Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês,
no dia 31 de dezembro de 2007.
O presidente do Paquistão, Pervez Musharraf, ordenou
no sábado que as forças militares e outras forças
de segurança tomassem quaisquer medidas necessárias
para pôr fim à onda de conflitos e protestos iniciada
após o assassinato da líder do Partido do Povo do
Paquistão (PPP), Benazir Bhutto, ex-primeira ministra e
atual candidata ao cargo, ocorrido no dia 27 de dezembro.
Musharraf ordenou que pessoas envolvidas em protestos fossem
enquadradas na famosa Lei Anti-Terrorismo Paquistanesa. Forças
militares já haviam sido posicionadas nas ruas das principais
cidades do país, especialmente na província natal
de Bhutto, Sindh. Na sexta (28/12) todo o país parou sob
uma greve geral.
No domingo (30/12), a imprensa falava em pelo menos 44 mortes
devido aos conflitos, mas não publicou uma estimativa quanto
ao número de mortos nas mãos da polícia e
dos militares.
Os manifestantes atacavam empresas e símbolos do governo,
inclusive edifícios públicos, postos de polícia,
estações de trem e cartórios eleitorais,
assim como escritórios e casas de políticos associados
com a Liga Muçulmana do Pakistão (Q), o partido
de sustentação militar e pró Musharraf.
Mesmo participando nas eleições para a Assembléia
Nacional e das províncias, marcada para 8 de janeiro, Bhutto
havia repetidamente acusado o regime de Musharraf de aparelhar
as eleições e apontado uma série de irregularidades.
Ela havia reclamado que organismos governamentais locais encarregados
da supervisão das eleições continuavam nas
mãos de lacaios do regime militar.
A maioria dos paquistaneses considera o governo militar do
Paquistão - apoiado pelos EUA - responsável pela
morte de Bhutto. Se o governo ou elementos da inteligência
militar do Paquistão não organizaram diretamente
o assassinato, pelo menos o facilitaram, ao não garantir
a Bhutto a segurança mais elementar.
A própria Bhutto havia repetidamente reclamado que o
governo se recusava a atender seus requisitos básicos de
segurança, incluindo a provisão de segurança
pessoal, veículos blindados e equipamento anti-bomba. Apesar
de não ter acusado o próprio Musharraf, ela já
havia acusado publicamente pessoas do aparato militar de inteligência
de serem responsáveis por um atentado contra sua vida no
dia 18 de outubro que matou 140 pessoas.
O Washington Post entrevistou um caminhoneiro de 30 anos que
afirmou que os protestos contra o governo "são o sentimento
do povo. Esta é sua reação natural".
O sentimento popular contra o regime tem apenas endurecido
nos últimos dias, quando o governo criou uma versão
contendo diversas contradições a respeito do assassinato
de Bhutto. Enquanto isso, o governo Bush tem se agrupado em torno
de Musharraf, absolvendo o ditador e o aparato militar de inteligência
paquistanês de qualquer responsabilidade pela morte de Bhutto.
Os militares paquistaneses têm sido aliados próximos
ao Pentágono nas últimas cinco décadas.
O governo de Musharraf tem dado um apoio fundamental aos EUA
na invasão e ocupação americana do Afeganistão
e apoiado também as aspirações geopolíticas
de Washington na região central e sul da Ásia, além
do Oriente Médio, dando ao comandante militar do governo
Bush que assumiu o poder em 1999 os louros de um "aliado
chave na guerra contra o terror". Nas últimas semanas
Musharraf autorizou um contingente de forças especiais
americanas com efetivo de centenas de soldados a começar
a operar no Paquistão, onde assumirá a liderança
nos esforços de atacar os paquistaneses que apóiam
a luta contra o regime de ocupação americana no
Afeganistão.
Como era de se esperar, o governo Bush e a servil mídia
americana fizeram coro ao regime de Musharraf, dizendo que o assassinato
é obra exclusivamente dos extremistas islâmicos.
Ignoram completamente os laços de longas décadas
entre o aparato militar e de segurança do Paquistão
e grupos fundamentalistas islâmicos radicais, incluindo
o Taliban e a Al Qaeda, e a intensa hostilidade dos militares
dirigida a Bhutto e ao PPP.
O pai de Benazir Bhutto, Zulfikhar Ali Bhutto, que governou
o Paquistão por seis anos nos anos 70, foi deposto por
um complô militar em 1977 e enforcado dois anos depois sob
o regime militar do ditador General Zia-ul Haq, apoiado pelos
EUA.
Quando questionado na sexta-feira se Washington continuaria
a apoiar Musharraf, o secretário de estado americano, Richard
Boucher, deixou claro que a retirada do apoio americano estava
fora de questão. "As opções são
combater ou não combater o terrorismo", disse ele.
