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As Primárias da Pensilvânia e a crise do Partido Democrata

Por Barry Grey
14 de maio de 2008

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Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês, no dia 11 de maio de 2008.

A vitória de Hillary Clinton sobre Barack Obama nas primárias de 22 de abril na Pensilvânia assegura que a amarga disputa pela nomeação presidencial democrata ainda continuará por semanas, se não por meses. Mais importante, ela revela a crise que está tomando conta do partido.

A eleição revelou um partido que está se despedaçando por questões raciais, étnicas, de gênero e demográficas. Como nas primárias anteriores em estados devastados pelo fechamento de fábricas e pelo nível de vida decadente da classe trabalhadora, Obama ganhou a maioria devastadora de votos afro-americanos e a grande maioria de votos da juventude.

Clinton ultrapassou Obama facilmente dentre os votantes brancos, idosos e as mulheres. A demografia do estado, na qual negros concentram-se em poucos centros urbanos e brancos idosos compõem uma enorme proporção do eleitorado, quase produziu uma vitória esmagadora para Clinton, que só não ganhou em sete dos 67 condados do estado.

Obama só venceu em Filadélfia, em dois condados que são subúrbio de Filadélfia, na não distante Lancaster, no condado que inclui a capital Harrigsburg e em dois condados ao redor de State College, onde a Universidade Estadual de Penn é localizada.

Clinton ganhou por ampla maioria nas áreas economicamente devastadas do nordeste e oeste da Pensilvânia, incluindo os condados no sudoeste do estado que já foram centros da mineração de carvão na região.

Diversos comentadores e oficiais democratas estão se contorcendo por causa da continuação de uma batalha cada vez mais áspera pelas primárias que está dividindo o aparato partidário, assim como o eleitorado democrata, talvez de forma irreversível. Eles se preocupam se o venenoso processo não irá arruinar as chances do partido na eleição da primavera, cedendo a Casa Branca ao presunçoso candidato republicano, John McCain.

É cada vez mais provável que forças significativas de dentro de cada um dos campos boicotará a eleição se seu candidato não obter a nomeação. Mas a liderança do partido parece muito estupefata e impotente para pôr um fim à guerra interna.

Não obstante o veneno destilado entre as duas campanhas, nenhuma diferença política significativa pode ser discernida nos pronunciamentos públicos dos candidatos. Ambos fazem apelos populistas sem desafiar de nenhuma maneira o poder ou os lucros da elite corporativa. Ambos combinam retórica anti-guerra com promessas de manter as tropas americanas no Iraque indefinidamente e expandir o poderio militar para preparar novas intervenções.

As diferenças políticas que de fato existem são em grande parte por trás da vista do público. Dentro dos níveis mais altos da instituição do Partido Democrata, a cisão começou com a guerra do Iraque. Estrategistas internacionais como Zbigniew Brzezinski identificaram Clinton com a decisão de apoiar a desastrosa intervenção no Iraque. Esta fração promoveu a campanha de Obama como uma forma de levar uma mudança na política externa, após oito calamitosos anos de Bush, a defender os interesses econômicos e estratégicos dos EUA ao redor do mundo de maneira mais inteligente e eficaz.

Baseado em abstrações vaguíssimas, Obama foi apresentado como o candidato da “mudança” e da “nova política” que iria unificar todos os elementos díspares da sociedade americana e re-instaurar o sonho americano. Sua figura, jovem, um iniciante na política nacional e multi-racial, parecia incorporar esse objetivo declarado.

Esta personalidade foi construída cuidadosamente. Brzezinski, em entrevista em 19 de abril ao canal 24 da França, ressaltou essa importância àqueles que apóiam o senador de Illinois. “... Os Estados Unidos têm que redefinir seu lugar no mundo. Na realidade, os Estados Unidos têm que se redefinir”, disse ele. “E eu penso que Obama simboliza essa mudança necessária...”

A campanha de Obama tocou no profundo descontentamento, principalmente, entre os jovens, em relação à guerra, à insegurança financeira, à corrupção e criminalidade dos anos Bush e angariou apoio popular.

Clinton revidou, agregando apoio entre os setores mais pró-guerra da instituição partidária, incentivando um processo de polarização que exacerba as tensões entre os interesses opostos no Partido Democrata. O fato de a crise interna resultante tomar a forma de tendências centrífugas sobre questões raciais, étnicas e de gênero é relacionado com a evolução particular do Partido Democrata.

