de que ele
funcionava como um indivíduo privado produzindo para o
mercado. E aqui emergia a diferença crucial entre o operário
e o camponês. Enquanto um sistema de salários diferenciados
não criava diferenciação de classesum
trabalhador, mesmo que mais bem pago que outro, ainda é
um trabalhadoro enriquecimento do campesinato criava.
Isto é, uma diferenciação de classes começava
a se dar. Tal diferenciação não ocorre se
a economia camponesa não cresce. Mas o crescimento da produção
camponesaacima de tudo o aumento do suprimento de grãos
para as cidadesé vital para a expansão e desenvolvimento
da indústria, sobre a qual o desenvolvimento da economia
socialista depende. Por conta disso, a NEP foi um processo altamente
contraditório. Havia uma luta dentro da NEP entre tendências
capitalistas e socialistas. Era tanto uma competição
quanto uma colaboração entre essas tendências.
O único modo de contraposição ao processo
inevitável de diferenciação de classes nas
vilas era o desenvolvimento da indústria, provendo a base
para uma forma produtiva superior que poderia sobrepor a produção
camponesa individualuma agricultura coletivizada que utilizasse
de maquinaria industrial avançada.
A ala direita, com Zinoviev a encabeçando, insistia
que o camponês poderia avançar para o socialismo
através da edificação de cooperativas. Trotsky
não negava a significância das cooperativas mas insistia
que como forma de organização elas eram insuficientes.
Para avançar na reconstrução socialista da
agricultura era necessário industrializá-la.
A ocasião para Towards Capitalism or Socialismera
a publicação em 1925-26 das estatísticas
da economia por Gosplan. Trotsky tinha duas tarefas: refutar as
afirmações dos oponentes social-democratas e mencheviques
da revolução, de que os bolcheviques haviam arruinado
a economia e que o capitalismo estava retornando; e trazer à
tona os novos problemas que confrontavam a economia soviética
conforme ela alcançava os níveis de capacidade produtiva
industrial do ano de 1913 e embarcava em uma nova era, não
somente de restauração, mas de nova construção.
Trotsky apontou que os números de Gosplan relativos
ao controle estatal da economia possuíam uma significação
histórica. Eram a "primeira, embora ainda imperfeita,
planilha de balanço do primeiro capítulo do grande
experimento de transformação da sociedade burguesa
em sociedade socialista. E essa planilha de balanço é
inteiramente favorável ao socialismo." [3]
Nenhum país, ele continuou, havia sido tão arruinado
e exaurido por uma série de guerras quanto a União
soviética. Mas em contraste com os países capitalistas,
que haviam se recuperado através da assistência estrangeira,
a União soviética, o mais atrasado e exaurido, havia
se recuperado com base apenas em seus próprios esforços,
contra a oposição ativa de todo o mundo capitalista.
A que se atribuiria o mérito desse desdobramento formidável?
"É devido à abolição completa
do latifúndio feudal e da propriedade burguesa, é
somente devido à nacionalização de todos
os principais meios de produção, devido aos métodos
estatais socialistas, e à mobilização e distribuição
dos recursos necessários, que a União soviética
se ergueu das cinzas e está agora trilhando forçosamente
seu caminho na direção do sistema de economia mundial
como um fator de crescente importância." [4]
Para Trotsky, porém, a tarefa não era simplesmente
observar as conquistas da economia soviética, mas plotar
o percurso adiante pela identificação de novos problemas
e perigosresultantes dos próprios avanços
da economia soviéticae apontar para os meios de superá-los.
A questão crucial, ele insistia, não era apenas
a relação entre Estado e indústria privada
dentro da União soviéticapor mais decisivo
que isso fossemas a "bem mais importante" questão
da relação entre a economia soviética e a
economia mundial como um todo. Conforme a economia soviética
entrava no mercado global, não aumentavam apenas os prospectos,
mas também os perigos.
Isto porque a superioridade fundamental dos Estados capitalistas
estava no baixo preço de suas mercadoriasa expressão
de mercado do fato de que tinham uma maior produtividade do trabalho.
E era a produtividade do trabalho que determinaria, em última
análise, se seria vitorioso o capitalismo ou o socialismo.
