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Ernest Mandel, 1923-1995: Uma avaliação crítica de seu papel na história da Quarta Internacional

Segunda Parte: A Quarta Internacional depois de Trostsky

Por David North
23 de outubro de 2008

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Este texto foi publicado no WSWS.org, originalmente em inglês, em 23 de outubro de 1995. Trata-se da segunda parte, de quatro, que serão publicadas nas próximas semanas. Ernest Mandel, dirigente de longa data do Secretariado Unificado, morreu no dia 20 de julho de 1995. Com sua morte, saiu de cena um homem que cumpriu um papel de destaque na história da IV Internacional durante o pós-guerra.

Segunda Guerra mundial e o assassinato de Trotsky

Leon Trotsky foi assassinado em Coyoacan, nos arredores da Cidade do México, no dia 20 de agosto de 1940 por Ramon Mercader, um agente da GPU stalinista. Como Trotsky havia previsto, Stalin optou por assassiná-lo num momento em que as atenções internacionais estariam voltadas a outra questão. Nos meses que precederam o assassinato, os exércitos de Hitler haviam varrido a Europa ocidental com sucesso. A França rendera-se. A batalha da Grã-Bretanha havia acabado de começar.

Durante os anos finais de sua vida, Trotsky produziu ensaios políticos tão geniais quanto qualquer um dos que escrevera anteriormente. Sua atenção estava voltada para as grandes questões de perspectiva histórica que haviam sido postas pela erupção da segunda guerra mundial. Ele entendia a guerra como produto tanto das contradições insolúveis do capitalismo quanto da crise da direção do proletariado. Somente o desenvolvimento bem sucedido da revolução socialista européia poderia prevenir a guerra. Mas as burocracias stalinistas e social-democratas haviam desmoralizado e conduzido a classe trabalhadora à derrota. A vitória de Franco na Espanha, pela qual o regime stalinista foi o principal culpado, havia acabado com o último obstáculo possível à erupção da guerra. A humanidade estava prestes a pagar um preço assombroso pela derrota da revolução socialista.

Uma geração antes, a Primeira Guerra Mundial colocou em movimento a cadeia de eventos que levou à Revolução Bolchevique. Trotsky estava convencido de que a Segunda Guerra Mundial também produziria condições para a revolução. Porém, ele advertiu seus seguidores de que o resultado dependeria do desenvolvimento da direção política da classe trabalhadora. A deflagração da guerra expusera a evidente contradição entre o estágio bastante avançado da crise objetiva do capitalismo e a falta de preparação dos fatores subjetivos da consciência de classe e direção política. Essa contradição não seria superada facilmente. Haveria, muito provavelmente, mais derrotas pela frente. Mas os quadros da Quarta Internacional, aconselhou Trotsky, deveriam preparar-se para uma luta que poderia se estender por décadas. Independente do resultado imediato deste ou daquele episódio da luta de classes, a solução do “problema histórico” dependeria do estabelecimento da autoridade política do partido revolucionário na classe trabalhadora.

“A questão do ritmo e dos intervalos de tempo é de enorme importância, mas isso não altera nem a perspectiva histórica nem a direção de nossa política. A conclusão é simples: é necessário levar adiante a tarefa de educar e organizar a vanguarda proletária com energia decuplicada. É precisamente aqui que se encontra a tarefa da Quarta Internacional.” (Writings of Leon Trotsky 1939-40 [New York: Pathfinder, 1973], p. 218).

As primeiras atividades políticas de Ernest Mandel

Ernest Mandel nasceu na Alemanha em 1923, mas mudou-se ainda criança para a Antuérpia, na Bélgica. Ele não fez parte da geração que se juntou ao movimento trotskista nos anos 30 e que foi ativa nas lutas que levaram à formação da Quarta Internacional. Ele era 12 anos mais jovem do que Michel Pablo, com quem Mandel viria a associar-se, e quase uma década mais jovem do que Gerry Healy. Porém, não há dúvidas de que ele demonstrou sua coragem pessoal enquanto ainda era bem jovem.