O liberalismo americano nos períodos do New Deal e do pós-guerra

Em meio à grande depressão dos anos 30, o Partido Democrata sob Roosevelt forjou uma coalizão que abarcava setores mais visionários da classe dominante, os sindicatos, incluindo os recém-formados sindicatos industriais, as classes médias profissionais, pequenos agricultores e camadas médias urbanas, desde lojistas a intelectuais.

Sob condições de um colapso de todo sistema capitalista e da crescente efervescência social, Roosevelt encorajou de forma oportunista a formação de sindicatos industriais por um período para empurrar, contra a hostil elite corporativa, reformas sociais limitadas que ele considerava necessárias para protelar a revolução social.

Havia, no entanto, limites estreitos em seu apoio às lutas sindicais dos trabalhadores industriais. Quando a recuperação econômica parcial quebrou em 1937 e as batalhas grevistas ameaçavam tomar dimensões revolucionárias, Roosevelt denunciou a recém-surgida CIO (confederação das organizações industriais, espécie de central sindical). Após o assassinato por policiais dos metalúrgicos grevistas de Chicago no Massacre do Memorial Day, Roosevelt disse uma frase memorável: “A peste caia em vossas casas.”

Porém, o liberalismo americano, principalmente nos anos iniciais do New Deal, geralmente apoiava a agenda de reformas que defendia uma reestruturação do capitalismo americano para restringir o poder dos grandes negócios e introduzir alguma forma de democracia industrial nos locais de trabalho. Muitos democratas adeptos do New Deal advogaram medidas de redistribuição de renda para alcançar maior igualdade social.

Depois de 1937, o liberalismo do Partido Democrata começou a recuar a agenda de reformas estruturais do capitalismo, num processo que foi acelerado pela Segunda Guerra Mundial. O historiador americano Alan Brinkley escreve em seu livro de 1995, O Fim da Reforma:

“Uma década depois, em 1945, a ideologia do liberalismo americano parecia completamente diferente. A crítica ao capitalismo moderno que fora tão importante no início dos anos 30 (e, de fato, por várias décadas anteriores a essa) estava em grande parte abandonada, ou então tão atenuada que não chegava a ter mais do que pequena significância retórica. Em seu lugar agora estava um conjunto de idéias liberais essencialmente reconciliadas com a estrutura existente da economia e dedicadas ao uso do Estado para compensar pelos erros inevitáveis do capitalismo...

“Quando os liberais falavam agora sobre responsabilidade governamental para proteger a saúde da indústria, eles definiam responsabilidade menos como um compromisso com a reestruturação da economia do que como uma tentativa de estabilizá-la e ajudá-la a crescer. Eles não se preocupavam mais tanto com o controle ou punição aos ‘plutocratas’ e ‘monarquistas econômicos’, um argumento central na retórica do New Deal em meados dos anos 30. Ao invés disso, eles falavam sobre seu compromisso de providenciar um ambiente saudável no qual o mundo corporativo pudesse florescer e no qual a economia asseguraria ‘emprego universal’.” (pp. 6-7)

Brinkley explica que o novo liberalismo não dava ênfase na produção e nos produtores de riqueza, mas no consumo e no consumidor. Os trabalhadores aumentariam sua parte beneficiando-se como consumidores do crescimento econômico e da prosperidade geral do país.

Chamando a forma pós-guerra de liberalismo de “baseada em direitos”, ele escreve:

“A Guerra, em poucas palavras, foi um momento importante na guinada do liberalismo Americano de uma preocupação com ‘reformas’ (com um conjunto de questões essencialmente de classe centradas no confronto do problema dos monopólios e da desordem econômica) para uma preocupação com ‘direitos’ (um compromisso com as liberdades e direitos de indivíduos e, portanto, com a libertação de pessoas e grupos de oprimidos). O liberalismo ‘baseado em direitos” foi em alguns aspectos parte de um recuo de um amplo espectro de questões econômicas que haviam sido importantes para progressistas e adeptos do New deal por décadas: questões envolvendo a estrutura da economia industrial e a distribuição de riqueza e poder dentro dela.”

Alinhado nesta mudança, o Partido Democrata não se apresentava mais como o partido da “classe trabalhadora”, mas como o defensor da “classe média”. Por sua vez, os sindicatos adotaram essa versão atenuada de liberalismo americano, abandonaram qualquer luta por democracia operária ou pela diminuição de poder das corporações, e se integraram mais ainda ao Partido Democrata. Eles cimentaram seu status como pilares na ordem econômica de então realizando uma purificação impiedosa de elementos de esquerda e socialistas.