"O equilíbrio dinâmico da economia soviética
não deveria de forma alguma ser considerado como o equilíbrio
de uma unidade fechada e auto-suficiente," ele escreveu.
"Pelo contrário, conforme passar o tempo, nossa economia
interna será mais e mais mantida pelas conquistas de nossas
importações e exportações. Essa circunstância
merece ser exposta em sua conclusão lógica, com
todas as inferências esclarecidas. Quanto mais somos levados
ao sistema da divisão internacional do trabalho, mais aberta
e diretamente elementos de nossa economia doméstica como
preço e qualidade de nossos produtos dependerão
dos elementos correspondentes no mercado mundial." [5]
Um novo medidor precisava ser encontrado para aferir o progresso
da economia soviética. Até então, o medidor
havia sido o grau em que a indústria, agricultura, transporte
e outros setores da economia haviam retornado aos níveis
de 1913, o último ano anterior à guerra. Com esses
níveis atingidos ou quase, novos critérios se faziam
necessárioscoeficientes que pareassem a indústria
soviética e o mercado mundial, comparando preços
e quantidades. Dessa forma seria possível identificar fraquezas
na economia e determinar um plano racional para importações
e exportações. Isso tinha claras implicações
também no setor de investimentos. Seria possível
determinar as vantagens e desvantagens relativas de importar certas
classes de maquinaria e equipamento ou manufaturá-las domesticamente.
Claramente, nas áreas onde os coeficientes Soviéticos
distavam bastante dos padrões mundiais, seria mais vantajoso
importar, diferentemente dos casos onde os coeficientes se aproximavam
da referência internacional.
Com a economia soviética alcançando ou se aproximando
dos patamares produtivos do pré-guerra, a relação
com o mercado mundial passou também por uma mudança.
No período do Comunismo de Guerra, lembramos, Trotsky havia
insistido na necessidade da Rússia soviética confiar
em suas próprias capacidades de modo a evitar que os imperialistas
garantissem acessos significativos na propriedade nacionalizada
em troca de "uma libra de chá e uma lata de leite
condensado." Mas a recuperação da economia
soviética impunha que novas oportunidades, assim como novos
perigos, se abriam no horizonte.
Anteriormente o mercado mundial havia sido considerado do ponto
de vista dos perigos econômicos associados a ele. Ninguém
foi mais insistente que Trotsky no reconhecimento desses perigos,
que precisavam ser combatidos com as medidas do "protecionismo
socialista" corporificado no monopólio do comércio
exterior. Mas o mercado capitalista mundial não continha
somente grandes perigos. Também abria novas oportunidades
para a economia soviética.
"Permite que garantamos mais e mais acesso às conquistas
da tecnologia, às suas realizações mais complexas.
Enquanto o mercado mundial, ao adicionar um sistema econômico
socialista a suas outras unidades, conjura certos perigos para
esse sistema socialista, também confere ao Estado socialista
poderosos antídotos para esses perigos, assumido que o
Estado regula corretamente seus intercursos econômicos.
Se usarmos o mercado mundial para nossos próprios fins
da maneira correta, seremos capazes de acelerar consideravelmente
o processo de alteração dos coeficientes comparativos
em favor do socialismo." [6]
Contrastam com essa análise os pronunciamentos de Stalin
no décimo-quarto congresso do Partido Comunista apenas
quatro meses depois, em dezembro de 1925. De acordo com Stalin,
se fazia necessário "conduzir nossa construção
econômica de tal modo que ela converta a URSS de um país
que importa máquinas e equipamento em um país que
produz máquinas e equipamentos. ... Desse modo a URSS ...
se tornará uma unidade econômica auto-suficiente
que constrói o socialismo." [7]
Em oposição a essa perspectiva nacionalista,
Trotsky insistiu que era necessário ter consideração
para o complexo sistema de interrelações, existente
antes da guerra, entre a economia da Rússia capitalista
e o mercado mundial. Quase dois terços do inventário
das fábricas havia sido importado do exterior e essa condição
permanecia virtualmente inalterada.
