Esta é a terceira e última parte de uma série
de artigos sobre a crise mundial da fome. A parte
um foi publicada em 26 de junho. A parte
dois apareceu em 30 de junho.
A atual crise dos alimentos reflete não apenas eventos
financeiros dos anos recentes, mas a política de longo-prazo
do imperialismo mundial. Em vez de permitir uma melhora planejada
da infra-estrutura e técnicas de plantio, a globalização
sobre uma base capitalista resultou na restrição
da produção agrícola em muitas partes do
mundo. Isso foi implementado para diminuir a competição
e prevenir que saturações de produtos no mercado
prejudicassem os interesses do lucro das grandes potências.
Um aspecto principal da política imperialista foi limitar
a produção agrícola no assim chamado Primeiro
Mundo, para prevenir quedas repentinas nos preços.
Nos EUA, essa política assumiu a forma do Conservation
Reserve Program (Programa de Conservação de
Reservas), primeiro aprovado como parte do ato de segurança
alimentar de 1985.
O programa paga aos fazendeiros inscritos 50 dólares
por acre de terra na qual eles deixam de plantar. Um limite nacional
de 180 mil quilômetros quadrados (cerca de 10 por cento
da terra arável dos EUA) foi imposto sobre o programa e
depois reduzido a 130 mil quilômetros quadrados em 2007.
Embora o projeto tivesse sido apresentado como um meio de limitar
a erosão do solo causada por excesso de plantio em terras
ecologicamente vulneráveis, muito da terra sem cultivo
registrada no projeto não era, de fato, vulnerável
à erosão, mas escolhida pelos fazendeiros com base
no preço de mercado dos produtos de cultivo que poderiam
ser plantados. Isso era coerente com os objetivos oficiais da
lei, que eram a redução da área de
plantio e a manutenção de preços-alvo
e empréstimos para suporte de preço.
Pagamentos similares para fazendeiros por terras mantidas sem
cultivo foram adotados, de país em país, depois
da reforma de 1992 da Política Agrícola Comum européia.
A produção entrou em colapso no ex-bloco soviético
depois da dissolução da URSS, conforme indústrias
planejadas soviéticas eram fechadas e vendidas pelos governantes
stalinistas e seus conselheiros econômicos ocidentais. De
acordo com estatísticas da Organização das
Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
(FAO), a produção agrícola na antiga URSS
caiu 38 por cento nos primeiros quatro anos depois de sua dissolução
e a produção alimentícia per capta caiu 40
por cento. Hoje, mesmo depois de uma recuperação
econômica parcial iniciada a partir de 2000, amplamente
impulsionada por vendas de petróleo e gás, a área
cultivada total na ex-URSS é 12 por cento menor que nos
tempos soviéticos.
O colapso da indústria de maquinário agrícola
da União Soviética e o desaparecimento dos subsídios
soviéticos destruíram os setores agrícolas
dos estados alinhados. De acordo com o Departamento de Agricultura
dos EUA, a produção agrícola cubana caiu
54 por cento e o consumo de alimentos 36 por cento de 1989 a 1994,
e a produção de grãos da Coréia do
Norte caiu 40 por cento de 1990 a 1999.
Nos países em desenvolvimento, a agricultura e infra-estrutura
foram devastadas tanto por surtos de exportação
vindos de países ricos quanto por programas do Fundo Monetário
Internacional (FMI), que ditou políticas governamentais
em troca de empréstimos para ajudar com a dívida
do estado. Conforme a agricultura era convertida de subsistência
regulada em produção de colheitas para exportação,
países em desenvolvimento foram abertos como destinos de
exportação e tiveram mais renda de suas próprias
exportações deslocada para pagar dívidas
a bancos do Primeiro Mundo.
A liberalização dos mercados do Terceiro
Mundo e sua abertura às exportações
das potências imperialistas devastou os fazendeiros locais,
cujos produtos foram forçados a competir com exportados
altamente subsidiados. Os EUA gastam aproximadamente 20 bilhões
de dólares e a União Européia 45 bilhões
de euros em subsídios às exportações
para manter baixos os preços de seus produtos agrícolas
vendidos nos mercados estrangeiros. No Haiti, a liberalização
dos mercados agrícolas de 1985 a 1999 resultou numa queda
de 40 por cento na produção doméstica de
arroz, de 163 quilotons a 100 quilotons, enquanto o arroz importado
dos EUA passou a representar, de antigos 4 por cento, 63 por cento
de todo o arroz que circula no mercado haitiano.
Programas do FMI eliminaram a regulação estatal
do suprimento alimentício e a provisão de subsídios
para fertilizantes, irrigação e vacinas, que o FMI
declarou um dreno inaceitável dos fundos estatais. A produção
mundial de produtos agrícolas de mercado, como café,
tabaco e cacau, foi às alturas, mas populações
inteiras se tornaram vulneráveis à penúria.