Em seu discurso no congresso sobre o Estado da União de janeiro de 1944 , Roosevelt propôs o que ele chamava de “Segunda Carta de Direitos”, que garantiria a todos americanos uma medida de segurança econômica e alguns direitos sociais. Incluíam-se o “direito a um emprego útil e remunerado”, o “direito a receber o suficiente para providenciar alimentação, vestimenta e recreação adequada”, o direito de fazendeiros a “uma vida decente”, o fim para homens de negócio “da competição injusta e dominação de monopólios”, o direito de todas as famílias a uma “casa decente”, o direito a “cuidados médicos adequados e a oportunidade de garantir e manter uma boa saúde”, o direito à “proteção necessária contra as inseguranças financeiras da terceira idade, doença, acidentes e desemprego” e o direito a “uma educação de qualidade”. Até que ponto Roosevelt levou a sério sua proposta é uma questão para debate. De qualquer forma, após a guerra, sua “Segunda Carta de Direitos” transformou-se em letra morta.

O Colapso da coalizão do New Deal

A credibilidade do liberalismo Americano do pós-guerra e da sociedade de consumo “classe-média” que este desposara dependia da continuação da expansão econômica que se seguiu à guerra de uma prosperidade sempre crescente. Mas até o fim dos anos 60 o boom já começara a se esfacelar. O impacto da guerra do Vietnã, as lutas por direitos civis, revoltas urbanas e uma onda de greves alimentadas por condições econômicas deteriorantes minaram a coalizão do New Deal. Dentro de poucos anos o Partido Democrático se distanciava abertamente das políticas de reformas sociais do New Deal.

Sob condições de uma estagnação econômica e inflação acirrada dos anos 70, grandes setores da classe média, assim como camadas mais altas de trabalhadores ficaram desiludidas com as políticas de reforma liberal, atenuadas como foram, associadas ao Partido Democrata, que pareciam apenas limitar a crise econômica enquanto impunham impostos cada vez mais altos sobre as pessoas de renda média.

Como as promessas de melhora no nível de vida através da expansão da sociedade consumidora haviam falido, o Partido Democrata buscou remodelar-se, começando com a campanha de McGovern de 1972. Apresentada como uma reforma de longo alcance, a organização foi decorada com camada sobre camada de estruturas “participativas”, e a diversidade racial e a de gênero logo se transformaram na palavra do momento. O partido incorporou à sua estrutura o princípio da política de identidades.

“Ação afirmativa” e políticas similares foram empregadas para dispensar privilégios a camadas da elite de várias composições étnicas e raciais assim como entre as mulheres, enquanto o nível de vida da massa de trabalhadores, afro-americanos e latinos assim como mulheres e homens brancos se estagnava ou decaía.

O atual sistema de nomeação foi concebido de forma a fazer com que as eleições primárias e os ‘caucuses’ substituíssem em grande parte o antigo processo, no qual os principais candidatos à nomeação presidencial eram escolhidos por oficiais eleitos e do partido, e a escolha final era feita por delegados na convenção nacional. Isto só intensificava o caráter demagógico do processo eleitoral, uma vez que os candidatos apelavam a várias seções eleitorais dentro do Partido Democrático sobre a base de slogans e imagens relacionadas a um ou outro grupo étnico racial, ou de gênero.

O Partido Democrata assumiu a forma de uma aliança incipiente de grupos de interesses opostos, incluindo a instituição dos direitos civis e camadas mais privilegiadas de negros e de outras minorias, organizações feministas, grupos de direitos homossexuais, meio-ambientalistas etc. Os sindicatos, que haviam cumprido um papel central na antiga coalizão do New Deal, tornaram-se um entre os diversos grupos de interesse aliados ao Partido Democrata.

O apoio dos democratas à classe trabalhadora foi decaindo de forma acelerada ao mesmo tempo em que o apoio à reestruturação da economia americana foi realizado em resposta ao declínio na posição econômica do capitalismo americano. Foram os democratas sob Carter que iniciaram o primeiro grande ataque às reformas do New Deal com o des-regulamento das linhas aéreas e dos transportes por caminhão. Em 1979, Carter apontou Paul Volcker como presidente do Conselho da Reserva Federal. Volcker aumentou as taxas de juros drasticamente para acabar com a inflação sob o custo do desemprego em massa e de uma ofensiva contra os salários e condições de vida da classe trabalhadora. Os democratas iniciaram a corrida pelos cortes salariais com a debandada da Chrysler de 1979-80 e apoiaram a “des-industrialização” realizada pelos grandes negócios para fechar setores enormes da indústria básica que não eram mais lucrativos.