Boucher também se contrapôs a afirmação
de um repórter de que Musharraf havia falhado em proteger
adequadamente Bhutto. "Eu acho que seria julgar precipitadamente
o que ocorreu na terça", ele disse. Um porta-voz do
Pentágono também assumiu uma linha semelhante no
sábado, declarando que "eu não sei o quão
eficiente pode ser qualquer segurança quando pessoas estão
dispostas a se matar".
Relatos oficiais, incluindo o do governo paquistanês,
afirmaram que Bhutto foi alvejada na saída de um comício
em Rawalpindi, imediatamente antes de um homem-bomba se explodir.
Mas na sexta-feira, o porta-voz do Ministério do Interior,
Brigadeiro Javed Iqbal Cheema, afirmou que Bhutto não havia
sido atingida por nenhuma bala, mas havia morrido devido ao choque
de sua cabeça contra a maçaneta do teto solar do
carro no qual andava. Bhutto estava de pé acenando para
partidários do PPP quando o ataque se iniciou.
As afirmações de Cheema têm sido contestadas
por testemunhas oculares. Farook Naik, principal advogado de Buttho
e antigo líder do PPP caracterizou as afirmações
do governo de calúnias sem fundamento.
Ele disse: "duas balas a atingiram, uma no abdômen
e outra na cabeça. O secretário pessoal de Bhutto,
Neheed Khan, e um oficial do partido Makhdoom Amin Fahim estavam
no carro e viram o que aconteceu".
Sherry Rehman, uma porta-voz do PPP que viajou com Bhutto para
o hospital de Rawalpindi e que mais tarde preparou seu corpo para
o enterro, disse à Reuters que Bhutto "tem uma ferida
a bala do lado esquerdo da parte de trás de sua cabeça.
A bala atravessou até o outro lado. Era uma ferida muito
grande e sangrou muito".
Rehman continuou: "Ela sangrava até quando nós
a banhávamos para o funeral. O governo agora tenta dizer
que ela se machucou sozinha, o que é ridículo. Isso
é realmente perigoso e sem sentido".
A versão governamental do evento também está
claramente em contradição com uma fita de vídeo
divulgada no Dawn News TV na noite de sábado. Produzido
por um cinegrafista amador, o vídeo mostra um assassino
armado atirando em Bhutto enquanto ela acena para a massa através
do teto solar de seu carro. O vídeo também mostra
claramente que Bhutto já havia entrado no carro antes da
explosão da bomba e que não havia cordão
de segurança em torno de seu veículo.
Ainda assim, o regime de Musharraf parece determinado a sustentar
sua versão bizarra da morte de Bhutto. "Nós
lhe demos a versão absoluta dos fatos... corroborada pela
versão dos médicos," disse Cheema no sábado.
De acordo com uma reportagem online do New York Times publicada
no domingo, "os especialistas em segurança paquistaneses
e ocidentais... acreditaram que a insistência do governo
de que Bhutto não foi morta por uma bala tinha como objetivo
desviar a atenção a respeito da falta de segurança
governamental ao redor de seu veículo quando ela deixava
o parque, na cidade onde o exército paquistanês está
sediado e onde a poderosa agência de inteligência
interna tem uma forte presença..."
Mas existem outras explicações. Atirar numa pessoa
em meio a uma multidão - já que também houve
relatos de um atirador de elite - exige um maior grau de habilidade
e treino do que detonar uma bomba suicida. Uma morte por disparo
envolve balas e a arma do crime, coisas que podem oferecer pistas
significativas sobre as origens da conspiração que
levou ao assassinato.
Em relação a isso, também é importante
assinalar que minutos após o assassinato de Bhutto as autoridades
ordenaram que a cena do crime fosse lavada. A água limpou
as manchas de sangue e, com elas, a prova crucial de DNA que poderia
identificar o homem-bomba suicida.
Está provado que o governo tem mentido para o povo paquistanês.
Basta ler uma carta aberta publicada por Athar Minallah, membro
do Conselho Diretor do Hospital de Rawalpindi. Minallah explica
que o doutor Mohammad Mussadiq Khan, professor de cirurgia do
hospital, atestou que a morte de Bhuto foi causada por uma ferida
a bala. Mas ele não colocou isso no seu relatório
médico, porque na lei paquistanesa apenas uma autópsia
pode determinar a causa da morte. Apesar dos protestos dos médicos
de plantão, o chefe de polícia de Rawalpindi Aziz
Saud recusou o pedido de autópsia.
A alegação do governo de que o líder do
Taliban paquistanês Baitullah Mehsud teria sido o mentor
do assassinato foi publicamente contestada por um porta-voz de
Mehsud. As autoridades não apresentaram nenhuma evidência
que contestasse a sua versão. Desde o momento em que ele
humilhou os militares no último verão, ao empreender
a captura de 300 soldados das tropas paquistanesas no Uaziristão,
Mehsud tem sido responsabilizado pelo governo por uma série
de ataques, incluindo a tentativa de assassinato de Bhutto em
18 de outubro.