Na década de 1980, a produção de grãos
per capta da África caiu de 150 a 125 quilogramas, enquanto
sua importação de grãos foi de 3,72 megatons
(Mt) em 1974 a 8,47 Mt em 1993.
Na Somália, a desvalorização do shilling
somaliano ordenada pelo FMI levou a enormes saltos nos preços
de fertilizantes importados e vacinas para o gado, e o governo
progressivamente cortou subsídios aos fazendeiros e trabalhadores
nômades. O colapso de 1991 nas hordas de gado por doença
e a queda resultante da produção agrícola
foram importantes fatores da penúria de 1992, que então
foi usada para justificar a invasão do país pelos
EUA.
No Kenya, país que foi por muito tempo um grande exportador
africano de alimentos, a reforma de 1996, apoiada pelo FMI, da
Comissão Nacional de Cereais e Produção devastou
a economia e transformou o Kenya num importador de alimentos.
Sob pressão para funcionar como um empreendimento comercial
pelo lucro, a comissão passou a cobrar mais por necessidades
primárias da produção agrícola, como
fertilizantes, e permitiu que intermediários assumissem
muito do armazenamento de distribuição da colheita
para cortar custos de distribuição. Em 2001, fazendeiros
estavam recebendo 400 shillings de negociantes privados por um
pacote de 90 quilogramas de arroz que custava 719 shillings para
produzir.
No Malawi, a desregulação implementada pelo FMI
no mercado estatal de grãos levou a uma explosão
do número de negociantes privados. Quando uma enchente
atingiu as plantações de milho em 2001, o estado,
sob pressão para levantar fundos enquanto doadores internacionais
como os EUA e a Grã Bretanha se recusavam a fornecer ajuda,
vendeu sua reserva estratégica de grãos para negociantes
privados por um terço do preço de mercado. Os preços
subiram pelo final de 2001 enquanto negociantes armazenavam o
grão, e o país experimentou uma grande crise de
fome em 2002.
A condição pobre de boa parte da infra-estrutura
agrícola do Terceiro Mundo, depois de décadas
de tal tratamento, é senso comum, apesar de raramente discutida
na grande mídia. Num comunicado de março de 2004,
o diretor da FAO Jacques Diouf apontou: A África
é a única região do mundo em que a produção
alimentícia per capta média tem caído constantemente
nos 40 anos passados.... Existem muitas causas para isso. Existe,
por exemplo, um uso insignificante de inputs modernos,
com apenas 22 quilos de fertilizante aplicados a cada hectare
de terra arável, comparado com 144 quilogramas na Ásia.
O nível é ainda mais baixo na África subsaariana,
que utiliza 10 quilogramas por hectare.
As sementes selecionadas que impulsionaram o sucesso
da Revolução Verde [o aumento na produtividade das
colheitas durante as décadas de 1960 e 1970] na Ásia
e na América Latina quase não são usadas
na África. Há também uma profunda falta de
estradas rurais e complexos de armazenamento e processamento.
Outro fator que influencia fortemente a performance agrícola
pobre [da África] é a água. Só 1,6
por cento de suas reservas hídricas é usado para
irrigação, comparado com 14 por cento na Ásia.
Apenas 7 por cento da terra de plantio africana é irrigada,
contra 40 por cento na Ásia, e se excluíssemos os
cinco países mais desenvolvidos nesse quesito - Marrocos,
Egito, Sudão, Madagascar e África do Sul - a proporção
dos 48 países restantes cairia para 3 por cento. Os rendimentos
de colheitas irrigadas são 3 vezes maiores que rendimentos
de colheitas alimentadas pela chuva, mas a atividade agrícola
em 93 por cento da terra arável da África depende
de chuvas extremamente erráticas, e portanto está
exposta ao risco de seca. Oitenta por cento das emergências
alimentícias estão ligadas à água,
especialmente a falta dela.
As dificuldades de infra-estrutura não estão
limitadas à África. Na Ásia, o Instituto
Internacional de Pesquisa em Arroz, o IRRI (na sigla em inglês),
notou a redução nos investimentos em pesquisa, a
falta de novos projetos de irrigação e a manutenção
inadequada da atual infra-estrutura de irrigação,
como grandes problemas. Acrescentou que uma lacuna [produtiva]
inexplorada de 1-2 toneladas por hectare existe na maioria dos
campos de plantio de arroz asiáticos, citando ausência
de boa irrigação e fertilizantes, controle de pestes
e doenças, armazenamento pós-colheita e sistemas
de transporte.
