Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês,
no dia 28 de agosto de 2007.
No dia 1º de agosto os trabalhadores da AvtoVAZ entraram
em greve. A AvtoVAZ é a maior produtora russa de automóveis
desde o período soviético. O fato indica a crescente
agitação social e política entre os trabalhadores
na Rússia.
No dia da greve, durante várias horas, saíam
da linha de montagem veículos incompletos. Foi realizada
uma assembléia no portão principal da fábrica.
Segundo alguns relatos contraditórios, a reunião
pode ter contado com 400 a 2000 pessoas.
A reivindicação básica dos trabalhadores
da AvtoVAZ é um aumento salarial de 25.000 rublos. O valor
atual é de cerca de 7.000 - aproximadamente metade da média
para esse tipo de indústria e para a manufatura russa como
um todo, de acordo com as estatísticas oficiais.
Segundo Peter Zolotarev, presidente do sindicato Unidade (Edinstvo),
que falou em nome dos grevistas, foi enviado um reforço
policial para a fábrica naquele dia. Representantes da
administração da fábrica tentaram forçar
os trabalhadores a retomar a produção e asseguraram
que ninguém iria enganá-los.
No dia seguinte, a administração anunciou que
não havia ocorrido nenhuma greve, mas que 150 trabalhadores
haviam simplesmente violado a disciplina do trabalho. Em seguida,
os líderes da AvtoVAZ advertiram os 170 trabalhadores e
os acusaram de violar a lei de trabalho e se recusar a trabalhar.
Dois deles foram demitidos.
Apesar dos trabalhadores não terem conseguido parar
a linha de montagem principal, nem terem conquistado nenhuma melhoria
na sua situação, o protesto se tornou um evento
político importante e atraiu atenção da mídia.
Mesmo na véspera da greve, a maior parte dos jornais russos
publicou matérias sobre a possibilidade da greve e continuaram
acompanhando o desenrolar dos acontecimentos. Os nomes dos principais
organizadores da greve se tornaram conhecidos por todo o país.
A AvtoVAZ durante os períodos soviético
e pós-soviético
A AvtoVAZ é um dos símbolos da indústria
russa, sendo uma das maiores plantas de produção
automobilística do país. Foi construída no
final dos anos 60 em Togliatti - uma cidade à margem do
rio Volga com população de mais de 700.000 habitantes,
batizada em homenagem a um dos líderes do Partido Comunista
italiano. Foi designada para a produção do Zhiguli
(Lada), baseado em tecnologia da Fiat italiana. A AvtoVAZ era
o carro-chefe da produção automobilística
soviética. Até o início dos anos 90, a fábrica
produzia 2.000 carros por dia.
Até hoje, apesar do declínio da antiga produção
soviética e das crescentes dificuldades enfrentadas pela
empresa, causadas pelo fato de sua base técnica ser relativamente
antiquada e da competição com os produtores mundiais,
a fábrica ainda emprega cerca de 100.000 pessoas. Aproximadamente
700 automóveis saem da linha de montagem a cada dia.
Vladimir Kadannikov, que foi diretor da AvtoVAZ por muitos
anos e deixou seu posto há dois anos, era um típico
chefe da economia soviética. Tendo se tornado chefe-assistente
de seu setor em 1967, ele rapidamente subiu na hierarquia da fábrica,
chegando até o topo. Nos anos da perestroika
de Gorbachev, Kadannikov era considerado um dos diretores com
mente mais contemporânea, que apoiava as reformas
de mercado; com isso foi nomeado por Boris Yeltsin, em 1996, vice-primeiro-ministro
do governo russo, cargo que ocupou durante alguns meses.
No período pós-soviético, a AvtoVAZ manteve
seu status de símbolo, mas de uma forma um tanto diferente
- como um exemplo da inescrupulosa pilhagem das ex-propriedades
do Estado por novas camadas de executivos gananciosos.
A fábrica se tornou uma sinecura para Boris Berezovsky,
o oligarca desonrado, atualmente residente em Londres,
que acumulou uma fortuna multibilionária em dólares
se apropriando dos lucros originados pela produção
da fábrica.
No início dos anos 90, Berezovsky fundou a empresa LogoVAZ,
que recebeu direitos exclusivos para vender o Zhiguli. Entre os
principais acionistas da LogoVAZ estavam os altos executivos da
fábrica, incluindo Kadannikov. Organizando um sistema de
vendas fictícias e evasão de impostos, enormes somas
foram escoadas da fábrica, enquanto a preocupação
com a produção era completamente posta de lado e
os trabalhadores ficavam sem pagamento por longos períodos.