O porta-voz do PPP, Farhatullah Babar, disse que a alegação
de que Mehsud foi o autor do assassinado de Bhutto parece ser
"uma história plantada, uma história incorreta,
porque eles querem desviar a atenção".
A história do governo paquistanês é tão
absurda que o próprio governo Bush está preocupado
de que isto esteja alimentando o sentimento popular contra o regime
e desacreditando os apoiadores americanos de Musharraf. Um grande
debate parece estar em curso dentro do governo Bush se é
aconselhável exigir do Islamabad uma investigação
internacional a respeito do assassinato.
Por vários dias após o assassinato de Bhutto,
o governo Bush insistiu que as eleições deveriam
ocorrer no dia 8 de janeiro como estava programado, apesar do
assassinato da mais importante líder de oposição.
As eleições foram uma farsa desde o início.
Elas foram "preparadas" por um estado de emergência
de 6 semanas, durante o qual Musharraf obrigou o judiciário
a remover todos os impedimentos legais e constitucionais a sua
reeleição à presidência. Com base no
decreto de emergência, Musharraf ordenou milhares de prisões,
introduziu leis draconianas de censura e restrições
à atividade política, que continuam em vigência.
Mas alegar agora que uma eleição seguida do assassinato
da principal figura de oposição, estando o próprio
regime amplamente suspeito de cumplicidade, seria "um exercício
de democracia", é ridículo.
Por mais de um ano, o governo Bush tem procurado prevenir o
colapso do regime de Musharraf, cada vez mais impopular, erguendo
uma fachada democrática. Para isto pressionou por um acordo
de partilha de poder entre Musharraf, Bhutto e o PPP.
Bhutto, de sua parte, estava mais do que disposta, em troca
de sua parte no espólio burocrático, a trabalhar
com Washington, o patrocinador da sucessão de uma série
de governos militares no Paquistão, e Musharraf, cujo governo,
além de retirar os direitos democráticos do povo
paquistanês, tem imposto políticas neoliberais impopulares.
Em meio à ascensão de Musharraf e ao assassinato
de Bhutto, a política de Bush continua a ser a de forjar
uma máscara democrática para a ditadura de Musharraf.
De acordo com artigo no Washington Post de domingo, "apesar
da ansiedade entre os oficiais da inteligência e os especialistas...
o governo está apenas ajustando o curso dos últimos
18 meses para apoiar a criação de um centro político
girando em torno de Musharraf..."
"o plano A ainda tem que funcionar,' disse um alto
representante do governo responsável pela política
para o Paquistão. Nós todos temos que fazer
um apelo para que as forças moderadas se unam, levem adiante
as eleições e criem um governo com uma base mais
sólida, utilizando isso como uma plataforma para combater
os terroristas'".
Para este fim, Boucher, Subsecretário para Assuntos
Políticos, Nicolas Burns e outros membros do governo americano
têm pressionado o outro principal partido de oposição
paquistanês, a Liga Muçulmana Paquistanesa (Nawaz),
a desistir da decisão de boicotar as eleições,
anunciada logo após a morte de Bhutto.
De acordo com o Washington Post, o outro objetivo dos EUA é
impedir a desintegração do PPP, cuja campanha eleitoral
girava completamente em torno do apelo pessoal de "líder
vitalícia" de Benazir Bhutto e da memória do
legado de seu "martirizado" pai.
Reunidos no domingo, os líderes do PPP escolheram o
filho de 19 anos de Benazir, Bilawal Bhutto, um estudante da universidade
de Oxford, como presidente do PPP. O marido de Bhutto, Asif Ali
Zardari, que ganhou o apelido de "Senhor 10%" devido
às comissões que ele extraía quando Ministro
de Investimentos no governo de Benazir, será o vice-presidente
do PPP.
O caráter dinástico da sucessão do PPP
ressalta a natureza anti-democrática do partido. Apesar
de o PPP ter se auto-intitulado como um "partido socialista
islâmico" no passado e atualmente se reivindica o partido
dos oprimidos, os Bhutto são uma das maiores famílias
latifundiárias de Sindh, cujas regiões rurais são
famosas pela opressão feudal que ainda prevalece.
Zardari divulgou que o PPP continuará questionando as
eleições, não importa quando elas forem realizadas.
Mostrando que os interesses de classe são mais fortes do
que os de sangue, ele fez um apelo aberto aos militares, dizendo
que a luta do PPP é contra "um setor de pessoas no
governo", não contra as forças armadas. Ele
também denunciou àqueles que levantaram palavras
de ordem separatistas para a região de Sindh no funeral
de sua esposa.