Este texto foi publicado no WSWS.org, originalmente em inglês,
em 23 de outubro de 1995. Trata-se da segunda parte, de quatro,
que serão publicadas nas próximas semanas. Ernest
Mandel, dirigente de longa data do Secretariado Unificado, morreu
no dia 20 de julho de 1995. Com sua morte, saiu de cena um homem
que cumpriu um papel de destaque na história da IV Internacional
durante o pós-guerra.
Segunda Guerra mundial e o assassinato de Trotsky
Leon Trotsky foi assassinado em Coyoacan, nos arredores da
Cidade do México, no dia 20 de agosto de 1940 por Ramon
Mercader, um agente da GPU stalinista. Como Trotsky havia previsto,
Stalin optou por assassiná-lo num momento em que as atenções
internacionais estariam voltadas a outra questão. Nos meses
que precederam o assassinato, os exércitos de Hitler haviam
varrido a Europa ocidental com sucesso. A França rendera-se.
A batalha da Grã-Bretanha havia acabado de começar.
Durante os anos finais de sua vida, Trotsky produziu ensaios
políticos tão geniais quanto qualquer um dos que
escrevera anteriormente. Sua atenção estava voltada
para as grandes questões de perspectiva histórica
que haviam sido postas pela erupção da segunda guerra
mundial. Ele entendia a guerra como produto tanto das contradições
insolúveis do capitalismo quanto da crise da direção
do proletariado. Somente o desenvolvimento bem sucedido da revolução
socialista européia poderia prevenir a guerra. Mas as burocracias
stalinistas e social-democratas haviam desmoralizado e conduzido
a classe trabalhadora à derrota. A vitória de Franco
na Espanha, pela qual o regime stalinista foi o principal culpado,
havia acabado com o último obstáculo possível
à erupção da guerra. A humanidade estava
prestes a pagar um preço assombroso pela derrota da revolução
socialista.
Uma geração antes, a Primeira Guerra Mundial
colocou em movimento a cadeia de eventos que levou à Revolução
Bolchevique. Trotsky estava convencido de que a Segunda Guerra
Mundial também produziria condições para
a revolução. Porém, ele advertiu seus seguidores
de que o resultado dependeria do desenvolvimento da direção
política da classe trabalhadora. A deflagração
da guerra expusera a evidente contradição entre
o estágio bastante avançado da crise objetiva do
capitalismo e a falta de preparação dos fatores
subjetivos da consciência de classe e direção
política. Essa contradição não seria
superada facilmente. Haveria, muito provavelmente, mais derrotas
pela frente. Mas os quadros da Quarta Internacional, aconselhou
Trotsky, deveriam preparar-se para uma luta que poderia se estender
por décadas. Independente do resultado imediato deste ou
daquele episódio da luta de classes, a solução
do problema histórico dependeria do estabelecimento
da autoridade política do partido revolucionário
na classe trabalhadora.
A questão do ritmo e dos intervalos de tempo é
de enorme importância, mas isso não altera nem a
perspectiva histórica nem a direção de nossa
política. A conclusão é simples: é
necessário levar adiante a tarefa de educar e organizar
a vanguarda proletária com energia decuplicada. É
precisamente aqui que se encontra a tarefa da Quarta Internacional.
(Writings of Leon Trotsky 1939-40 [New York: Pathfinder, 1973],
p. 218).
As primeiras atividades políticas de
Ernest Mandel
Ernest Mandel nasceu na Alemanha em 1923, mas mudou-se ainda
criança para a Antuérpia, na Bélgica. Ele
não fez parte da geração que se juntou ao
movimento trotskista nos anos 30 e que foi ativa nas lutas que
levaram à formação da Quarta Internacional.
Ele era 12 anos mais jovem do que Michel Pablo, com quem Mandel
viria a associar-se, e quase uma década mais jovem do que
Gerry Healy. Porém, não há dúvidas
de que ele demonstrou sua coragem pessoal enquanto ainda era bem
jovem.
Mandel juntou-se ao movimento trotskista durante os primeiros
anos da Guerra e começou a atuar no movimento anti-nazista
de resistência. O movimento trotskista europeu sofreu fortemente
a perseguição combinada dos fascistas e stalinistas.