Mandel juntou-se ao movimento trotskista durante os primeiros anos da Guerra e começou a atuar no movimento anti-nazista de resistência. O movimento trotskista europeu sofreu fortemente a perseguição combinada dos fascistas e stalinistas. Muitos de seus membros dirigentes, incluindo o brilhante Abram Leon, que aparentemente cumpriu um papel importante na formação política de Mandel, perderam suas vidas. Mandel quase perdeu a sua, mas por sorte sobreviveu à deportação a um campo de execução e retornou à Bélgica após a queda do regime nazista.

A Quarta Internacional enfrentava problemas políticos sérios ao final da guerra. Como Trotsky havia previsto, ocorreu uma radicalização política tremenda de amplas camadas da classe trabalhadora européia. No entanto, apesar das traições de antes da guerra, dentre as quais incluía-se o pacto de não-agressão entre Stalin e Hitler, o regime soviético e os partidos stalinistas saíram da guerra com mais autoridade política, graças ao papel exercido pelo Exército Vermelho na derrota do Terceiro Reich e à participação dos partidos comunistas nos movimentos anti-nazistas de resistência. Os stalinistas usaram a influência que adquiriram para recuperar a autoridade política da desesperada e enfraquecida burguesia da Europa ocidental. Na França e Itália os stalinistas desarmaram os movimentos de resistência que estavam sob seu controle e entraram em governos de coalizão com a burguesia.

A Quarta Internacional não tinha forças suficientes para superar a influência dos partidos stalinistas, cujo número de membros cresceu aos milhares ao final da Segunda Guerra. Diante destas dificuldades, o movimento trotskista buscou analisar as questões complexas surgidas com o fim da guerra e defender uma perspectiva revolucionária. Ernest Mandel tornou-se uma figura proeminente dentro da Quarta Internacional nesta época. Sob o nome de “Germain”, que serviu por vários anos como sua alcunha política, ele contribuiu para o jornal político da Quarta Internacional com inúmeros artigos, nos quais analisava o papel contra-revolucionário desempenhado pelos stalinistas no restabelecimento da dominação burguesa na Europa.

“O primeiro objetivo imediato da burguesia era o ‘retorno à normalidade’”, escreveu Mandel em abril de 1946. “Para atingi-lo era necessário que as massas deixassem as ruas e retornassem a suas casas. A proclamação de um estado de sítio por si só não era suficiente. Era também necessário que as direções do movimento, principalmente as direções stalinistas, convocassem as massas cada vez mais a restabelecer a ‘ordem’. As evidências disto foram postas: sem as direções da FTP na França, com a Front de L’Independence na Bélgica, a Force de L’Interieur na Holanda, sem os líderes do Comite de Liberation Nationale na Itália, a burguesia não teria conseguido atingir uma estabilidade temporária e teria que ter enfrentado guerras civis em todos os lugares” (Fourth International, setembro de 1946, p. 271).

A volta da estabilização do capitalismo tornada possível pelos stalinistas levou ao surgimento de uma tendência na Quarta Internacional, liderada por Felix Morrow e apoiada por Max Schachtman, que argumentou ser inútil avançar com um programa socialista revolucionário na Europa. A Quarta Internacional, insistia Morrow, deveria apresentar-se como a maior campeã da democracia burguesa. Somente sobre essas bases seria possível ser ouvido pelas massas de trabalhadores europeus, que estavam sob influência de ilusões democráticas. Mandel opôs-se veementemente a esta tentativa de liquidar o programa socialista da Quarta Internacional. Como escreveu em julho de 1946:

“Um leninista, ao abordar a questão do uso de palavras de ordem democráticas, procede a partir da estimativa geral que faz da época em que vivemos, assim como do programa da revolução socialista que parte desta. A questão tática envolve somente o caminho em que as massas devem ser conduzidas para aceitar este programa... e não como ocupá-las de outra forma enquanto não ‘compreendem’ este programa! Para o leninista, reivindicações democráticas são vistas apenas como instrumentos para a mobilização das massas trabalhadoras” (Fourth International, novembro de 1946, p. 346).

Respondendo ao argumento de que a classe trabalhadora européia não poderia compreender o programa socialista (o que era, por sinal, uma proposição um tanto duvidosa em 1946), Mandel argumentava que era falso “permitir a si mesmo ser hipnotizado por um estado mental transitório das massas (como fazem os oportunistas), e basear sua linha política não na tarefa de ajudar as massas a elevarem-se à altura de suas tarefas históricas, mas na necessidade de rebaixar o programa ao nível das camadas mais atrasadas das massas” (ibid., p. 347).