De acordo com o India Times, os rendimentos de arroz
na primavera são de 3,12 toneladas por hectare (t/ha) na
Índia, contra 4,17 t/ha em média na Ásia
e 6,26 t/ha na China. Quanto ao trigo, a Índia produz 2,6
t/ha, abaixo dos 4,1 t/ha da China e os 5,0 t/ha da Europa. O
Times observou que o gasto no desenvolvimento rural era
de, em média, 14,5 por cento em 1986-1990, mas, após
a liberalização de 1991 e a abertura ao capital
internacional, caiu para 6 por cento. O crescimento da produção
agrícola foi de 2,62 por cento para 0,5 por cento.
Enquanto a agricultura na China é mais produtiva do
que na Índia, ela encara seus próprios desafios.
A industrialização sem coordenação
fez decair a terra disponível para plantio de 127,6 para
121,7 milhões de hectares, de acordo com números
do Ministério da Terra e Recursos. Isso apesar da implementação
repetida de medidas do governo central para limitar a venda de
terras por fazendeiros a oficiais locais, que tinham como objetivo
o estabelecimento de fábricas ou empresas em terra de plantio.
A terra próxima às fábricas, muitas das quais
operadas com pouca consideração por padrões
ambientais, é com freqüência severamente poluída.
Conforme a crise da agricultura mundial empurra o suprimento
para baixo, o crescimento da população e a crescente
demanda por alimentos mais complexos em países industrializados
empurram a demanda para cima. Esta dicotomia entre poderosos desenvolvimentos
objetivos no capitalismo global dá à crise um caráter
particularmente explosivo.
O aumento da demanda por alimentos causado pelo crescimento
populacional não implica em geral num grande problema.
O crescimento populacional nesta década (grosseiramente
1,2 por cento ao ano) foi menor que o crescimento na década
de 1960, que era em média de 2 por cento ao ano - um momento
em que, graças às melhorias na produtividade e infra-estrutura,
a produção per capta de grãos subiu de 275
para 300 quilogramas.
Como um resultado de um menor investimento em agricultura e
pesquisa, no entanto, o crescimento do rendimento de colheitas
caiu e mal está acompanhando o crescimento populacional.
O Instituto Internacional de Pesquisas em Políticas Alimentícias
(IFPRI, na sigla em inglês) comenta: A negligência
da agricultura pelo investimento público, pesquisa e políticas
de serviço nas décadas passadas minou seu papel
central no crescimento econômico. Como um resultado, o crescimento
da produtividade agrícola caiu e está baixo demais
para superar os desafios atuais. De 1980 a 2004, o crescimento
da produtividade caiu de um máximo de 4,5 por cento para
2,0 por cento, no caso do trigo, 3,3 por cento para 1,0 por cento
no caso do milho, e 3,2 por cento para 1,5 por cento no caso do
arroz, de acordo com números da ONU.
Aos problemas sociais e industriais implicados no crescimento
vagaroso do suprimento alimentício, é preciso acrescentar
a demanda em alta causada por substanciais mudanças no
curso da economia global - notadamente o aumento nos lucros do
petróleo em países produtores e a industrialização
em uma série de países em desenvolvimento, especialmente
na Ásia.
Os dados disponíveis não sugerem que os maiores
produtores de petróleo que são tradicionalmente
importadores de grãos (exemplos: Arábia Saudita,
Nigéria) tenham contribuído para o aumento dos preços
importando mais grãos. O peso de suas importações
de arroz e trigo, na realidade, diminuiu nos últimos anos,
de acordo com números do Departamento de Agricultura dos
EUA - em parte por que importadores de grãos se recusaram
a comprar dos caros mercados mundiais devido ao estado ter fixado
baixos preços para o pão.
No entanto, a alta da renda do petróleo nesses países
- o preço do petróleo nos EUA subiu por um fator
de mais de 6 no período 2002-2008 - influenciou amplamente
as expectativas do mercado de que importadores de grãos
estarão aptos a pagar grandes quantias por arroz, trigo
e outros alimentos.
A alta dos padrões de vida e mais dietas intensivas
em carne e laticínios em certos países em desenvolvimento
aumentou a demanda por grãos - não apenas como alimento
humano, mas particularmente como ração animal. De
acordo com a Federação Internacional das Indústrias
de Rações, o uso mundial de grãos como ração
animal passou de 290 Megatons (Mt) em 1975 para 537 Mt em 1994
e 626 Mt em 2005. A FAO prevê um aumento de 60 por cento
no uso de grãos como ração no período
1996-2030, comparado com um aumento de 40 por cento no uso de
grãos como alimento humano.