Isso implicava, Trotsky continuou, que não seria vantajoso
produzir nada mais que talvez dois quintos ou no máximo
metade das novas máquinas necessárias para o próximo
período. Qualquer salto brusco na produção
de nova maquinaria iria interferir adversamente nas relações
entre os vários ramos da economia e retardar de forma generalizada
a taxa de desenvolvimento econômico. Tal retardamento seria
muito mais perigoso para a economia soviética do que a
importação de máquinas estrangeiras ou commoditiesestrangeiras
em geral. [8]
Retornemos ao argumento de Swain, que afirmava que Trotsky
estava "perfeitamente feliz" quanto à concepção
de que era possível construir o socialismo em um só
país.
A importância das estatísticas de Gosplan, Trotsky
insistiu, era que elas mostravam a predominância das tendências
socialistas na economia em detrimento das tendências capitalistas
com base no avanço geral das forças produtivas.
Mas esse era apenas o ponto de partida.
"Se fosse nossa intenção (ou melhor, se
fosse possível para nós) permanecermos um Estado
economicamente isolado para sempre, poderíamos considerar
essa questão resolvida em princípio. O perigo nos
ameaçaria então apenas no campo político,
ou no evento de uma penetração militar do nosso
isolamento do mundo exterior. Mas agora que adentramos o campo
da divisão universal do trabalho, economicamente falando,
e nos tornamos assim objetos das leis que controlam o mercado
mundial, a cooperação e disputa entre as tendências
capitalista e socialista na economia adquirem proporções
muito maiores, envolvendo maiores e maiores dificuldades."
[9]
E lá se vão as falsificações de
Swain. Podemos apenas concordar com a conclusão tirada
por Isaac Deutscher, de que Trotsky refutou os preceitos fundamentais
da teoria de Stalin do socialismo em um só país
mesmo antes dela ser imposta como política oficial.
Nós chegamos agora ao importantíssimo fundamento
da análise de Trotsky, uma análise com implicações
de grande alcance e repercussão não apenas para
a luta histórica contra o stalinismo e sua doutrina de
socialismo em um só país, mas para a luta contemporânea
pelo socialismo internacional em que estamos engajados.
Essa é a concepção de Trotsky da significação
objetiva da divisão internacional do trabalho. Aqui os
argumentos que partem da esfera da economia são fundamentalmente
baseados nas mesmas concepções que ele desenvolveu
em sua análise da cultura, e na sua oposição
à teoria da cultura proletária.
No artigo Culture and Socialism, publicado em 1927,
Trotsky explica que a sociedade histórica se desenvolveu
como uma organização para a exploração
do homem pelo homem. Conseqüentemente, a cultura serviu à
organização de classes da sociedade, e uma sociedade
de exploradores deu sustentação a uma cultura de
exploradores. Isso significa que somos contra toda a cultura do
passado?
"Existe aqui, de fato, uma profunda contradição.
Tudo o que foi conquistado, criado e construído pelos esforços
do homem, tudo o que serve para aperfeiçoar o poder do
homem, é cultura. Mas como que não é uma
questão de homem individual mas de homem social, como a
cultura é um fenômeno sócio-histórico
em sua própria essência, e como a sociedade histórica
foi e continua a ser a sociedade de classes, descobre-se a cultura
como o instrumento básico da opressão de classe.
Marx disse: ´As idéias dominantes de uma época
são essencialmente as idéias da classe dominante
daquela época.´ Isso também se aplica à
cultura como um todo. E ainda assim dizemos para a classe trabalhadora:
dominem toda a cultura do passado, ou vocês não construirão
o socialismo. Como isso pode ser entendido?"
"Muitos esbarram nessa contradição, e esbarram
nela tão frequentemente porque se aproximam da compreensão
da sociedade de classes superficialmente, em parte idealisticamente,
esquecendo que ela é fundamentalmente a organização
da produção. Toda sociedade de classes foi formada
sobre a base de modos definidos de luta com a natureza, e esses
modos mudaram de acordo com o desenvolvimento da tecnologia. Qual
é a base das basesa organização de
classes da sociedade ou suas forças produtivas? Sem dúvida
alguma, as forças produtivas. É precisamente sobre
elas, em um certo nível de seu desenvolvimento, que as
classes são formadas e formadas novamente. Nas forças
produtivas se expressa a habilidade econômica materializada
da humanidade, nossa habilidade histórica de assegurar
nossa existência. Desse fundamento dinâmico surgem
classes, que pelas suas interrelações determinam
o caráter da cultura." [10]
Foi a partir desse amplo quadro histórico que Trotsky
considerou o desenvolvimento da divisão internacional do
trabalho, regulada pela operação do mercado mundial,
e sua relação com a questão da construção
socialista na União Soviética.