O papel do stalinismo

Mas, de longe, o problema mais difícil enfrentado pela Quarta Internacional após a Segunda Guerra foram as implicações programáticas das transformações sociais, econômicas e políticas produzidas pela ocupação soviética do leste europeu. A Quarta Internacional havia insistido, desde sua criação, no papel contra-revolucionário do stalinismo. Porém, a vitória dos resistentes na Iugoslávia sob a liderança do Partido Comunista e a ocupação do leste europeu pelo exército soviético foram seguidas pela ampla nacionalização das indústrias nesses países. A nacionalização de grandes setores dessas economias significou que os países ocupados pelo Exército Soviético tinham sido convertidos em estados operários? E se tal transformação fora realizada sob a égide do exército soviético e dos Partidos Comunistas locais, isso não colocava em dúvida a inequívoca caracterização do stalinismo como contra-revolucionário?

Havia outras questões cruciais, colocadas pelos acontecimentos no leste europeu. Se o caráter de classe do estado podia ser transformado em um país meramente através da intervenção do exército soviético, complementada por políticas econômicas implementadas burocraticamente de cima para baixo por oficiais stalinistas, sem qualquer movimento de massas verdadeiramente independente da classe trabalhadora dirigida por seu próprio partido político, isso não colocaria em dúvida a necessidade histórica da Quarta Internacional? Se um Estado Operário podia ser estabelecido sem uma revolução operária de massas ou sem órgãos identificáveis de poder político, como emergiram os sovietes na Rússia em 1917, e através dos quais o proletariado exerceu seu domínio de classe, isso não desafiaria a concepção marxista mais básica da revolução socialista como a expressão política mais avançada da atividade de emancipação da classe trabalhadora? Seria a atividade revolucionária independente e com consciência de classe dos trabalhadores realmente necessária para atingir o socialismo? De quais outras maneiras, e através da direção e atividades de qual outra força social poderia ser realizado o socialismo?

Certamente, essas questões não foram todas levantadas de uma só vez. As implicações programáticas de longo alcance dos eventos no leste europeu iriam emergir no curso de diversos anos, e a maneira como a Quarta Internacional respondeu a elas viria a ter um efeito profundo em seu desenvolvimento.

As transformações do pós-guerra no leste europeu haviam sido antecipadas por um memorável artigo que Trotsky escrevera em 1939, pouco depois da explosão da Segunda Guerra Mundial. A invasão soviética da Polônia, levada a cabo de acordo com os protocolos secretos do pacto Stalin-Hitler de agosto de 1939, foram seguidos pela expropriação das propriedades burguesas na parte oriental do país, tomado pelo Kremlin. Se consideradas isoladamente, essas expropriações tinham certo caráter progressista. No entanto, estas ações teriam que ser examinadas dentro de uma perspectiva mais ampla, internacional.

“Para conseguir a possibilidade de ocupar a Polônia através de uma aliança militar com Hitler”, escreveu Trotsky, “o Kremlin já traiu e continua a trair as massas na URSS e no restante do mundo, e trouxe assim a completa desorganização das fileiras de sua própria Internacional Comunista. O critério político primordial para nós não é a transformação das relações de propriedade nesta ou naquela outra região, por mais importantes que estes eventos possam ser em si mesmos, e sim a mudança na consciência e organização do proletariado mundial, a elevação de sua capacidade de defender antigas conquistas e conquistar novas. Apenas deste, e somente deste ponto decisivo, as políticas de Moscou, tomadas como um todo, retêm completamente seu caráter reacionário e permanecem sendo o principal obstáculo no caminho à revolução socialista” In Defense of Marxism [London: New Park Publications, 1971], p. 23).

Nos resultados imediatos após a guerra, a direção da Quarta Internacional opôs-se firmemente as insinuações de que as medidas econômicas tomadas pelos stalinistas na Europa central exigiam uma revisão do programa trotskista. Longe de aumentarem a influência socialista, advertiu o jornal Fourth International em novembro de 1946, os métodos stalinistas haviam dividido as massas do leste europeu.