Comparado com os níveis de 1990 de consumo per capta,
a China em 2005 consumiu 2,4 vezes mais carne, 3 vezes mais leite
e 2,3 vezes mais peixe. A Índia consumiu 1,2 vezes mais
alimentos per capta que em 1990, em todas as categorias. O Brasil
consumiu 1,7 vezes mais carne, 1,2 vezes mais leite e 0,9 vezes
a quantidade de peixe per capta de 1990.
Esses aumentos são importantes tanto em termos absolutos
quanto comparativos. Por exemplo, o consumo de carne na China
em 2007 era de 50 quilogramas por pessoa, contra 20 quilogramas
em 1980. Em comparação, o consumo per capta dos
EUA em 2004 era de 98 quilogramas.
O cada vez mais instável equilíbrio entre produção
e consumo é ameaçado também pelo aquecimento
global. Em um artigo de fevereiro de 2007, o Globe and Mail,
de Toronto, falou de um relatório do Grupo Consultivo de
Pesquisa Agrícola Internacional (CGIAR, na sigla em inglês)
que pinta um quadro sombrio dos efeitos do aquecimento global
no rendimento das colheitas.
O artigo dizia: Uma regra básica desenvolvida
por cientistas agrícolas é que, para cada grau Celsius
de aumento nas temperaturas acima de 35 graus durante estágios-chave
da temporada de crescimento, como a polinização,
a renda de colheita cai cerca de 10 por cento. Acrescentou
que a média global de temperaturas vai provavelmente
crescer entre 1,1 e 6,4 graus ao longo desse século, de
acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas
[IPC,c na sigla em inglês], sugerindo que, na maior parte
da gama de temperaturas futuras, as colheitas sofrerão
declínios problemáticos.
O relatório do CGIAR descreveu modelos de computador
analisando rendimentos de colheita em regiões - a metade
do extremo norte do subcontinente indiano, o sudeste asiático
e a parte da África logo ao sul do deserto do Saara - onde
as temperaturas freqüentemente alcançam 35 graus Celsius
ou mais durante as temporadas de crescimento do plantio.
O Globe and Mail concluiu, A produção
de cereais e milho na África está em risco, tanto
quanto o arroz em muito da Índia e do sudeste asiático....
A melhor terra para plantio de trigo, no largo arco de terra fértil
que se alonga do Paquistão, através do norte da
Índia, Nepal e Bangladesh, seria dizimada. Muito da área
se tornaria quente e seca demais para o plantio, colocando o suprimento
de comida de 200 milhões de pessoas em risco.
Um olhar adiantado sobre os possíveis efeitos do aquecimento
global é fornecido pela Austrália por dois anos
seguidos de secas, que a imprensa australiana amplamente colocou
como exacerbados pelo aquecimento global. O rendimento das colheitas
de trigo caiu de um nível normal de 25 Mt para 10.6 Mt
em 2007, com um rendimento antecipado de 13 Mt em 2008.
Conclusão
A escala dos desafios que enfrenta a agricultura mundial, e
as dimensões da crise inflacionária que já
se lançou sobre a população mundial apesar
do pleno suprimento de alimentos, marcam a irracionalidade do
capitalismo global.
Divididos como estão entre os interesses de lucro de
diferentes corporações e países, os capitalistas
responsáveis pela construção de políticas
não são capazes de planejar, racional e coerentemente,
a economia mundial e a agricultura para encarar esses desafios.
Em vez disso, eles observam a destruição ou degradação
de imensos recursos produtivos.
Essas contradições básicas são
agora exacerbadas e levadas a um ponto de crise pelo estouro da
bolha de crédito dos EUA e a subida nos preços do
petróleo. Apesar da necessidade humana elementar por comida
financeiramente acessível, a resposta da burguesia mundial
tem sido utilizar a crise dos preços como uma fonte de
lucros através da especulação, contrabando
ou organização de cartéis nacionais.
A onda de greves e manifestações com as quais
a classe trabalhadora internacional tem respondido à explosão
dos preços dos alimentos testemunha sobre sua unidade objetiva,
em oposição às forças do mercado mundial.
À perplexidade e medidas simbólicas dos governos
capitalistas e agências dominadas pelo imperialismo, como
a ONU, a classe trabalhadora deve contrapor a perspectiva revolucionária
do socialismo internacional. A força social que é
unicamente capaz de resolver a crise sobre uma base humana e progressista
é a classe trabalhadora internacional, com a unificação
por trás dela do campesinato e de todas as outras camadas
sociais oprimidas.
A tarefa histórica posta diante da classe trabalhadora
é a da reorganização da economia mundial
com uma base internacional, superando o conflito entre produção
a globalizada e o sistema do estado-nação, e a substituição
do princípio do lucro por uma produção cientificamente
planejada para o bem social, sobre a base da propriedade comum
dos meios de produção, controlados democraticamente
pela população trabalhadora.