A divisão internacional do trabalho progrediu através
da economia capitalista, mas foi por um mecanismo histórico
e social que a produtividade do trabalho foi aumentada e as forças
produtivas foram desenvolvidas.
Em outras palavras, ao considerar-se a divisão internacional
do trabalho, surge claramente a mesma questão que se levantou
da esfera cultural: qual é a base das bases, a organização
de classes da sociedade ou o desenvolvimento das forças
produtivas? Isto é, a divisão internacional do trabalho,
através da qual as forças produtivas da humanidade
foram desenvolvidas, era uma categoria social mais fundamental
que a organização de classes da sociedade. Isso
significava que o desenvolvimento de medidas socialistas na economia
soviética precisava ser conduzido em sintonia com a divisão
internacional do trabalho, e desse modo as medidas econômicas
avançadas na União Soviética prefigurariam
a economia socialista internacional.
Em um artigo publicado em primeiro de agosto de 1925, Trotsky
explicou que, em última análise, os processos econômicos
prevaleceriam sobre as barreiras políticas. "A divisão
mundial do trabalho e as trocas que dela derivam não são
abaladas pelo fato de que um sistema socialista prevalece em um
país enquanto um sistema capitalista prevalece nos outros.
... O fato de que os trabalhadores e camponeses em nosso país
sustentam o poder estatal e são donos de trustes e associações
de modo algum chateia a divisão internacional do trabalho,
que resulta [não da ideologia mas] das diferenças
nas circunstâncias naturais e na história nacional."
[11]
Isso significava que a perspectiva stalinista, de manter a
União Soviética economicamente isolada até
que a revolução socialista tivesse se espalhado
internacionalmente, era falsa até o núcleo. A possibilidade
dos futuros Estados Unidos da Europa, e de fato o futuro da economia
socialista mundial, não eram simplesmente uma questão
de perspectiva política. Na verdade, a própria perspectiva
política era uma expressão de processos econômicos
objetivos. Estava, por assim dizer, alojada na própria
divisão internacional do trabalho. O socialismo encontra
justificação histórica na medida em que pode
trazer o desenvolvimento das forças produtivasum
desenvolvimento que se dá com base na divisão internacional
do trabalho.
Trotsky manifestou essas idéias em um número
de ocasiões durante o período seguinte. Em 1927
ele escreveu: "Um crescimento devidamente regulado das exportações
e importações com os países capitalistas
prepara os elementos para a troca futura de bens e produtos [que
irá prevalecer] quando o proletariado europeu assumir o
poder e controlar a produção." Também
a construção do socialismo não se dava em
estágios distintos separados por um "abismo."
A mesma idéia se expressa de outra maneira na crítica
do esquema de programa para o Sexto Congresso do Comintern em
1928. A perspectiva de Stalin e Bukharin de "socialismo em
um só país" vislumbrava a economia socialista
mundial como construção baseada em uma série
de economias socialistas nacionais, "segundo o modo como
as crianças erguem estruturas com blocos pré-fábricados."
"Concretamente, a economia socialista mundial não
será de modo algum uma soma de economias socialistas nacionais.
Pode tomar forma em seu aspecto fundamental somente sobre o chão
da divisão mundial do trabalho que foi criada por todo
o período precedente de desenvolvimento do capitalismo.
Em sua essência, será constituída e construída
não segundo a edificação do ´socialismo
total´ em um número de países individuais,
mas através das tormentas e tempestades da revolução
proletária mundial, que exigirá várias décadas.