“As inexprimíveis traições, os levantes de massas por eles sufocados, seu terror contra-revolucionário, seus saques e depredações, tudo isso desacredita aos olhos dos trabalhadores a própria palavra, a própria idéia do comunismo. Quão pesadas são as nacionalizações no leste europeu na balança diante dos crimes de Stalin contra a classe trabalhadora? As aventuras contra-revolucionárias stalinistas no leste europeu, ao invés de colocar a aura de uma missão progressista na história, tornaram ainda mais urgente a necessidade de massacrar este diabo sangrento, e preveni-lo de causar mais estrago do que já causou à classe trabalhadora e à sua luta por emancipação.

“A cegueira do stalinismo, seu caráter impronunciavelmente reacionário e sua falência histórica são expostos claramente, sobretudo no leste europeu. Em nome do roubo miserável, em nome da pequena mudança de reparações — completamente sem significância em relação à salvação das necessidades econômicas da URSS — o Kremlin levantou ao seu redor um muro de ódio ao redor da Europa oriental e do mundo. Em nome do controle militar sobre os miseráveis e falidos Bálcãs, o Kremlin deu suporte aos imperialistas anglo-americanos para esmagar a revolução e apoiarem o capitalismo decadente.” (Fourth International, novembro de 1946, p. 345).

Enquanto são lidas estas linhas, escritas a quase meio-século, não é possível não ficar surpreso com sua extraordinária visão do futuro. Essas linhas são um testamento dos poderes de análise do marxismo em geral e da capacidade de antecipação da perspectiva trotskista em particular. Mesmo quando o stalinismo se encontrava no auge de seu poder, o movimento trotskista previu o desastre a que as políticas do Kremlin conduziriam.

Mandel, apesar de ainda ter ao redor de 20 anos, contribuiu fortemente na luta contra tendências que atribuíram ao stalinismo qualquer tipo de missão histórica. Ele advertiu contra pular prematuramente à conclusão de que a nacionalização das propriedades significava que Estados Operários haviam sido estabelecidos no leste europeu. A “metodologia marxista em seu todo”, escreveu Mandel, era inconciliável com a teoria “absurda” de que “um Estado Operário está sendo instalado em um país onde ainda não houve uma revolução proletária”. (Fourth International, fevereiro de 1947, p. 48).

Era errado, insistiu ele, basear a definição do caráter de classe de um dado Estado simplesmente no fato das nacionalizações. Ao examinar em detalhes os eventos que haviam ocorrido na Polônia, Mandel explicou:

“A combinação das condições históricas era tal, que a burocracia stalinista, ao adentrar o país, não achava mais quaisquer proprietários para os inúmeros empreendimentos industriais e comerciais. A burguesia polonesa, que sempre fora tão pobre de capital, era incapaz, mesmo no passado, de reunir capital suficiente sobre a base de acumulação privada para poder criar uma indústria de larga-escala. O problema dos territórios anexados, com suas inúmeras minas e fábricas, não conseguiria, de qualquer forma, encontrar saída por fora da administração do Estado — mesmo sem a ocupação soviética ou um levante revolucionário, estas indústrias teriam sido nacionalizadas” (ibid., p. 49).

Opondo-se a todas as sugestões de que as conseqüências da guerra haviam demonstrado, de certa forma, o caráter progressista da burocracia do kremlin e colocavam em dúvida a perspectiva do movimento trotskista, os documentos programáticos de Mandel e de outros eram impregnados de confiança na capacidade da Quarta Internacional de conquistar a direção da classe trabalhadora. Como declarava o manifesto do Segundo Congresso da Quarta Internacional:

“Para arrancarmos do stalinismo a direção da classe trabalhadora, é necessário começar de onde a Social-Democracia e o Partido Comunista partiram. É necessário educar uma nova geração de quadros revolucionários trabalhadores, que, através de numerosas experiências sucessivas de luta, irão enraizar-se com sucesso na classe trabalhadora e ganhar seu respeito e confiança. É necessário construir um partido verdadeiro, através do qual poderão chegar a todos os trabalhadores, ganhando respeito e confiança. É necessário construir um verdadeiro partido que, através de atividades mais amplas, irá aparecer eventualmente em todos os movimentos de massas como verdadeiras alternativas a essas direções falidas” (ibid., p. 49).

Continua