Muitos de seus membros dirigentes, incluindo o brilhante Abram
Leon, que aparentemente cumpriu um papel importante na formação
política de Mandel, perderam suas vidas. Mandel quase perdeu
a sua, mas por sorte sobreviveu à deportação
a um campo de execução e retornou à Bélgica
após a queda do regime nazista.
A Quarta Internacional enfrentava problemas políticos
sérios ao final da guerra. Como Trotsky havia previsto,
ocorreu uma radicalização política tremenda
de amplas camadas da classe trabalhadora européia. No entanto,
apesar das traições de antes da guerra, dentre as
quais incluía-se o pacto de não-agressão
entre Stalin e Hitler, o regime soviético e os partidos
stalinistas saíram da guerra com mais autoridade política,
graças ao papel exercido pelo Exército Vermelho
na derrota do Terceiro Reich e à participação
dos partidos comunistas nos movimentos anti-nazistas de resistência.
Os stalinistas usaram a influência que adquiriram para recuperar
a autoridade política da desesperada e enfraquecida burguesia
da Europa ocidental. Na França e Itália os stalinistas
desarmaram os movimentos de resistência que estavam sob
seu controle e entraram em governos de coalizão com a burguesia.
A Quarta Internacional não tinha forças suficientes
para superar a influência dos partidos stalinistas, cujo
número de membros cresceu aos milhares ao final da Segunda
Guerra. Diante destas dificuldades, o movimento trotskista buscou
analisar as questões complexas surgidas com o fim da guerra
e defender uma perspectiva revolucionária. Ernest Mandel
tornou-se uma figura proeminente dentro da Quarta Internacional
nesta época. Sob o nome de Germain, que serviu
por vários anos como sua alcunha política, ele contribuiu
para o jornal político da Quarta Internacional com inúmeros
artigos, nos quais analisava o papel contra-revolucionário
desempenhado pelos stalinistas no restabelecimento da dominação
burguesa na Europa.
O primeiro objetivo imediato da burguesia era o retorno
à normalidade, escreveu Mandel em abril de
1946. Para atingi-lo era necessário que as massas
deixassem as ruas e retornassem a suas casas. A proclamação
de um estado de sítio por si só não era suficiente.
Era também necessário que as direções
do movimento, principalmente as direções stalinistas,
convocassem as massas cada vez mais a restabelecer a ordem.
As evidências disto foram postas: sem as direções
da FTP na França, com a Front de LIndependence na
Bélgica, a Force de LInterieur na Holanda, sem os
líderes do Comite de Liberation Nationale na Itália,
a burguesia não teria conseguido atingir uma estabilidade
temporária e teria que ter enfrentado guerras civis em
todos os lugares (Fourth International, setembro de 1946,
p. 271).
A volta da estabilização do capitalismo tornada
possível pelos stalinistas levou ao surgimento de uma tendência
na Quarta Internacional, liderada por Felix Morrow e apoiada por
Max Schachtman, que argumentou ser inútil avançar
com um programa socialista revolucionário na Europa. A
Quarta Internacional, insistia Morrow, deveria apresentar-se como
a maior campeã da democracia burguesa. Somente sobre essas
bases seria possível ser ouvido pelas massas de trabalhadores
europeus, que estavam sob influência de ilusões democráticas.
Mandel opôs-se veementemente a esta tentativa de liquidar
o programa socialista da Quarta Internacional. Como escreveu em
julho de 1946:
Um leninista, ao abordar a questão do uso de palavras
de ordem democráticas, procede a partir da estimativa geral
que faz da época em que vivemos, assim como do programa
da revolução socialista que parte desta. A questão
tática envolve somente o caminho em que as massas devem
ser conduzidas para aceitar este programa... e não como
ocupá-las de outra forma enquanto não compreendem
este programa! Para o leninista, reivindicações
democráticas são vistas apenas como instrumentos
para a mobilização das massas trabalhadoras
(Fourth International, novembro de 1946, p. 346).
Respondendo ao argumento de que a classe trabalhadora européia
não poderia compreender o programa socialista (o que era,
por sinal, uma proposição um tanto duvidosa em 1946),
Mandel argumentava que era falso permitir a si mesmo ser
hipnotizado por um estado mental transitório das massas
(como fazem os oportunistas), e basear sua linha política
não na tarefa de ajudar as massas a elevarem-se à
altura de suas tarefas históricas, mas na necessidade de
rebaixar o programa ao nível das camadas mais atrasadas
das massas (ibid., p. 347).