O sucesso econômico dos primeiros países da ditadura
do proletariado será medido não pelo grau de aproximação
com um ´socialismo total´ auto-suficiente, mas pela
estabilidade política da ditadura em si e pelos sucessos
conquistados em preparação dos elementos da futura
economia socialista mundial." [12]
As circunstâncias que circundam o início da batalha
em torno do socialismo em um só país dentro do Partido
Comunista forneceram material para conjecturas quanto aos motivos
e ações de Trotsky naquele momento. No prefácio
da edição russa de Revolução Permanente
ele deixou claro que a batalha contra o socialismo em um só
país envolvia todas as questões centrais da perspectiva
revolucionária. A alternativa de revolução
permanente ou socialismo em um só país, ele escreveu,
"abarca ao mesmo tempo os problemas internos da União
Soviética, os prospectos da revolução no
oriente, e por fim, o destino da Internacional Comunista como
um todo." [13]
As conjecturas em torno das ações de Trotsky
têm lugar porque no décimo-quarto congresso do partido,
realizado em dezembro de 1925, quando o conflito primeiro surgiu,
a batalha foi iniciada por Zinoviev e Kamenev, enquanto Trotsky
se manteve em silêncio. O triunvirato de Zinoviev, Kamenev
e Stalin, que havia se constituído para bloquear e eventualmente
excluir Trotsky de seu papel dirigente, agora se despedaçava
em função da mais fundamental questão de
perspectiva. Ainda assim, a batalha inicial não envolveu
Trotsky.
Comentando esses eventos, E.H. Carr escreveu: "A cisão
do triunvirato no décimo-quarto congresso do partido deixou
para trás um enigma desconcertante: a posição
de Trotsky. A hostilidade contra Trotsky era o principal fundamento
sobre o qual o triunvirato havia se apoiado." No congresso,
porém, a posição de Trotsky havia parecido
ser a mais rígida, Carr continuou. "Apesar de ser
um delegado no congresso, ele se sentou em desdém ao longo
dos procedimentos, enquanto as duas novas facções
se despedaçavam, sem se levantar para falar." [14]
Deutscher, observando que o conflito entre os integrantes do
triunvirato havia cozinhado por um ano, comentou: "Isso,
poderia ter aparentado, era o realinhamento pelo qual Trotsky
havia esperado, a oportunidade para agir. Ainda assim, por todo
aquele período ele permaneceu distante, silencioso quanto
aos problemas em torno dos quais o partido se dividia, como se
alheio a eles." [15]
Geoffrey Swain, porém, tem uma resposta pronta em mãos.
Apesar de todas as frustrações trazidas pela "interferência"
do Politburo na tomada de decisões econômicas, se
fazia progresso "e ele estava preparado para trabalhar com
Stalin para que [o progresso] fosse até o fim." [16]
E por que entraria em conflito, dado que, de acordo com Swain,
ele concordava com Stalin que o socialismo poderia ser construído
em um só país, bastando que as políticas
corretas fossem implementadas?
O silêncio de Trotsky e sua aparente passividade diante
da cisão do triunvirato é apenas um "mistério"
se for considerado do ponto de vista de uma luta pelo poder político.
Desse ponto de vista pareceria óbvio iniciar um curso de
ação pensado para tomar a maior vantagem possível
de uma cisão nas fileiras dos oponentes. Mas ao ser visto
da perspectiva correta, isto é, do ponto de vista dos problemas
de programa e perspectiva com os quais Trotsky estava preocupado,
o significado dos eventos que circundam o décimo-quarto
congresso pode ser prontamente assimilado.
A doutrina do socialismo em um só país tinha
suas origens num artigo publicado por Stalin em dezembro de 1924,
dirigido contra a teoria de Trotsky da revolução
permanente e publicado sob o título "A Revolução
de Outubro e as Táticas dos Comunistas Russos."
"De acordo com Lenin," Stalin escreveu, "a revolução
retira suas forças acima de tudo dos trabalhadores e camponeses
da própria Rússia. De acordo com Trotsky as forças
indispensáveis podem ser encontradas somente ´na
arena de uma revolução mundial do proletariado´.
