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Sombras de 1929: as implicações globais do colapso bancário americano

Parte 2

Por Nick Beams
7 de maio de 2008

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O texto seguinte é a segunda parte de palestras de Nick Beams, secretário nacional do Socialist Equality Party (SEP) na Austrália e membro do comite editorial internacional do World Socialist Web Site, realizadas em encontros públicos em Sydney e Melbourne nos dias 9 e 15 de abril.

O SEP e o International Students for Social Equality chamaram os encontros públicos para discutir o significado para o mundo do aprofundamento da crise que arruína o sistema financeiro e bancário dos EUA. Em ambos os encontros foi alto o comparecimento, com a audiência incluindo trabalhadores e estudantes universitários, alguns do exterior. Após o relato de Beams, houve discussões importantes cobrindo uma ampla gama de questões sobre as causas e implicações do caos financeiro. A primeira parte foi publicada no dia 6 de maio 2008.

Há um significado profundo no fato de a crise financeira que agora ameaça o capitalismo mundial ter surgido justamente nos Estados Unidos - o coração da economia mundial.

Se observarmos a história da economia do século XX, podemos dividi-la em duas metades. Os primeiros 50 anos foram dominados pelas conseqüências destrutivas da quebra da economia mundial, logo após o período de grande expansão que caracterizou o século XIX. Após 1945, um novo período de expansão começou, o que parecia ter colocado um ponto final na terrível seqüência de eventos das décadas anteriores.

Esta expansão ocorrida no pós-guerra teve como principal motor a força da economia dos EUA. Foi esta força econômica, e não apenas sua vitória militar na II Guerra Mundial, que permitiu aos EUA construir as estruturas para um período de expansão capitalista sem precedentes. O tratado de Bretton Woods, de 1944, estabeleceu um novo sistema financeiro internacional, enquanto o Plano Marshall de 1947 garantiu a reconstrução da Europa devastada pela guerra.

Este crescimento econômico sem precedentes fez florescer todo tipo de ilusões reformistas, principalmente aquelas associadas com o programa do keynesianismo. O keynesianismo sustentava que depressões econômicas, como aquela dos anos 1930, eram coisa do passado, pois governos e autoridades financeiras eram agora capazes de regular a economia capitalista através do controle das taxas de juros.

Parecia que as contradições do capitalismo estavam superadas. Mas elas estavam prestes a vir à tona, mais uma vez, no fim da década de 1960. As bases da expansão do pós-guerra residiam no aumento da taxa de lucro, possibilitada apenas pela extensão dos novos sistemas americanos de produção para o resto do planeta. Agora, no entanto, a taxa de lucro começou a cair.

Além disso, as contradições inerentes ao sistema monetário internacional, estabilizadas pelo Tratado de Bretton Woods, começaram a reaparecer. O Tratado de Bretton Woods foi uma tentativa de superar a contradição central que atingira o sistema capitalista mundial - a contradição entre o desenvolvimento da economia global e a divisão do mundo em Estados Nacionais rivais.

Há muitos anos que o capitalismo se desenvolveu para além dos estreitos limites dos Estados Nacionais e seus mercados também nacionais. Mesmo o maior mercado nacional de todos -aquele dos Estados Unidos - já não era mais suficiente. Para os administradores americanos, esta é uma das principais lições dos anos 1930. Nenhuma economia nacional poderia funcionar sem uma economia global viável.

No entanto, para viabilizar uma economia global, é necessário que exista um sistema monetário global. E o que poderia funcionar como moeda mundial? Um retorno ao padrão do ouro foi tentado na década de 1920, mas, se provou desastroso. Seria possível estabelecer algum tipo de papel moeda e um sistema de crédito mundiais? Esta era a proposta de Maynard Keynes. Um sistema de crédito e um papel moeda mundiais requerem, no entanto, a administração de um organismo com autoridade política e financeira também mundiais. Para estabelecer isto, no entanto, o governo dos EUA e outras potências capitalistas teriam que ceder sua autoridade para este organismo. Os EUA certamente não estavam inclinados a fazer isto e então foi assumido um compromisso. O dólar americano funcionaria como a moeda mundial, lastreado pelo ouro na taxa de US$ 35 por onça.

