Publicado originalmente em inglês no WSWS em 7 de
outubro de 2008
Publicamos abaixo a terceira parte de um relato feito em
28 de setembro por Nick Beams a um encontro realizado em Sydney
sobre o 70o aniversário da Quarta Internacional. Beams
é membro do comitê editorial internacional do WSWS
e secretário nacional do Partido da Igualdade Socialista
da Austrália. Publicaremos este relato em 4 partes. A parte
1 foi publicada em inglês em 4 de outubro e a 2 no dia 6
de outubro.
As medidas adotadas pelo governo Nixon em 1971-73 foram pensadas
para fortificar a posição dos EUA à custa
de seus rivais. Mas, ao longo dos anos 70, a situação
econômica do capitalismo americano continuou a piorar. Tentativas
feitas pelo governo Carter de iniciar uma recuperação
mundial falharam e, no fim da década as economias americana
e mundial passavam por uma estagflação (combinação
de inflação e desemprego crescentes).
Em 1979, em meio a uma crise que se expandia e refletia-se
na queda abismal do dólar americano, mais uma grande virada
foi feita sob orientação de Paul Volcker, então
presidente do Federal Reserve. As medidas Volcker, baseadas em
taxas de juros recordistas e na criação da maior
recessão desde a Grande Depressão, eram voltadas
para a reestruturação do capitalismo americano para
manter sua dominação global.
A subida dos EUA ao poder desde o período após
a conclusão da Guerra Civil em 1865, havia baseado-se no
desenvolvimento de suas capacidades industriais e manufatureiras.
As medidas Volcker, que destruíram setores inteiros de
capital industrial, anunciaram o início de um novo modo
de acumulação, um baseado no capital financeiro.
O começo desta nova era pode ser datado de 1982, quando
a bolsa de valores americana começou sua escalada.
O índice Dow Jones ainda estava abaixo de 1.000 em 1982,
nível que atingira uma década atrás. Este
dobrou nos próximos cinco anos até chegar a 2.000
em janeiro de 1987. Enquanto isso, nos primeiros cinco anos dos
anos 80, a indústria americana sofreu a mais profunda recessão
do período do pós-guerra.
No entanto, a posição do capitalismo americano
não era, de forma alguma, segura. Em Outubro de 1987, a
bolsa de valores sofreu sua maior queda em um dia, fato que requeriu
uma grande intervenção por parte do Federal Reserve
e de outros bancos centrais para prevenir um colapso mundial.
Este fato foi seguido pelo desastre das poupanças e empréstimos,
o que requeriu um enorme resgate por parte do governo, seguido
de uma recessão em 1990-92.
O momento decisivo para a sorte do capitalismo americano veio
com a liquidação da União Soviética
em 1991, seguida da abertura da China e de outras regiões
ao capital global. É estimado que, desde a queda do muro
de Berlim em 1989 até os dias atuais, cerca de um bilhão
de trabalhadores foram adicionados ao mercado de trabalho disponível
ao capital. O capitalismo mundial nunca havia visto tal fluxo
de mão-de-obra barata na história. Foi esse processo
que tornou possível o novo modo capitalista de acumulação
de riquezas, baseado na financeirização.
Os dados da Apple a seguir dão uma idéia dos
valores envolvidos. É estimado que, de cada iPod vendido
a US$ 299 nos EUA, apenas US$ 4 vão para as companhias
na China que o manufaturaram, enquanto que US$ 160 vão
para as companhias americanas envolvidas no design, transporte
e vendas do produto.
A abertura da China e de outras regiões de mão-de-obra
barata teve um impacto de duas mãos. Por um lado, isto
fez aumentar a acumulação de mais-valia a
fonte de toda acumulação de riqueza no modo de produção
capitalista. Por outro lado, o barateamento das mercadorias tornou
possível o rebaixamento das taxas de juros nos EUA e em
outros países capitalistas centrais ao longo dos anos 90,
providenciando, dessa maneira, crédito barato. Isto, por
sua vez, alimentou os sucessivos booms econômicos
a bolha das bolsas de valores, a bolha da Internet e da tecnologia
dos anos 90 e o boom imobiliário que decolou depois de
2002.
O capitalismo mundial experimentou certa ascensão a
partir do começo dos anos 90, apesar de balançado
pelas tempestades e turbulências financeiras: a crise da
libra esterlina e dos sistemas bancários escandinavos em
1992; o resgate de US$ 50 bilhões dos bancos americanos
pegos pela crise do peso mexicano em 1994; a crise econômica
asiática de 1997; a moratória russa em 1998; a quebra
do hedge fund dos EUA, o Long Term Capital Management, em 1998.
Nos EUA, o caminho da acumulação de riquezas
não era mais a indústria manufatureira ou a oferta
de serviços financeiros associados a esta, mas a compra
e venda de ativos usando fundos de empréstimo para lucro.
Um simples cálculo nos indicará quanto poderia
ser feito. Se um ativo é comprado por US$ 100 milhões,
com US$ 10 de participação e US$ 90 bilhões
de fundos emprestados, a juros de 8% e valorização
do ativo em apenas 10% ao ano, então ao final do ano ele
valerá US$ 110 milhões. Destes, US$ 7,2 milhões
devem ser pagos em juros, deixando US$ 2,8 milhões de lucro.
Isto representa uma taxa de retorno de 28%. Com uma valorização
mais rápida em valores de ativos, a taxa de retorno será
ainda maior. Por exemplo, se o valor do ativo sobe 15%, o lucro
sobre US$ 10 milhões será US$7,8 milhões
ou 78%.