E se a revolução mundial está destinada a
ser tardia? Haverá uma faísca de esperança
para nossa revolução? O camarada Trotsky não
nos dá qualquer esperança ... De acordo com esse
plano, nossa revolução tem apenas um prospecto:
o de vegetar em suas próprias contradições
e ter suas raízes apodrecidas enquanto espera pela revolução
mundial." [17]
Apenas 10 meses antes, em seu Fundamentos do Leninismo,
Stalin resumiu as posições de Lenin da seguinte
maneira: "A tomada do poder da burguesia e o estabelecimento
de um governo proletário em um país não garante
ainda a vitória completa do socialismo. A principal tarefa
do socialismoa organização da produção
socialistaainda está adiante. Pode essa tarefa ser
realizada, pode a vitória final do socialismo em um só
país ser obtida, sem os esforços conjuntos do proletariado
de diversos países avançados? Não, isso é
impossível. Para derrubar a burguesia os esforços
de um país são suficientesa história
de nossa revolução testemunha em favor disso. Para
a vitória final do Socialismo, para a organização
da produção socialista, os esforços de um
país, particularmente de um país campesino como
a Rússia, são insuficientes. Para isso os esforços
dos proletários de diversos países avançados
são necessários. Esses, de um modo geral, são
os traços característicos da teoria Leninista da
revolução proletária."
Porém, ao final do ano o livro foi reeditado com a afirmação
de que o "proletariado pode e precisa construir a sociedade
socialista em um só país," seguida pela asserção
de que isso constituía a "teoria Leninista da revolução
proletária."
A significação da nova doutrina, porém,
não foi imediatamente aparente. E.H. Carr observou que
ela não estava presente na resolução esboçada
por Zinoviev condenando Trotsky, em janeiro de 1925. Stalin não
mencionou-a em seu discurso naquela ocasião, e ninguém
pensou em invocá-la nas disputas em torno da política
agrária que ocorreram no inverno de 1924-25. "Sua
aparição original no artigo de dezembro de 1924
foi seguida por um silêncio de três meses, durante
o qual a teoria do socialismo em um só país parece
ter sido ignorada por líderes do partido e publicistas,
incluindo seu autor." [18]
Foi Bukharin que assumiu e desenvolveu a doutrina, argumentando
na primavera de 1925 que a contraparte do reconhecimento da estabilização
do capitalismo precisava ser o reconhecimento da possibilidade
de construção do socialismo em um só país.
A estabilização do capitalismo no ocidente, ele
sustentava, "em certo grau influencia a maneira como consideramos
a questão de nossa posição econômica
interna." Se é admitido que o capitalismo na Europa
ocidental está se recuperando, ele continuou, "não
procede que isso implica no fim de nossa esperança de construir
o socialismo? Em outras palavras, podemos ter sucesso sem a ajuda
direta de um proletariado europeu vitorioso? Isso se reduz a uma
questão da possibilidade de construção do
socialismo em um só país." Era possível
construir o socialismo pois os recursos seriam obtidos através
de uma aplicação mais vigorosa do trabalho. [19]
À época do décimo-quarto congresso em
dezembro de 1925 a utilidade política da nova doutrina
como uma arma para derrotar a oposição se tornava
cada vez mais aparente. O socialismo em um só país
se tornaria a doutrina nacionalista da burocracia em ascensão
conforme ela consolidava sua posição na batalha
contra o programa e a perspectiva do internacionalismo socialista
e o marxismo.
Quando o conflito entre os membros do triunvirato explodiu
no chão do décimo-quarto congresso, Trotsky foi
surpreendido. Como depois disse à Comissão Dewey:
"A expectativa de um conflito entre Stalin, Zinoviev e Kamenev
era insuspeita no Congresso. Durante o Congresso eu esperei incerto,
porque toda a situação mudou. Era absolutamente
obscuro para mim." [20]
Havendo sido tomado de surpresa, ele buscou se orientar sobre
o significado do conflito e as tendências que as facções
opostas representavam. Em 14 de dezembro, fez uma nota que delineava
o método pelo qual procederia.
"Nem classes nem partidos," escreveu, "podem
ser julgados pelo que podem dizer sobre si mesmos, ou pelos slogans
que levantam em qualquer dado momento. Isso se aplica totalmente
aos agrupamentos de um partido político também.
Slogans devem ser tomados não em isolamento, mas em relação
aos seus entornos, e especialmente em relação com
a história de um agrupamento em particular, suas tradições,
a seleção de material humano dentro do agrupamento,
etc." [21]
No caso do agrupamento Zinoviev-Kamenev não estava de
modo algum claro qual era o significado da oposição
ao bloco Stalin-Bukharin. Em primeiro lugar, Zinoviev havia estado
na linha de frente das denúncias contra Trotsky, que segundo
ele, subestimava o campesinato. O conflito, que havia emergido
às vésperas do congresso, entre a organização
de Leningrado, encabeçada por Zinoviev, e o comitê
central indubitavelmente tinha suas raízes sociais nas
relações entre o proletariado e o campesinato, Trosky
apontou.