Mas a rápida expansão da economia capitalista após o boom pós-guerra, possível apenas após a criação do sistema monetário internacional de Bretton Woods, levou as contradições para o coração do sistema - entre o papel do dólar americano como moeda internacional e seu papel como moeda corrente de um Estado Nação, os EUA.

Ao redor do fim dos anos 1960, o volume circulante de dólares na economia mundial era largamente superior à quantidade de ouro que deveria servir de lastro, entesouradada nos Estados Unidos. Em resposta a uma corrida ao dólar - e a movimentos para converter o papel moeda em ouro, enfraquecendo a posição dos Estados Unidos - o presidente Nixon colocou um fim, em 15 de agosto de 1971, ao Tratado de Bretton Woods, desvinculando o dólar do ouro. Em 1973, após tentativas frustradas de estabelecer uma relação fixa entre as principais moedas mundiais, teve início o regime de câmbio flutuante.

A desindustrialização da América

O colapso do sistema de Bretton Woods foi a expressão inicial do relativo declínio da posição econômica dos Estados Unidos frente às demais potências capitalistas mundiais. Esse declínio assumiu uma aparência mais fantasmagórica no fim dos anos 1970, com o dólar atingindo as cotações mais baixas da história e com a estagflação (do inglês stagflation) da economia mundial - uma combinação de crescente inflação com crescimento mínimo, recessão e os maiores níveis de desemprego desde o fim da guerra.

Em 1979 Paul Volcker, então presidente do Banco Central dos EUA, deu início a um esforço unificado, no interesse da classe capitalista americana, para superar estes problemas.

O “Choque Volcker”, como ficou conhecido, assistiu ao aumento das taxas de juros a níveis recordes. A política de Volcker tinha dois propósitos relacionados: elevar o valor do dólar americano e garantir sua posição de predominância como moeda corrente (e as decorrentes vantagens que isto traz aos EUA), e eliminou os setores não lucrativos da indústria americana, forçando uma reestruturação da economia dos EUA para restabelecer a taxa de lucro.

Essas medidas envolveram uma ofensiva impiedosa contra a classe trabalhadora americana, a começar pela demissão em massa dos controladores de vôo e a destruição de seu sindicato, PATCO, em 1981; o desenvolvimento dos métodos de produção e gerenciamento computadorizados (o primeiro PC foi desenvolvido em 1981); e pelo estabelecimento das redes de produção globais, capazes de utilizar a força-de-trabalho mais barata disponível.

O “Choque Volcker” de fato teve algum impacto. O mercado de ações iniciou, a partir de 1982, uma robusta recuperação, e a taxa de lucro começou a aumentar. Mas o capitalismo americano estava longe de viver um rápido crescimento. A década de 1980 terminou na crise nas poupanças e empréstimos, com a falência de mais de 1.000 instituições de empréstimos e poupanças, algo que o economista John Kenneth Galbraith chamou de “a maior e mais custosa operação de transgressão, equívoco e roubo de todos os tempos”, acumulando perdas de US$ 160 bilhões. O mercado de ações colapsou em outubro de 1987, seguido pelo início da recessão em 1990.

Mas os EUA e a economia mundial, como um todo, não viveram uma nova fase de crescimento enquanto uma mudança histórica não ocorreu no cenário econômico - o colapso da União Soviética e dos regimes stalinistas do Leste Europeu e a abertura das economias chinesa e indiana. Isso disponibilizou vastos recursos de mão-de-obra barata, dobrando, de acordo com algumas estimativas, a força de trabalho global e transformando a estrutura do capitalismo americano, uma transformação que está na origem da crise financeira atual.

