O texto seguinte é a segunda parte de palestras de
Nick Beams, secretário nacional do Socialist Equality Party
(SEP) na Austrália e membro do comite editorial internacional
do World Socialist Web Site, realizadas em encontros públicos
em Sydney e Melbourne nos dias 9 e 15 de abril.
O SEP e o International Students for Social Equality chamaram
os encontros públicos para discutir o significado para
o mundo do aprofundamento da crise que arruína o sistema
financeiro e bancário dos EUA. Em ambos os encontros foi
alto o comparecimento, com a audiência incluindo trabalhadores
e estudantes universitários, alguns do exterior. Após
o relato de Beams, houve discussões importantes cobrindo
uma ampla gama de questões sobre as causas e implicações
do caos financeiro. A primeira parte
foi publicada no dia 6 de maio 2008.
Há um significado profundo no fato de a crise financeira
que agora ameaça o capitalismo mundial ter surgido justamente
nos Estados Unidos - o coração da economia mundial.
Se observarmos a história da economia do século
XX, podemos dividi-la em duas metades. Os primeiros 50 anos foram
dominados pelas conseqüências destrutivas da quebra
da economia mundial, logo após o período de grande
expansão que caracterizou o século XIX. Após
1945, um novo período de expansão começou,
o que parecia ter colocado um ponto final na terrível seqüência
de eventos das décadas anteriores.
Esta expansão ocorrida no pós-guerra teve como
principal motor a força da economia dos EUA. Foi esta força
econômica, e não apenas sua vitória militar
na II Guerra Mundial, que permitiu aos EUA construir as estruturas
para um período de expansão capitalista sem precedentes.
O tratado de Bretton Woods, de 1944, estabeleceu um novo sistema
financeiro internacional, enquanto o Plano Marshall de 1947 garantiu
a reconstrução da Europa devastada pela guerra.
Este crescimento econômico sem precedentes fez florescer
todo tipo de ilusões reformistas, principalmente aquelas
associadas com o programa do keynesianismo. O keynesianismo sustentava
que depressões econômicas, como aquela dos anos 1930,
eram coisa do passado, pois governos e autoridades financeiras
eram agora capazes de regular a economia capitalista através
do controle das taxas de juros.
Parecia que as contradições do capitalismo estavam
superadas. Mas elas estavam prestes a vir à tona, mais
uma vez, no fim da década de 1960. As bases da expansão
do pós-guerra residiam no aumento da taxa de lucro, possibilitada
apenas pela extensão dos novos sistemas americanos de produção
para o resto do planeta. Agora, no entanto, a taxa de lucro começou
a cair.
Além disso, as contradições inerentes
ao sistema monetário internacional, estabilizadas pelo
Tratado de Bretton Woods, começaram a reaparecer. O Tratado
de Bretton Woods foi uma tentativa de superar a contradição
central que atingira o sistema capitalista mundial - a contradição
entre o desenvolvimento da economia global e a divisão
do mundo em Estados Nacionais rivais.
Há muitos anos que o capitalismo se desenvolveu para
além dos estreitos limites dos Estados Nacionais e seus
mercados também nacionais. Mesmo o maior mercado nacional
de todos -aquele dos Estados Unidos - já não era
mais suficiente. Para os administradores americanos, esta é
uma das principais lições dos anos 1930. Nenhuma
economia nacional poderia funcionar sem uma economia global viável.
No entanto, para viabilizar uma economia global, é necessário
que exista um sistema monetário global. E o que poderia
funcionar como moeda mundial? Um retorno ao padrão do ouro
foi tentado na década de 1920, mas, se provou desastroso.
Seria possível estabelecer algum tipo de papel moeda e
um sistema de crédito mundiais? Esta era a proposta de
Maynard Keynes. Um sistema de crédito e um papel moeda
mundiais requerem, no entanto, a administração de
um organismo com autoridade política e financeira também
mundiais. Para estabelecer isto, no entanto, o governo dos EUA
e outras potências capitalistas teriam que ceder sua autoridade
para este organismo. Os EUA certamente não estavam inclinados
a fazer isto e então foi assumido um compromisso. O dólar
americano funcionaria como a moeda mundial, lastreado pelo ouro
na taxa de US$ 35 por onça.