Mas nenhuma proposta específica havia sido avançada
ou qualquer plataforma estabelecida clarificando os princípios
básicos elaborados. Além disso, havia uma "extraordinária
dificuldade" em descrever a natureza precisa das tendências
de classe em movimento nas diferentes facções por
causa do "papel absolutamente sem precedentes" do aparato
do partido. Isso havia levado a uma situação onde
a organização de Leningrado dirigia uma resolução,
virtualmente unânime, contra o comitê central, enquanto
a organização de Moscousem sequer uma única
abstençãoadotava uma resolução
contra Leningrado.
Trotsky não podia interpretar superficialmente a recém-encontrada
oposição de Zinoviev a Stalin e sua doutrina de
socialismo em um só país. Afinal de contas, não
estava claro qual era a real posição de Zinoviev.
Em abril de 1925 ele havia dito a conferência do partido
que Lenin acreditava que a "vitória total" do
socialismo era possível em "país como o nosso,"
mas que enquanto um revolucionário internacional, Lenin
"jamais deixou de frisar o fato de que sem uma revolução
internacional nossa vitória é instável e
incompleta." Assim, de acordo com a lógica torta de
Zinoviev, uma "total" mas "incompleta" e "instável"
vitória do socialismo era possível em um só
país.
A composição da nova oposição era
outra complicação. Sokolnikov, um dos líderes
dos advogados da "ortodoxia financeira," estava entre
os líderes da oposição em Leningrado. Sua
oposição ao "socialismo em um só país"
viria da direita e não da esquerda. Antes ele havia sido
o advogado do enfraquecimento do monopólio do comércio
exteriorcaracterizado por Trotsky como "protecionismo
socialista"em nome do controle mais apertado das finanças
governamentais. "Ele era e continua a ser," Trotsky
escreveu, "o teórico do desarmamento econômico
do proletariado em relação ao campo." Na ausência
de qualquer perspectiva clara, bem elaborada por parte de Zinoviev,
o programa de Sokolnikov teria se tornado a plataforma da nova
oposição.
Esse perigo era reforçado pelo fato de que "Kamenev,
Zinoviev e outros ainda consideram a indústria uma parte
componente do capitalismo de Estado." Em 1921, no início
da NEP, Trotsky observou, Lenin caracterizou o regime econômico
geral como capitalismo de Estado. Mas isso foi em uma época
em que a indústria estava num estado de paralisia e em
que era antecipado que o desenvolvimento econômico prosseguiria
pela via das companhias mistas, algumas delas atraindo investimentos
estrangeiros. De fato, isso não ocorreu. O desenvolvimento
ocorreu de maneira mais favorável e a indústria
estatal acabou na posição decisiva enquanto as companhias
mistas e concessões tomaram uma parcela insignificante
do mercado. Os líderes da nova oposição,
porém, continuaram a usar o termo.
Eles sustentavam esse ponto de vista em comum dois ou
três anos atrás, e o avançaram de uma maneira
especialmente persistente durante a discussão de 1923-24,
Trotsky escreveu. A essência desse ponto de vista
é que a indústria é uma das partes subordinadas
de um sistema que inclui a economia campesina, finanças,
cooperativas, empresas privadas reguladas pelo Estado, etc. Todos
esses processos econômicos, regulados e controlados pelo
Estado, constituem o sistema do capitalismo de Estado, que supostamente
levará ao socialismo através de uma série
de estágios. Nesse esquema, o papel protagonístico
da indústria desaparece completamente. O princípio
do planejamento é quase que inteiramente posto de lado
em função da regulação de créditos
e finanças [o programa de Sokolnikov], que assumiu o papel
de um intermediário entre a economia campesina e a indústria
estatal, considerando-as duas partes em um processo judiciário.
[22]
A essência da questão está no desenvolvimento
da indústria. Apenas desse modo mudanças fundamentais
poderiam ser feitas no campo. A regulação do crédito
e finanças não incluía qualquer princípio
de planejamento e não poderia conter qualquer garantia
de um avanço em direção ao socialismo.
