Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês,
no dia 11 de maio de 2008.
A vitória de Hillary Clinton sobre Barack Obama nas
primárias de 22 de abril na Pensilvânia assegura
que a amarga disputa pela nomeação presidencial
democrata ainda continuará por semanas, se não por
meses. Mais importante, ela revela a crise que está tomando
conta do partido.
A eleição revelou um partido que está
se despedaçando por questões raciais, étnicas,
de gênero e demográficas. Como nas primárias
anteriores em estados devastados pelo fechamento de fábricas
e pelo nível de vida decadente da classe trabalhadora,
Obama ganhou a maioria devastadora de votos afro-americanos e
a grande maioria de votos da juventude.
Clinton ultrapassou Obama facilmente dentre os votantes brancos,
idosos e as mulheres. A demografia do estado, na qual negros concentram-se
em poucos centros urbanos e brancos idosos compõem uma
enorme proporção do eleitorado, quase produziu uma
vitória esmagadora para Clinton, que só não
ganhou em sete dos 67 condados do estado.
Obama só venceu em Filadélfia, em dois condados
que são subúrbio de Filadélfia, na não
distante Lancaster, no condado que inclui a capital Harrigsburg
e em dois condados ao redor de State College, onde a Universidade
Estadual de Penn é localizada.
Clinton ganhou por ampla maioria nas áreas economicamente
devastadas do nordeste e oeste da Pensilvânia, incluindo
os condados no sudoeste do estado que já foram centros
da mineração de carvão na região.
Diversos comentadores e oficiais democratas estão se
contorcendo por causa da continuação de uma batalha
cada vez mais áspera pelas primárias que está
dividindo o aparato partidário, assim como o eleitorado
democrata, talvez de forma irreversível. Eles se preocupam
se o venenoso processo não irá arruinar as chances
do partido na eleição da primavera, cedendo a Casa
Branca ao presunçoso candidato republicano, John McCain.
É cada vez mais provável que forças significativas
de dentro de cada um dos campos boicotará a eleição
se seu candidato não obter a nomeação. Mas
a liderança do partido parece muito estupefata e impotente
para pôr um fim à guerra interna.
Não obstante o veneno destilado entre as duas campanhas,
nenhuma diferença política significativa pode ser
discernida nos pronunciamentos públicos dos candidatos.
Ambos fazem apelos populistas sem desafiar de nenhuma maneira
o poder ou os lucros da elite corporativa. Ambos combinam retórica
anti-guerra com promessas de manter as tropas americanas no Iraque
indefinidamente e expandir o poderio militar para preparar novas
intervenções.
As diferenças políticas que de fato existem são
em grande parte por trás da vista do público. Dentro
dos níveis mais altos da instituição do Partido
Democrata, a cisão começou com a guerra do Iraque.
Estrategistas internacionais como Zbigniew Brzezinski identificaram
Clinton com a decisão de apoiar a desastrosa intervenção
no Iraque. Esta fração promoveu a campanha de Obama
como uma forma de levar uma mudança na política
externa, após oito calamitosos anos de Bush, a defender
os interesses econômicos e estratégicos dos EUA ao
redor do mundo de maneira mais inteligente e eficaz.
Baseado em abstrações vaguíssimas, Obama
foi apresentado como o candidato da mudança
e da nova política que iria unificar todos
os elementos díspares da sociedade americana e re-instaurar
o sonho americano. Sua figura, jovem, um iniciante na política
nacional e multi-racial, parecia incorporar esse objetivo declarado.
Esta personalidade foi construída cuidadosamente. Brzezinski,
em entrevista em 19 de abril ao canal 24 da França, ressaltou
essa importância àqueles que apóiam o senador
de Illinois. ... Os Estados Unidos têm que redefinir
seu lugar no mundo. Na realidade, os Estados Unidos têm
que se redefinir, disse ele. E eu penso que Obama
simboliza essa mudança necessária...
A campanha de Obama tocou no profundo descontentamento, principalmente,
entre os jovens, em relação à guerra, à
insegurança financeira, à corrupção
e criminalidade dos anos Bush e angariou apoio popular.
Clinton revidou, agregando apoio entre os setores mais pró-guerra
da instituição partidária, incentivando um
processo de polarização que exacerba as tensões
entre os interesses opostos no Partido Democrata. O fato de a
crise interna resultante tomar a forma de tendências centrífugas
sobre questões raciais, étnicas e de gênero
é relacionado com a evolução particular do
Partido Democrata.