Como parte de sua adoção de políticas de identidade, o Partido Democrata redefiniu de forma efetiva o que se chamava “democracia americana” para lançar ao mar qualquer reivindicação de igualdade social. A partir de 1980, ele alienou sua antiga base trabalhadora de apoio enquanto colaborava com os republicanos a efetivar uma ampla redistribuição de riqueza a partir da base ao topo.

Uma batalha de personalidades políticas

Agora, em uma competição que contrapõe uma mulher e um afro-americano, que se desenrola sob condições de uma guerra não popular e uma recessão que se aprofunda, as conseqüências políticas da adoção democrata das políticas de identidade emergem de forma explosiva.

Na Pensilvânia, Clinton escalou sua estratégia de direita para se opor à liderança insuperável de Obama entre os delegados partidários. Ela perseguiu de forma inquisitória seu oponente por suas ligações passadas com um antigo membro da organização radical Weather Underground, demonizou o Irã , buscou incutir medo de ataques terroristas nos eleitores e fez apelos velados relativos ao preconceito racial (condenando Obama por sua ligação com seu ex-pastor Jeremiah Wright).

Um momento importante ocorreu quando Obama, em situação inesperada durante um evento privado de levantamento de fundos, falou sobre a “raiva” dos votantes da classe trabalhadora em uma pequena cidade da Pensilvânia rural devido aos cortes salariais, demissões, a crescente insegurança financeira e a indiferença das administrações republicanas ou democratas em relação a seu sofrimento. Obama cometeu o pecado cardeal de desvelar a realidade das relações de classe nos Estados Unidos, e limitou isso ao sugerir que a escassez econômica encontrava expressão distorcida na classe trabalhadora que se “agarra” à religião e às armas e culpa imigrantes e trabalhadores estrangeiros.

Por esta, a mídia, os republicanos e Clinton crucificaram Obama como sendo um “elitista”, deixando claro que os círculos dominantes não tolerariam nenhum apelo a antagonismos de classe na campanha presidencial. Obama entendeu o recado, desculpou-se, e permaneceu no lado defensivo durante o restante da campanha na Pensilvânia.

Este episódio demonstra como o liberalismo americano e o Partido Democrata baseiam-se em uma completa evasão das questões fundamentais de classe que dominam a sociedade americana. Em vez disso, eles se focam obsessivamente em questões secundárias de raça, gênero, idade etc., exacerbando tais diferenças e atribuindo-lhes um caráter nocivo.

Desde que o partido não se baseia em nenhum programa coerente, seus candidates fazem seus apelos adotando personalidades designadas a ganhar o apoio de diferentes elementos constituintes do amálgama partidário. Na atual disputa democrata pelas primárias, isso tomou formas absurdas.

Clinton, precisando de uma vitória convincente na Pensilvânia para manter sua campanha viva, deu a si mesma a nova aparência de uma rígida senhora da classe trabalhadora, algo como um Rocky Balboa feminino. Isso é extremamente implausível para uma ex-primeira dama que, junto com seu marido ex-presidente, arrebanhou 109 milhões de dólares nos sete anos desde que deixaram a Casa Branca.

Obama, por sua vez, apresenta-se como o líder de um movimento de insurreição popular que acabará com os lobistas corporativos de Washington e dará o governo “de volta ao povo”. Ao mesmo tempo, ele diz que unificará todos os diversos setores (branco e negro, rico e pobre, jovem e velho, homem e mulher, homossexual e heterossexual, democratas e republicanos) em sua cruzada por uma ‘mudança’ e por uma ‘nova política’.

A crise do Partido Democrata é a crise de um partido imperialista, como ficou subentendido na recente ameaça feita por Clinton de “destruir” o Irã. De sua parte, não havia muito tempo que Obama ameaçara bombear o Paquistão.

A competição pelas primárias degenerou-se em um espetáculo de crise política entrelaçado de fraudes e traições. Isso demonstrou o quanto está perdida e destruída a noção de que o Partido Democrata servirá como um veículo de mudança social progressista.