Mas a rápida expansão da economia capitalista
após o boom pós-guerra, possível apenas após
a criação do sistema monetário internacional
de Bretton Woods, levou as contradições para o coração
do sistema - entre o papel do dólar americano como moeda
internacional e seu papel como moeda corrente de um Estado Nação,
os EUA.
Ao redor do fim dos anos 1960, o volume circulante de dólares
na economia mundial era largamente superior à quantidade
de ouro que deveria servir de lastro, entesouradada nos Estados
Unidos. Em resposta a uma corrida ao dólar - e a movimentos
para converter o papel moeda em ouro, enfraquecendo a posição
dos Estados Unidos - o presidente Nixon colocou um fim, em 15
de agosto de 1971, ao Tratado de Bretton Woods, desvinculando
o dólar do ouro. Em 1973, após tentativas frustradas
de estabelecer uma relação fixa entre as principais
moedas mundiais, teve início o regime de câmbio flutuante.
A desindustrialização da América
O colapso do sistema de Bretton Woods foi a expressão
inicial do relativo declínio da posição econômica
dos Estados Unidos frente às demais potências capitalistas
mundiais. Esse declínio assumiu uma aparência mais
fantasmagórica no fim dos anos 1970, com o dólar
atingindo as cotações mais baixas da história
e com a estagflação (do inglês stagflation)
da economia mundial - uma combinação de crescente
inflação com crescimento mínimo, recessão
e os maiores níveis de desemprego desde o fim da guerra.
Em 1979 Paul Volcker, então presidente do Banco Central
dos EUA, deu início a um esforço unificado, no interesse
da classe capitalista americana, para superar estes problemas.
O Choque Volcker, como ficou conhecido, assistiu
ao aumento das taxas de juros a níveis recordes. A política
de Volcker tinha dois propósitos relacionados: elevar o
valor do dólar americano e garantir sua posição
de predominância como moeda corrente (e as decorrentes vantagens
que isto traz aos EUA), e eliminou os setores não lucrativos
da indústria americana, forçando uma reestruturação
da economia dos EUA para restabelecer a taxa de lucro.
Essas medidas envolveram uma ofensiva impiedosa contra a classe
trabalhadora americana, a começar pela demissão
em massa dos controladores de vôo e a destruição
de seu sindicato, PATCO, em 1981; o desenvolvimento dos métodos
de produção e gerenciamento computadorizados (o
primeiro PC foi desenvolvido em 1981); e pelo estabelecimento
das redes de produção globais, capazes de utilizar
a força-de-trabalho mais barata disponível.
O Choque Volcker de fato teve algum impacto. O
mercado de ações iniciou, a partir de 1982, uma
robusta recuperação, e a taxa de lucro começou
a aumentar. Mas o capitalismo americano estava longe de viver
um rápido crescimento. A década de 1980 terminou
na crise nas poupanças e empréstimos, com a falência
de mais de 1.000 instituições de empréstimos
e poupanças, algo que o economista John Kenneth Galbraith
chamou de a maior e mais custosa operação
de transgressão, equívoco e roubo de todos os tempos,
acumulando perdas de US$ 160 bilhões. O mercado de ações
colapsou em outubro de 1987, seguido pelo início da recessão
em 1990.
Mas os EUA e a economia mundial, como um todo, não viveram
uma nova fase de crescimento enquanto uma mudança histórica
não ocorreu no cenário econômico - o colapso
da União Soviética e dos regimes stalinistas do
Leste Europeu e a abertura das economias chinesa e indiana. Isso
disponibilizou vastos recursos de mão-de-obra barata, dobrando,
de acordo com algumas estimativas, a força de trabalho
global e transformando a estrutura do capitalismo americano, uma
transformação que está na origem da crise
financeira atual.