O liberalismo americano nos períodos
do New Deal e do pós-guerra
Em meio à grande depressão dos anos 30, o Partido
Democrata sob Roosevelt forjou uma coalizão que abarcava
setores mais visionários da classe dominante, os sindicatos,
incluindo os recém-formados sindicatos industriais, as
classes médias profissionais, pequenos agricultores e camadas
médias urbanas, desde lojistas a intelectuais.
Sob condições de um colapso de todo sistema capitalista
e da crescente efervescência social, Roosevelt encorajou
de forma oportunista a formação de sindicatos industriais
por um período para empurrar, contra a hostil elite corporativa,
reformas sociais limitadas que ele considerava necessárias
para protelar a revolução social.
Havia, no entanto, limites estreitos em seu apoio às
lutas sindicais dos trabalhadores industriais. Quando a recuperação
econômica parcial quebrou em 1937 e as batalhas grevistas
ameaçavam tomar dimensões revolucionárias,
Roosevelt denunciou a recém-surgida CIO (confederação
das organizações industriais, espécie de
central sindical). Após o assassinato por policiais dos
metalúrgicos grevistas de Chicago no Massacre do Memorial
Day, Roosevelt disse uma frase memorável: A peste
caia em vossas casas.
Porém, o liberalismo americano, principalmente nos anos
iniciais do New Deal, geralmente apoiava a agenda de reformas
que defendia uma reestruturação do capitalismo americano
para restringir o poder dos grandes negócios e introduzir
alguma forma de democracia industrial nos locais de trabalho.
Muitos democratas adeptos do New Deal advogaram medidas de redistribuição
de renda para alcançar maior igualdade social.
Depois de 1937, o liberalismo do Partido Democrata começou
a recuar a agenda de reformas estruturais do capitalismo, num
processo que foi acelerado pela Segunda Guerra Mundial. O historiador
americano Alan Brinkley escreve em seu livro de 1995, O Fim da
Reforma:
Uma década depois, em 1945, a ideologia do
liberalismo americano parecia completamente diferente. A crítica
ao capitalismo moderno que fora tão importante no início
dos anos 30 (e, de fato, por várias décadas anteriores
a essa) estava em grande parte abandonada, ou então tão
atenuada que não chegava a ter mais do que pequena significância
retórica. Em seu lugar agora estava um conjunto de idéias
liberais essencialmente reconciliadas com a estrutura existente
da economia e dedicadas ao uso do Estado para compensar pelos
erros inevitáveis do capitalismo...
Quando os liberais falavam agora sobre responsabilidade
governamental para proteger a saúde da indústria,
eles definiam responsabilidade menos como um compromisso com a
reestruturação da economia do que como uma tentativa
de estabilizá-la e ajudá-la a crescer. Eles não
se preocupavam mais tanto com o controle ou punição
aos plutocratas e monarquistas econômicos,
um argumento central na retórica do New Deal em meados
dos anos 30. Ao invés disso, eles falavam sobre seu compromisso
de providenciar um ambiente saudável no qual o mundo corporativo
pudesse florescer e no qual a economia asseguraria emprego
universal. (pp. 6-7)
Brinkley explica que o novo liberalismo não dava ênfase
na produção e nos produtores de riqueza, mas no
consumo e no consumidor. Os trabalhadores aumentariam sua parte
beneficiando-se como consumidores do crescimento econômico
e da prosperidade geral do país.
Chamando a forma pós-guerra de liberalismo de baseada
em direitos, ele escreve:
A Guerra, em poucas palavras, foi um momento importante
na guinada do liberalismo Americano de uma preocupação
com reformas (com um conjunto de questões essencialmente
de classe centradas no confronto do problema dos monopólios
e da desordem econômica) para uma preocupação
com direitos (um compromisso com as liberdades e direitos
de indivíduos e, portanto, com a libertação
de pessoas e grupos de oprimidos). O liberalismo baseado
em direitos foi em alguns aspectos parte de um recuo de
um amplo espectro de questões econômicas que haviam
sido importantes para progressistas e adeptos do New deal por
décadas: questões envolvendo a estrutura da economia
industrial e a distribuição de riqueza e poder dentro
dela.
Alinhado nesta mudança, o Partido Democrata não
se apresentava mais como o partido da classe trabalhadora,
mas como o defensor da classe média. Por sua
vez, os sindicatos adotaram essa versão atenuada de liberalismo
americano, abandonaram qualquer luta por democracia operária
ou pela diminuição de poder das corporações,
e se integraram mais ainda ao Partido Democrata. Eles cimentaram
seu status como pilares na ordem econômica de então
realizando uma purificação impiedosa de elementos
de esquerda e socialistas.