O papel do stalinismo
Mas, de longe, o problema mais difícil enfrentado pela
Quarta Internacional após a Segunda Guerra foram as implicações
programáticas das transformações sociais,
econômicas e políticas produzidas pela ocupação
soviética do leste europeu. A Quarta Internacional havia
insistido, desde sua criação, no papel contra-revolucionário
do stalinismo. Porém, a vitória dos resistentes
na Iugoslávia sob a liderança do Partido Comunista
e a ocupação do leste europeu pelo exército
soviético foram seguidas pela ampla nacionalização
das indústrias nesses países. A nacionalização
de grandes setores dessas economias significou que os países
ocupados pelo Exército Soviético tinham sido convertidos
em estados operários? E se tal transformação
fora realizada sob a égide do exército soviético
e dos Partidos Comunistas locais, isso não colocava em
dúvida a inequívoca caracterização
do stalinismo como contra-revolucionário?
Havia outras questões cruciais, colocadas pelos acontecimentos
no leste europeu. Se o caráter de classe do estado podia
ser transformado em um país meramente através da
intervenção do exército soviético,
complementada por políticas econômicas implementadas
burocraticamente de cima para baixo por oficiais stalinistas,
sem qualquer movimento de massas verdadeiramente independente
da classe trabalhadora dirigida por seu próprio partido
político, isso não colocaria em dúvida a
necessidade histórica da Quarta Internacional? Se um Estado
Operário podia ser estabelecido sem uma revolução
operária de massas ou sem órgãos identificáveis
de poder político, como emergiram os sovietes na Rússia
em 1917, e através dos quais o proletariado exerceu seu
domínio de classe, isso não desafiaria a concepção
marxista mais básica da revolução socialista
como a expressão política mais avançada da
atividade de emancipação da classe trabalhadora?
Seria a atividade revolucionária independente e com consciência
de classe dos trabalhadores realmente necessária para atingir
o socialismo? De quais outras maneiras, e através da direção
e atividades de qual outra força social poderia ser realizado
o socialismo?
Certamente, essas questões não foram todas levantadas
de uma só vez. As implicações programáticas
de longo alcance dos eventos no leste europeu iriam emergir no
curso de diversos anos, e a maneira como a Quarta Internacional
respondeu a elas viria a ter um efeito profundo em seu desenvolvimento.
As transformações do pós-guerra no leste
europeu haviam sido antecipadas por um memorável artigo
que Trotsky escrevera em 1939, pouco depois da explosão
da Segunda Guerra Mundial. A invasão soviética da
Polônia, levada a cabo de acordo com os protocolos secretos
do pacto Stalin-Hitler de agosto de 1939, foram seguidos pela
expropriação das propriedades burguesas na parte
oriental do país, tomado pelo Kremlin. Se consideradas
isoladamente, essas expropriações tinham certo caráter
progressista. No entanto, estas ações teriam que
ser examinadas dentro de uma perspectiva mais ampla, internacional.
Para conseguir a possibilidade de ocupar a Polônia
através de uma aliança militar com Hitler,
escreveu Trotsky, o Kremlin já traiu e continua a
trair as massas na URSS e no restante do mundo, e trouxe assim
a completa desorganização das fileiras de sua própria
Internacional Comunista. O critério político primordial
para nós não é a transformação
das relações de propriedade nesta ou naquela outra
região, por mais importantes que estes eventos possam ser
em si mesmos, e sim a mudança na consciência e organização
do proletariado mundial, a elevação de sua capacidade
de defender antigas conquistas e conquistar novas. Apenas deste,
e somente deste ponto decisivo, as políticas de Moscou,
tomadas como um todo, retêm completamente seu caráter
reacionário e permanecem sendo o principal obstáculo
no caminho à revolução socialista In
Defense of Marxism [London: New Park Publications, 1971], p. 23).
Nos resultados imediatos após a guerra, a direção
da Quarta Internacional opôs-se firmemente as insinuações
de que as medidas econômicas tomadas pelos stalinistas na
Europa central exigiam uma revisão do programa trotskista.
Longe de aumentarem a influência socialista, advertiu o
jornal Fourth International em novembro de 1946, os métodos
stalinistas haviam dividido as massas do leste europeu.