Este exemplo simples também fornece uma visão
do impacto devastante(sobre um sistema altamente endividado) de
uma queda nos preços dos ativos. Imaginemos que, ao invés
de aumentar 10%, o valor do ativo caia 2%, valendo US$ 98 milhões
no final do ano. O banco ainda terá que receber US$ 7,2
milhões, deixando apenas US$ 0,8 milhões de capital
líquido. Isto é, US$ 9,2 milhões ou 92% do
capital inicial terão desaparecido.
A questão crucial é: o que mantém o preço
dos ativos subindo? Isto depende de um fluxo crescente de crédito.
A significância desta forma de acumulação
de riqueza foi descrita em um ensaio publicado no Foreign Policy
em 1996 entitulado: "A nova máquina de riquezas".
O ensaio apontava que estes novos instrumentos financeiros eram
o principal componente e o gerador de crescimento mais rápido
da riqueza global e que a securitização estava alterando
fundamentalmente o sistema econômico internacional.
O artigo apontou que a nova abordagem de criação
de riquezas "requer que o Estado encontre formas de aumentar
o valor de mercado de seu estoque de ativos produtivos" e
que tal estratégia deve ser implementada por uma política
pública que almeje atingir crescimento e criação
de riquezas [e] portanto não tenta aumentar a produção
de bens e serviços, exceto como objetivo secundário".
O caminho para o valor crescente de ativos foi injetar mais crédito
no sistema financeiro.
A compra e venda de títulos baseados em ativos tornou-se
o novo caminho da acumulação de riquezas. Em 1995,
o valor em dólar dos títulos garantidos por ativos
ficou em US$ 108 bilhões. No ano 2000, no ápice
da bolha do mercado de ações, era US$ 1,07 trilhões.
O valor do dólar chegou a $ 1,1 trilhões em 2005
e $ 1,23 trilhões em 2006. Em outras palavras, no intervalo
de uma década, o valor destes títulos havia aumentado
10 vezes. Agora o castelo de cartas começa a cair.
O tamanho deste castelo é indicado pelos números
a seguir. Em 1980, a proporção da dívida
americana em relação ao PIB era de 163%. Em 1987
ela havia subido para 346%. Mais espetacular ainda foi o aumento
do endividamento do setor financeiro. Este subiu de 21% do PIB
em 1980 para 83% em 2000 e 116% em 2007.
Mesmo essa breve retomada deixa claro por que a fé do
sr. Kaletsky e de outros na estabilidade e proeminência
do capitalismo americano está tão fora de lugar.
A crise que agora engole a economia americana não surgiu
do nada. Ela é resultado de processos que se extendem a
mais de três décadas, de medidas iniciadas dentro
dos EUA para superarem a crise de 1970 e manterem sua posição
de dominação global. E, não bastando o argumento
"desacoplador" e o boom chinês, esta é
uma crise do sistema capitalista como um todo. O pilar central
no qual o capitalismo têm se apoiado pela maior parte do
século XX, e principalmente nos últimos 60 anos,
está se desintegrando sob nossos olhos.
Há um forte significado no fato de esta crise ter atingido
o coração da economia capitalista mundial, assimo
como seu sistema circulatório, o sistema de crédito,
que desemprenhou papel tão central na acumulação
de lucros nos últimos 25 anos.
No volume III de O Capital, Marx aponta a importância
crucial do sistema de crédito, tanto ao ampliar o escopo
da economia capitalista quanto ao lançar as bases para
a transição a uma forma mais alta de sociedade,
o socialismo.
Em primeiro lugar, o crédito facilita uma tremenda expansão
das forças produtivas, uma vez que a produção
não se organiza mais sobre a base do capital individual,
mas do capital social. Ao mesmo tempo, ela destrói todas
as justificativas ideológicas da ordem capitalista baseada
na noção de que a apropriação privada
é justificada pelo risco que o indivíduo assume,
ou de que a acumulação de capital resulta da economia
individual. O indivíduo não arrisca suas próprias
economias ou recursos, mas, através do sistema de crédito,
as economias de outros a vasta acumulação
de riqueza social.
O crédito eleva a um novo ápice de intensidade
a contradição existente entre o caráter social
da produção e a apropriação privada
de riqueza nas formas precisas que testemunhamos na crise atual.
O sistema de crédito, escreveu Marx, "reproduz uma
nova aristocracia financeira, uma nova variedade de parasitas
na forma de promotores, especuladores e mesmo diretores nominais;
todo um sistema de fraudes e trapaças referente à
promoção corporativa, assuntos de ações
e negociações de ações."
Marx só viveu o suficiente para ver o começo
deste processo, mas ele expressou sua significância histórica
em palavras que resumem a situação atual.
"O sistema de crédito", ele escreveu, "acelera
o desenvolvimento material das forças produtivas e a criação
do mercado mundial, o qual deve ser levado, até certo nível
de desenvolvimento, como tarefa do modo de produção
capitalista, como bases materiais para a nova forma de produção.
Ao mesmo tempo, o crédito acelera as explosões violentas
desta contradição e suas crises e, com estas, os
elementos de dissolução do antigo modo de podução.
O sistema de crédito tem em si um caráter dual
imanente: por um lado desenvolve a causa da produção
capitalista, enriquecimento e exploração do trabalho
alheiro até a forma mais pura e colossal de jogatina e
fraudes, e restringe ainda mais o já pequeno número
de exploradores da riqueza social; por outro lado, porém,
ele constitui a forma de transição para um novo
modo de produção".