Em seu discurso no congresso sobre o Estado da União
de janeiro de 1944 , Roosevelt propôs o que ele chamava
de Segunda Carta de Direitos, que garantiria a todos
americanos uma medida de segurança econômica e alguns
direitos sociais. Incluíam-se o direito a um emprego
útil e remunerado, o direito a receber o suficiente
para providenciar alimentação, vestimenta e recreação
adequada, o direito de fazendeiros a uma vida decente,
o fim para homens de negócio da competição
injusta e dominação de monopólios,
o direito de todas as famílias a uma casa decente,
o direito a cuidados médicos adequados e a oportunidade
de garantir e manter uma boa saúde, o direito à
proteção necessária contra as inseguranças
financeiras da terceira idade, doença, acidentes e desemprego
e o direito a uma educação de qualidade.
Até que ponto Roosevelt levou a sério sua proposta
é uma questão para debate. De qualquer forma, após
a guerra, sua Segunda Carta de Direitos transformou-se
em letra morta.
O Colapso da coalizão do New Deal
A credibilidade do liberalismo Americano do pós-guerra
e da sociedade de consumo classe-média que
este desposara dependia da continuação da expansão
econômica que se seguiu à guerra de uma prosperidade
sempre crescente. Mas até o fim dos anos 60 o boom já
começara a se esfacelar. O impacto da guerra do Vietnã,
as lutas por direitos civis, revoltas urbanas e uma onda de greves
alimentadas por condições econômicas deteriorantes
minaram a coalizão do New Deal. Dentro de poucos anos o
Partido Democrático se distanciava abertamente das políticas
de reformas sociais do New Deal.
Sob condições de uma estagnação
econômica e inflação acirrada dos anos 70,
grandes setores da classe média, assim como camadas mais
altas de trabalhadores ficaram desiludidas com as políticas
de reforma liberal, atenuadas como foram, associadas ao Partido
Democrata, que pareciam apenas limitar a crise econômica
enquanto impunham impostos cada vez mais altos sobre as pessoas
de renda média.
Como as promessas de melhora no nível de vida através
da expansão da sociedade consumidora haviam falido, o Partido
Democrata buscou remodelar-se, começando com a campanha
de McGovern de 1972. Apresentada como uma reforma de longo alcance,
a organização foi decorada com camada sobre camada
de estruturas participativas, e a diversidade racial
e a de gênero logo se transformaram na palavra do momento.
O partido incorporou à sua estrutura o princípio
da política de identidades.
Ação afirmativa e políticas
similares foram empregadas para dispensar privilégios a
camadas da elite de várias composições étnicas
e raciais assim como entre as mulheres, enquanto o nível
de vida da massa de trabalhadores, afro-americanos e latinos assim
como mulheres e homens brancos se estagnava ou decaía.
O atual sistema de nomeação foi concebido de
forma a fazer com que as eleições primárias
e os caucuses substituíssem em grande parte
o antigo processo, no qual os principais candidatos à nomeação
presidencial eram escolhidos por oficiais eleitos e do partido,
e a escolha final era feita por delegados na convenção
nacional. Isto só intensificava o caráter demagógico
do processo eleitoral, uma vez que os candidatos apelavam a várias
seções eleitorais dentro do Partido Democrático
sobre a base de slogans e imagens relacionadas a um ou outro grupo
étnico racial, ou de gênero.
O Partido Democrata assumiu a forma de uma aliança incipiente
de grupos de interesses opostos, incluindo a instituição
dos direitos civis e camadas mais privilegiadas de negros e de
outras minorias, organizações feministas, grupos
de direitos homossexuais, meio-ambientalistas etc. Os sindicatos,
que haviam cumprido um papel central na antiga coalizão
do New Deal, tornaram-se um entre os diversos grupos de interesse
aliados ao Partido Democrata.
O apoio dos democratas à classe trabalhadora foi decaindo
de forma acelerada ao mesmo tempo em que o apoio à reestruturação
da economia americana foi realizado em resposta ao declínio
na posição econômica do capitalismo americano.