Ao final da II Guerra Mundial, o capitalismo americano havia
atingido a posição de supremacia econômica
mundial baseado nas suas possibilidades industriais. Enquanto
perdia sua relativa superioridade durante o boom do pós-guerra,
à medida em que as indústrias do Japão e
da Europa se expandiam, a indústria dos EUA ainda era uma
força que estava se reajustando. Nos últimos 30
anos, no entanto, temos assistido à des-industrialização
da economia americana, com a ascensão das atividades financeiras
e seus predominantes componentes dinâmicos.
O significado desta transformação pode ser percebido
com clareza se examinarmos os processos fundamentais da acumulação
capitalista. Uma das mais incríveis descobertas de Marx
foi ter desvendado o segredo da acumulação capitalista.
Ele mostrou que a origem última da riqueza capitalista
é a mais-valia que o capital extrai através do trabalho
assalariado. Na sociedade capitalista, a riqueza assume muitas
formas ofuscantes: o lucro industrial, a renda da terra e as riquezas
que provém dos ganhos no mercado financeiro - ações,
casas, terra. Em algum momento parece que, num passe de mágica,
dinheiro gera dinheiro, como se a riqueza simplesmente surgisse
de uma coisa.
Marx mostrou que, em última análise, todas essas
formas da riqueza capitalista representam a divisão da
mais-valia extraída da classe trabalhadora pelos diversos
possuidores de propriedades.
No volume II de O Capital ele explica que para o possuidor
do capital monetário (os bancos e as instituições
financeiras) o processo da produção aparece
meramente como uma conexão inevitável, como um mal
necessário para o processo de produção do
dinheiro. Todos os países onde domina o modo de produção
capitalista são, por esta razão, periodicamente
impelidos a tentar fazer dinheiro sem intervenção
do processo de produção. O processo aqui descrito
por Marx como periódico tornou-se hoje uma
característica permanente do capitalismo americano.
O quadro a seguir indica a extensão deste processo.
Em 1982, o lucro das instituições financeiras constituía
5% do lucro total das corporações, descontados os
impostos. Em 2007, elas ficaram com 41%, apesar de sua fatia no
valor total das corporações ter atingido um crescimento
de apenas 8% (de 8 para 16%). Entre 1982 e 2007, a participação
dos lucros do setor financeiro no PIB dos EUA aumentou em seis
vezes. Como notou o comentarista do Financial Times Martin Wolf,
por trás deste boom havia um esforço para alavancar
a economia como um todo. Endividamento virou a pedra filosofal,
transformando chumbo em ouro. Agora o processo de des-alavancagem
tenta transformar o ouro novamente em chumbo. Este processo de
alavancagem começou de modo vigoroso nos anos de 1990 e
realmente explodiu depois de 2000.
Em um artigo publicado no dia 19 de março de 2008 o
Economisti sustentava: Desde 2000 ... o valor das ações
detidas por fundos de investimento, com suas elevadas taxas e
alta alavancagem, simplesmente quintuplicou. ... O valor das operações
de crédito garantidas explodiu para perigosos US$ 45 trilhões.
Em 1980 as dívidas do setor financeiro eram de aproximadamente
um décimo das do setor não-financeiro. Agora elas
são 50%.
Este processo transformou bancos de investimento em máquinas
de débitos que realizam operações entre suas
contas em larga escala. A Goldman Sachs está utilizando
cerca de US$ 40 bilhões de capital como garantia para US$
1,1 trilhão em futuros. Na Merryl Lynch, onde a alavancagem
é maior, US$ 1 trilhão em futuros estão apoiados
em US$ 30 bilhões de capital garantido. Nos mercados emergentes,
mecanismos como este criam retornos astronômicos em valores.
Mas quando os mercados estão em perigo, uma pequena queda
no valor dos futuros pode derrubar os investidores.
No período em que este processo de alavancagem estava
centrado nos EUA, ele se tornou um fenômeno global. Em 1980,
o mercado financeiro global era praticamente equivalente ao PIB
mundial. Em 1993, ele era o dobro e, ao final de 2005, ele havia
crescido para 316% - ou mais de três vezes o PIB mundial.