Havia um outro aspecto na necessidade do planejamento e da
industrializaçãoo regime dentro do partido.
Trotsky não considerou, diferentemente de Zinoviev, que
o problema central era Stalin enquanto um indivíduo. Stalin
e o regime burocrático que ele liderava, com base no aparato
do partido, eram, em última análise, uma expressão
do atraso econômico e cultural da União Soviética
e da posição empobrecida da classe trabalhadora.
Assim o burocratismo poderia ser superado somente através
de um programa de desenvolvimento econômico e cultural,
do qual o planejamento e a industrialização eram
os componentes-chave.
Apesar de suas preocupações sobre as perspectivas
da liderança em Leningrado e a natureza do regime que dirigiam,
Trotsky concluiu que o surgimento dessa oposição
de fato representava, de uma maneira distorcida, a crescente oposição
da classe trabalhadora contra as contínuas concessões
ao campesinato e os retrocessos impostos pela liderança
central, e que parte da hostilidade a Leningrado refletia a oposição
do campo contra a cidade.
Foram considerações desse tipo que levaram Trotsky
a formar uma oposição conjunta com Kamenev e Zinoviev.
Nas sessões de plenária do Comitê Central
em abril de 1926 Trotsky propôs um plano de cinco anos com
o objetivo de superar o baixo suprimento de bens industriais até
1931, incluindo impostos agrícolas mais progressivos e
alocação de capital maior para a indústria.
No mesmo encontro Kamenev avançou a noção
de que a indústria estava agora atrasada em relação
ao campo e que essa deficiência precisava ser superada.
Essa convergência de opinião levou à formação
da Oposição Unificada.
Nos 18 meses seguintes Trotsky engajaria numa luta política
tão intensa que em comparação seus conflitos
contra os membros do triunvirato eram pequenos embates.
Deutscher captura o escopo da batalha: Incansável,
implacável, esticando cada nervo, pondo em marcha poderes
inigualáveis de argumentação e persuasão,
passando por uma gama excepcionalmente ampla de idéias
e políticas, e enfim apoiado por uma larga seção,
provavelmente a maioria, da Velha Guarda que até o momento
o havia desprezado, ele fez um esforço prodigioso para
acordar o partido bolchevique e influenciar ainda mais o curso
da revolução. Como um lutador ele pode aparecer
para a posteridade não menor nos anos de 1926-27 do que
era em 1917talvez maior. [23]
Continua.
[traduzido por movimentonn.org]
Notas:
1. Geoffrey Swain, Trotsky, Longman, 2006, p. 159.
2. Leon Trotsky, 1905, Penguin, 1973, p. 8.
3. Leon Trotsky Towards Capitalism or Socialism, in:
Leon Trotsky, The Challenge of the Left Opposition 1923-25,
Pathfinder Press, 1980, p. 343.
4. Towards Capitalism or Socialism, p. 343.
5. Towards Capitalism or Socialism, p. 347.
6. Towards Capitalism or Socialism, p. 358.
7. Richard Day, Leon Trotsky and the Politics of Economic Isolation,
Cambridge University Press, 2004, pp. 120-21.
8. Towards Capitalism or Socialism, p. 359.
9. Towards Capitalism or Socialism, p. 369.
10. Leon Trotsky, Culture and Socialism, in: Problems
of Everyday Life, Pathfinder Press, 1973, p. 228.
11. Day p. 130.
12. Leon Trotsky, The Third International After Lenin,
New Park, 1974, pp. 42-43.
13. Leon Trotsky, The Permanent Revolution, New Park,
1975, p. 11.
14. E.H. Carr, Socialism in One Country, Volume 2, Penguin,
1970, pp. ?182-83.
15. Isaac Deutscher, Trotsky, Volume 2, Oxford University
Press, 1970 p. 248.
16. Swain, p. 163.
17. Robert Daniels, The Conscience of the Revolution,
Harvard University Press, 1965, p. 251.
18. Carr, p. 43.
19. Day, p. 103.
20. The Case of Leon Trotsky, Merit, New York, 1969,
p. 322-23.
21. Trotsky, Challenge of the Left Opposition 1923-25,
p. 390.
22. Trotsky, Challenge of the Left Opposition 1923-25,
p. 391.