Ao final da II Guerra Mundial, o capitalismo americano havia atingido a posição de supremacia econômica mundial baseado nas suas possibilidades industriais. Enquanto perdia sua relativa superioridade durante o boom do pós-guerra, à medida em que as indústrias do Japão e da Europa se expandiam, a indústria dos EUA ainda era uma força que estava se reajustando. Nos últimos 30 anos, no entanto, temos assistido à des-industrialização da economia americana, com a ascensão das atividades financeiras e seus predominantes componentes dinâmicos.

O significado desta transformação pode ser percebido com clareza se examinarmos os processos fundamentais da acumulação capitalista. Uma das mais incríveis descobertas de Marx foi ter desvendado o segredo da acumulação capitalista. Ele mostrou que a origem última da riqueza capitalista é a mais-valia que o capital extrai através do trabalho assalariado. Na sociedade capitalista, a riqueza assume muitas formas ofuscantes: o lucro industrial, a renda da terra e as riquezas que provém dos ganhos no mercado financeiro - ações, casas, terra. Em algum momento parece que, num passe de mágica, dinheiro gera dinheiro, como se a riqueza simplesmente surgisse de uma coisa.

Marx mostrou que, em última análise, todas essas formas da riqueza capitalista representam a divisão da mais-valia extraída da classe trabalhadora pelos diversos possuidores de propriedades.

No volume II de O Capital ele explica que para o possuidor do capital monetário (os bancos e as instituições financeiras) “o processo da produção aparece meramente como uma conexão inevitável, como um mal necessário para o processo de produção do dinheiro. Todos os países onde domina o modo de produção capitalista são, por esta razão, periodicamente impelidos a tentar fazer dinheiro sem ‘intervenção’ do processo de produção.” O processo aqui descrito por Marx como “periódico” tornou-se hoje uma característica permanente do capitalismo americano.

O quadro a seguir indica a extensão deste processo. Em 1982, o lucro das instituições financeiras constituía 5% do lucro total das corporações, descontados os impostos. Em 2007, elas ficaram com 41%, apesar de sua fatia no valor total das corporações ter atingido um crescimento de apenas 8% (de 8 para 16%). Entre 1982 e 2007, a participação dos lucros do setor financeiro no PIB dos EUA aumentou em seis vezes. Como notou o comentarista do Financial Times Martin Wolf, por trás deste boom havia um esforço para alavancar a economia como um todo. Endividamento virou a pedra filosofal, transformando chumbo em ouro. Agora o processo de des-alavancagem tenta transformar o ouro novamente em chumbo. Este processo de alavancagem começou de modo vigoroso nos anos de 1990 e realmente explodiu depois de 2000.

Em um artigo publicado no dia 19 de março de 2008 o Economisti sustentava: “Desde 2000 ... o valor das ações detidas por fundos de investimento, com suas elevadas taxas e alta alavancagem, simplesmente quintuplicou. ... O valor das operações de crédito garantidas explodiu para perigosos US$ 45 trilhões. Em 1980 as dívidas do setor financeiro eram de aproximadamente um décimo das do setor não-financeiro. Agora elas são 50%.

“Este processo transformou bancos de investimento em máquinas de débitos que realizam operações entre suas contas em larga escala. A Goldman Sachs está utilizando cerca de US$ 40 bilhões de capital como garantia para US$ 1,1 trilhão em futuros. Na Merryl Lynch, onde a alavancagem é maior, US$ 1 trilhão em futuros estão apoiados em US$ 30 bilhões de capital garantido. Nos mercados emergentes, mecanismos como este criam retornos astronômicos em valores. Mas quando os mercados estão em perigo, uma pequena queda no valor dos futuros pode derrubar os investidores.”

No período em que este processo de alavancagem estava centrado nos EUA, ele se tornou um fenômeno global. Em 1980, o mercado financeiro global era praticamente equivalente ao PIB mundial. Em 1993, ele era o dobro e, ao final de 2005, ele havia crescido para 316% - ou mais de três vezes o PIB mundial.