As inexprimíveis traições, os levantes
de massas por eles sufocados, seu terror contra-revolucionário,
seus saques e depredações, tudo isso desacredita
aos olhos dos trabalhadores a própria palavra, a própria
idéia do comunismo. Quão pesadas são as nacionalizações
no leste europeu na balança diante dos crimes de Stalin
contra a classe trabalhadora? As aventuras contra-revolucionárias
stalinistas no leste europeu, ao invés de colocar a aura
de uma missão progressista na história, tornaram
ainda mais urgente a necessidade de massacrar este diabo sangrento,
e preveni-lo de causar mais estrago do que já causou à
classe trabalhadora e à sua luta por emancipação.
A cegueira do stalinismo, seu caráter impronunciavelmente
reacionário e sua falência histórica são
expostos claramente, sobretudo no leste europeu. Em nome do roubo
miserável, em nome da pequena mudança de reparações
completamente sem significância em relação
à salvação das necessidades econômicas
da URSS o Kremlin levantou ao seu redor um muro de ódio
ao redor da Europa oriental e do mundo. Em nome do controle militar
sobre os miseráveis e falidos Bálcãs, o Kremlin
deu suporte aos imperialistas anglo-americanos para esmagar a
revolução e apoiarem o capitalismo decadente.
(Fourth International, novembro de 1946, p. 345).
Enquanto são lidas estas linhas, escritas a quase meio-século,
não é possível não ficar surpreso
com sua extraordinária visão do futuro. Essas linhas
são um testamento dos poderes de análise do marxismo
em geral e da capacidade de antecipação da perspectiva
trotskista em particular. Mesmo quando o stalinismo se encontrava
no auge de seu poder, o movimento trotskista previu o desastre
a que as políticas do Kremlin conduziriam.
Mandel, apesar de ainda ter ao redor de 20 anos, contribuiu
fortemente na luta contra tendências que atribuíram
ao stalinismo qualquer tipo de missão histórica.
Ele advertiu contra pular prematuramente à conclusão
de que a nacionalização das propriedades significava
que Estados Operários haviam sido estabelecidos no leste
europeu. A metodologia marxista em seu todo, escreveu
Mandel, era inconciliável com a teoria absurda
de que um Estado Operário está sendo instalado
em um país onde ainda não houve uma revolução
proletária. (Fourth International, fevereiro de 1947,
p. 48).
Era errado, insistiu ele, basear a definição
do caráter de classe de um dado Estado simplesmente no
fato das nacionalizações. Ao examinar em detalhes
os eventos que haviam ocorrido na Polônia, Mandel explicou:
A combinação das condições
históricas era tal, que a burocracia stalinista, ao adentrar
o país, não achava mais quaisquer proprietários
para os inúmeros empreendimentos industriais e comerciais.
A burguesia polonesa, que sempre fora tão pobre de capital,
era incapaz, mesmo no passado, de reunir capital suficiente sobre
a base de acumulação privada para poder criar uma
indústria de larga-escala. O problema dos territórios
anexados, com suas inúmeras minas e fábricas, não
conseguiria, de qualquer forma, encontrar saída por fora
da administração do Estado mesmo sem a ocupação
soviética ou um levante revolucionário, estas indústrias
teriam sido nacionalizadas (ibid., p. 49).
Opondo-se a todas as sugestões de que as conseqüências
da guerra haviam demonstrado, de certa forma, o caráter
progressista da burocracia do kremlin e colocavam em dúvida
a perspectiva do movimento trotskista, os documentos programáticos
de Mandel e de outros eram impregnados de confiança na
capacidade da Quarta Internacional de conquistar a direção
da classe trabalhadora. Como declarava o manifesto do Segundo
Congresso da Quarta Internacional:
Para arrancarmos do stalinismo a direção
da classe trabalhadora, é necessário começar
de onde a Social-Democracia e o Partido Comunista partiram. É
necessário educar uma nova geração de quadros
revolucionários trabalhadores, que, através de numerosas
experiências sucessivas de luta, irão enraizar-se
com sucesso na classe trabalhadora e ganhar seu respeito e confiança.
É necessário construir um partido verdadeiro, através
do qual poderão chegar a todos os trabalhadores, ganhando
respeito e confiança. É necessário construir
um verdadeiro partido que, através de atividades mais amplas,
irá aparecer eventualmente em todos os movimentos de massas
como verdadeiras alternativas a essas direções falidas
(ibid., p. 49).