Foram os democratas sob Carter que iniciaram o primeiro grande
ataque às reformas do New Deal com o des-regulamento das
linhas aéreas e dos transportes por caminhão. Em
1979, Carter apontou Paul Volcker como presidente do Conselho
da Reserva Federal. Volcker aumentou as taxas de juros drasticamente
para acabar com a inflação sob o custo do desemprego
em massa e de uma ofensiva contra os salários e condições
de vida da classe trabalhadora. Os democratas iniciaram a corrida
pelos cortes salariais com a debandada da Chrysler de 1979-80
e apoiaram a des-industrialização realizada
pelos grandes negócios para fechar setores enormes da indústria
básica que não eram mais lucrativos.
Como parte de sua adoção de políticas
de identidade, o Partido Democrata redefiniu de forma efetiva
o que se chamava democracia americana para lançar
ao mar qualquer reivindicação de igualdade social.
A partir de 1980, ele alienou sua antiga base trabalhadora de
apoio enquanto colaborava com os republicanos a efetivar uma ampla
redistribuição de riqueza a partir da base ao topo.
Uma batalha de personalidades políticas
Agora, em uma competição que contrapõe
uma mulher e um afro-americano, que se desenrola sob condições
de uma guerra não popular e uma recessão que se
aprofunda, as conseqüências políticas da adoção
democrata das políticas de identidade emergem de forma
explosiva.
Na Pensilvânia, Clinton escalou sua estratégia
de direita para se opor à liderança insuperável
de Obama entre os delegados partidários. Ela perseguiu
de forma inquisitória seu oponente por suas ligações
passadas com um antigo membro da organização radical
Weather Underground, demonizou o Irã , buscou incutir medo
de ataques terroristas nos eleitores e fez apelos velados relativos
ao preconceito racial (condenando Obama por sua ligação
com seu ex-pastor Jeremiah Wright).
Um momento importante ocorreu quando Obama, em situação
inesperada durante um evento privado de levantamento de fundos,
falou sobre a raiva dos votantes da classe trabalhadora
em uma pequena cidade da Pensilvânia rural devido aos cortes
salariais, demissões, a crescente insegurança financeira
e a indiferença das administrações republicanas
ou democratas em relação a seu sofrimento. Obama
cometeu o pecado cardeal de desvelar a realidade das relações
de classe nos Estados Unidos, e limitou isso ao sugerir que a
escassez econômica encontrava expressão distorcida
na classe trabalhadora que se agarra à religião
e às armas e culpa imigrantes e trabalhadores estrangeiros.
Por esta, a mídia, os republicanos e Clinton crucificaram
Obama como sendo um elitista, deixando claro que os
círculos dominantes não tolerariam nenhum apelo
a antagonismos de classe na campanha presidencial. Obama entendeu
o recado, desculpou-se, e permaneceu no lado defensivo durante
o restante da campanha na Pensilvânia.
Este episódio demonstra como o liberalismo americano
e o Partido Democrata baseiam-se em uma completa evasão
das questões fundamentais de classe que dominam a sociedade
americana. Em vez disso, eles se focam obsessivamente em questões
secundárias de raça, gênero, idade etc., exacerbando
tais diferenças e atribuindo-lhes um caráter nocivo.
Desde que o partido não se baseia em nenhum programa
coerente, seus candidates fazem seus apelos adotando personalidades
designadas a ganhar o apoio de diferentes elementos constituintes
do amálgama partidário. Na atual disputa democrata
pelas primárias, isso tomou formas absurdas.
Clinton, precisando de uma vitória convincente na Pensilvânia
para manter sua campanha viva, deu a si mesma a nova aparência
de uma rígida senhora da classe trabalhadora, algo como
um Rocky Balboa feminino. Isso é extremamente implausível
para uma ex-primeira dama que, junto com seu marido ex-presidente,
arrebanhou 109 milhões de dólares nos sete anos
desde que deixaram a Casa Branca.
Obama, por sua vez, apresenta-se como o líder de um
movimento de insurreição popular que acabará
com os lobistas corporativos de Washington e dará o governo
de volta ao povo. Ao mesmo tempo, ele diz que unificará
todos os diversos setores (branco e negro, rico e pobre, jovem
e velho, homem e mulher, homossexual e heterossexual, democratas
e republicanos) em sua cruzada por uma mudança
e por uma nova política.
A crise do Partido Democrata é a crise de um partido
imperialista, como ficou subentendido na recente ameaça
feita por Clinton de destruir o Irã. De sua
parte, não havia muito tempo que Obama ameaçara
bombear o Paquistão.
A competição pelas primárias degenerou-se
em um espetáculo de crise política entrelaçado
de fraudes e traições. Isso demonstrou o quanto
está perdida e destruída a noção de
que o Partido Democrata servirá como um veículo
de mudança social progressista.