Um dos principais fatores de sustentação deste processo tem sido a redução das taxas de juros. Isso tem sido possível, por sua vez, em virtude da redução da inflação - resultado da produção de mercadorias mais baratas na China e em outras regiões. Em outras palavras, existe uma relação de simbiose -outros diriam de parasitismo - entre o crescimento do capital financeiro e a abertura de vastas novas ofertas de mão-de-obra barata.

Como, então, a mais-valia extraída de trabalhadores chineses é dividida, atualmente, entre os diferentes setores do capital?

A oferta de crédito barato desempenhou um papel fundamental na compra da terra e na construção de shopping-centers. (Temos visto, por exemplo, os problemas encontrados pela empresa australiana Centro, que tem tido problemas desde que se esgotou, no fim do ano passado, o crédito barato em que ela baseou a expansão de suas aquisições de shopping-centers.)

A oferta de crédito barato infla o preço dos papéis futuros, inclusive aqueles dos shoppings. Isso significa que, para recuperar seus investimentos, os proprietários devem aumentar os aluguéis. Mas as gigantes do varejo, como o Wal-Mart nos EUA -o maior importador de artigos da China e agora o maior empregador dos EUA - podem pagar esses preços graças à margem mais folgada que conseguem obter importando mercadorias baratas da China.

A extração de mais-valia ocorre na produção destas mercadorias. Ela surge da enorme diferença entre o valor da força-de-trabalho (salários) dos trabalhadores empregados e o valor dos objetos que produzem, para então ser distribuída entre os vários possuidores de propriedades - uma certa porção fica para o WalMart, outra para o proprietário do shopping-center na forma de aluguel e outra porção ainda fica para as instituições financeiras que financiaram a sua construção.

O processo de inflar os papéis futuros pode continuar enquanto o crédito continuar barato e os futuros continuarem atraindo investimentos. Mas estas duas condições devem ambas cessar, levando o processo a se desfazer, rumando à direção oposta.

Seguindo o colapso do mercado de ações e da bolha dot.com, o mercado imobiliário dos EUA experimentou um boom inflacionário baseado no crédito barato, que começou no fim da década de 1990, mas acelerou-se rapidamente no fim da recessão de 2000-2001.

O novo paradigma era o modelo do “criar e dividir”. Os que fazem ofertas de hipotecas colocaram enormes quantias disponíveis para a compra de imóveis e então, imediatamente, venderam as hipotecas às instituições financeiras, cobrando uma taxa por terem originado o empréstimo. Então as hipotecas seriam agregadas, divididas e cortadas em diversos pacotes para serem vendidas a outras instituições - os fundos de investimento ou outras formas especiais de investimento, criadas fora do balanço financeiro dos bancos e outras instituições.

O ganho com esses papéis garantidos pelos futuros era proveniente do comprador de imóveis. A garantia financeira do comprador não precisava ser examinada muito seriamente, pois se ele não conseguisse pagar a dívida, um novo empréstimo poderia ser tomado ou, na impossibilidade deste, a casa poderia ser vendida por um preço mais alto.

O processo, no entanto, encontrou obstáculos intransponíveis - a queda dos salários reais da classe trabalhadora americana, algo em curso desde pelo menos os 30 anos anteriores, com exceção de um breve período próximo ao fim de 1990, e que continuou desde o fim da recessão em 2001.

E este declínio não é algo temporário. Como apontou o economista americano Robert Reich, os diversos mecanismos utilizados para sustentar os lucros - a entrada da mulher no mercado de trabalho, a extensão das jornadas e, finalmente, o aumento do endividamento, sobretudo através de financiamentos imobiliários - estão esgotados. Milhões de trabalhadores americanos e suas famílias estão enfrentando uma verdadeira catástrofe, com o preço de venda de suas casas caindo abaixo do débito de suas hipotecas, fazendo-os proprietários de valores negativos - um processo que está se reproduzindo em todo o mundo.

Continua