Em seu livro sobre Berezovsky, o jornalista americano Pavel
Khlebnikov (assassinado em Moscou em 2004) conta que em meados
dos anos 90 a fábrica não conseguia pagar
impostos, eletricidade ou o salário dos trabalhadores.
O governo Yeltsin não declarou a falência da fábrica
por uma única razão: teria sido necessário
admitir que a maior empresa industrial da Rússia estava
falida. (O Padrinho do Kremlin, Boris Berezovsky, ou
a História da Pilhagem da Rússia, Moscou, 2001,
p. 95 [edição russa]).
Entretanto, o último papel desempenhado pela AvtoVAZ
não foi o de representar o elemento mais importante no
império de um dos oligarcas russos. Como parte da política
levada a cabo pelo presidente Vladimir Putin, que visa estabelecer
o controle governamental dos mais importantes recursos naturais
e das companhias industriais da Rússia, a AvtoVAZ acabou
na mira da corporação estatal Rosoboroneksport [Exportação
de Defesa Russa], sendo absorvida por ela no final de 2005.
A Rosoboroneksport é uma estrutura semi-secreta com
muitos ramos. Ela é a maior exportadora de armamento russo
no mercado mundial e vem se empenhando em expandir sua participação
na economia russa como um todo. Em 2006, a renda da Rosoboroneksport
originada da venda de tecnologia militar foi de U$ 5,6 bilhões,
e de U$ 2 bilhões no primeiro semestre de 2007.
As empresas que compõem a corporação,
que é liderada por Sergei Chemezov, amigo do presidente
Putin, incluem as fábricas Motovilikhinskie de Perm (que
fabricam os sistemas Smerch e Grad de artilharia e equipamento
para a indústria de petróleo), assim como praticamente
todas as fábricas que produzem helicópteros russos.
Quando foi comprada pela Rosoboroneksport, o lucro anual da
AvtoVAZ era de 4,6 bilhões de rublos. A inclusão
da AvtoVAZ na corporação estatal fez quadruplicar
a capitalização da fábrica no último
ano (chegando a quase U$ 3 bilhões). Os novos diretores
da fábrica anunciaram projetos de larga escala em colaboração
com grandes fabricantes mundiais - a canadense Magna, a francesa
Renault e a italiana Fiat.
Está claro que uma greve numa fábrica como essa,
ainda que distante de resultados imediatos, é capaz de
servir como exemplo para ser seguido em muitas outras empresas
do país. Além disso, afeta os principais interesses
da nova elite dominante da Rússia. Objetivamente, a reivindicação
dos trabalhadores da AvtoVAZ é um desafio político
para os principais clãs burocrático-oligárquicos
do Kremlin, liderados por Putin.
Vladimir Artyakov, presidente do Grupo AvtoVAZ, é um
dos líderes regionais do partido pró-Kremlin Rússia
Unida e deputado da Duma provincial de Samara. A principal bandeira
de sua campanha foi o aumento dos salários para 25.000
rublos. Ao escolher o aumento dos salários como sua principal
reivindicação, os grevistas da AvtoVAZ conseguiram
denunciar a demagogia oculta no discurso do principal partido
da Rússia.
Ataques aos grevistas
Essas circunstâncias explicam o enorme interesse nos
acontecimentos da AvtoVAZ e os esforços inescrupulosos
das autoridades locais e da administração da fábrica
para acabar com a greve e punir os participantes.
Mesmo antes de ser iniciada, a greve foi condenada pelo sindicato
oficial da fábrica, que pretence à Federação
dos Sindicatos Independentes da Rússia (uma estrutura formada
com base nos antigos sindicatos oficiais da burocracia soviética).
Anton Vechkunin, uma ativista do sindicato independente Unidade,
foi abordado pela polícia na rua, quatro dias antes da
greve, ficando preso por três dias num centro de detenção
temporária. Outro trabalhador da fábrica, Aleksandr
Dziuban, que é presidente do comitê do sindicato
no setor de montagem de máquinas, foi detido no portão
de entrada na véspera da greve, sem nenhuma explicação.
Ele levava 200 panfletos do sindicato para a fábrica.
Pavel Kaledin, repórter do Kommersant, o maior jornal
nacional, também foi punido ao fazer a cobertura da greve.
Sob pressão da administração da AvtoVAZ,
os representantes regionais do grupo de mídia ao qual o
Kommersant pertence acusaram o jornalista de fazer cobertura tendenciosa
dos eventos na fábrica e exigiram a sua demissão.