Um dos principais fatores de sustentação deste
processo tem sido a redução das taxas de juros.
Isso tem sido possível, por sua vez, em virtude da redução
da inflação - resultado da produção
de mercadorias mais baratas na China e em outras regiões.
Em outras palavras, existe uma relação de simbiose
-outros diriam de parasitismo - entre o crescimento do capital
financeiro e a abertura de vastas novas ofertas de mão-de-obra
barata.
Como, então, a mais-valia extraída de trabalhadores
chineses é dividida, atualmente, entre os diferentes setores
do capital?
A oferta de crédito barato desempenhou um papel fundamental
na compra da terra e na construção de shopping-centers.
(Temos visto, por exemplo, os problemas encontrados pela empresa
australiana Centro, que tem tido problemas desde que se esgotou,
no fim do ano passado, o crédito barato em que ela baseou
a expansão de suas aquisições de shopping-centers.)
A oferta de crédito barato infla o preço dos
papéis futuros, inclusive aqueles dos shoppings. Isso significa
que, para recuperar seus investimentos, os proprietários
devem aumentar os aluguéis. Mas as gigantes do varejo,
como o Wal-Mart nos EUA -o maior importador de artigos da China
e agora o maior empregador dos EUA - podem pagar esses preços
graças à margem mais folgada que conseguem obter
importando mercadorias baratas da China.
A extração de mais-valia ocorre na produção
destas mercadorias. Ela surge da enorme diferença entre
o valor da força-de-trabalho (salários) dos trabalhadores
empregados e o valor dos objetos que produzem, para então
ser distribuída entre os vários possuidores de propriedades
- uma certa porção fica para o WalMart, outra para
o proprietário do shopping-center na forma de aluguel e
outra porção ainda fica para as instituições
financeiras que financiaram a sua construção.
O processo de inflar os papéis futuros pode continuar
enquanto o crédito continuar barato e os futuros continuarem
atraindo investimentos. Mas estas duas condições
devem ambas cessar, levando o processo a se desfazer, rumando
à direção oposta.
Seguindo o colapso do mercado de ações e da bolha
dot.com, o mercado imobiliário dos EUA experimentou um
boom inflacionário baseado no crédito barato, que
começou no fim da década de 1990, mas acelerou-se
rapidamente no fim da recessão de 2000-2001.
O novo paradigma era o modelo do criar e dividir.
Os que fazem ofertas de hipotecas colocaram enormes quantias disponíveis
para a compra de imóveis e então, imediatamente,
venderam as hipotecas às instituições financeiras,
cobrando uma taxa por terem originado o empréstimo. Então
as hipotecas seriam agregadas, divididas e cortadas em diversos
pacotes para serem vendidas a outras instituições
- os fundos de investimento ou outras formas especiais de investimento,
criadas fora do balanço financeiro dos bancos e outras
instituições.
O ganho com esses papéis garantidos pelos futuros era
proveniente do comprador de imóveis. A garantia financeira
do comprador não precisava ser examinada muito seriamente,
pois se ele não conseguisse pagar a dívida, um novo
empréstimo poderia ser tomado ou, na impossibilidade deste,
a casa poderia ser vendida por um preço mais alto.
O processo, no entanto, encontrou obstáculos intransponíveis
- a queda dos salários reais da classe trabalhadora americana,
algo em curso desde pelo menos os 30 anos anteriores, com exceção
de um breve período próximo ao fim de 1990, e que
continuou desde o fim da recessão em 2001.
E este declínio não é algo temporário.
Como apontou o economista americano Robert Reich, os diversos
mecanismos utilizados para sustentar os lucros - a entrada da
mulher no mercado de trabalho, a extensão das jornadas
e, finalmente, o aumento do endividamento, sobretudo através
de financiamentos imobiliários - estão esgotados.
Milhões de trabalhadores americanos e suas famílias
estão enfrentando uma verdadeira catástrofe, com
o preço de venda de suas casas caindo abaixo do débito
de suas hipotecas, fazendo-os proprietários de valores
negativos - um processo que está se reproduzindo em todo
o mundo.