Além disso, alguns dias antes do início da greve,
5.000 exemplares do jornal Democracia Operária foram
confiscados em Moscou. Aquela edição continha material
sobre a situação na fábrica e sobre a greve
que estava sendo preparada, e havia sido especialmente publicada
para ser enviada a Togliatti. O jornal Democracia Operária
é publicado pelo Partido Revolucionário dos
Trabalhadores, partido centrista que se reivindica trotskista.
O Ministério de Política Interna para o Transporte
Ferroviário declarou que apreendeu o jornal sob a suspeita
de que ele continha visões extremistas.
As autoridades usaram o incidente para testar mudanças
recentes na legislação que permitem que qualquer
manifestação de insatisfação impressa
ou oral seja classificada como um chamado público
para a realização de atividades extremistas.
A cobertura da mídia teve um caráter dual. Parte
da mídia liberal descrevia os eventos em termos relativamente
objetivos. A mídia pró-Kremlin, como era de se esperar,
atacava agressivamente os grevistas, acusando-os de serem gananciosos
e preguiçosos.
O repórter do jornal Izvestia, Boris Klin, escreveu
no seu comentário de 2 de agosto: muitos desejam
não fazer coisa nenhuma e receber muito. Mas
esse sonho não pode se realizar, ainda que seja alcançado
por meios políticos. Além disso, tais tentativas
devem produzir resultados exatamente opostos àqueles esperados
por eles.
Jogando cinicamente com o fato de que a qualidade do Zhiguli
é inferior aos padrões mundiais, o autor continua:
pelo contrário, tudo o que foi ganho pelos ativistas
de Togliatti deveria ser confiscado e seus salários deveriam
ser reduzidos ao mínimo necessário. Eles têm
que entender que o aumento de seus salários não
decorre do seu desejo de passar caviar preto no pão branco,
mas de uma única condição - de que os carros
que a fábrica produz sejam carros de verdade e não
baldes de parafusos.
Vale notar que Boris Klin escreve para o Izvestia como defensor
fervoroso da Igreja Ortodoxa Russa. Ele luta para elevar a autoridade
política desta na sociedade, apóia a idéia
de introduzir aulas sobre os fundamentos da Igreja Ortodoxa nas
escolas e sustenta que as leis governamentais não são
mais do que a manifestação dos preceitos divinos
expostos na Bíblia.
Seu exemplo é mais uma ilustração de que
as desculpas para a opressão social andam inevitavelmente
de mãos dadas com as teorias mais reacionárias e
o obscurantismo religioso.
Outra linha de ataque aos grevistas da AvtoVAZ é a idéia
de que eles não agiram de forma independente, mas sob o
controle e apoio financeiro de forças políticas
que têm outros interesses.
Konstantin Titov, representante do governador de Samara, declarou
que apoiadores do partido Rússia Justa, outro partido pró-Putin,
são os culpados da repentina irrupção de
atividade social entre os trabalhadores. O Rússia Justa
é liderado pelo amigo de Putin e presidente do Conselho
Federal (Parlamento), Sergei Mironov. O porta-voz do governador
de Samara levantou a hipótese de que, já que quase
todos os altos executivos da AvtoVAZ são do Rússia
Unida, o conflito social na fábrica teria sido inspirado
pela sua facção oponente ao clã pró-Kremlin,
que pretende explorar esse viés durante o período
pré-eleitoral.
Os líderes grevistas negaram essa hipótese várias
vezes, e reafirmam que a greve foi uma expressão do protesto
espontâneo dos trabalhadores e que foi apoiada pelo sindicato
Unidade.
A razão para tamanha especulação na grande
mídia é clara. Por trás disso está
a o desejo de convencer a opinião pública de que
não pode haver expressão independente das massas
trabalhadoras ou alternativa política para a crise social,
além daquelas propostas pelos vários partidos dominantes.
A greve dos trabalhadores da AvtoVAZ não é um
fenômeno isolado. Ela faz parte de uma onda de greves e
protestos na Rússia que começaram no fim do ano
passado e que foi se espalhando por novas regiões. Incluem-se
aí o protesto dos petroleiros da região autônoma
de Khanty-Mansiisk, em outubro do ano passado; a greve na fábrica
russa da Ford, em fevereiro deste ano, em Vsevolozhsk, próximo
a São Petersburgo; os protestos na cervejaria Heineken,
em São Petersburgo, em abril; e a manifestação
dos trabalhadores da Mikhailovcement, na área de Riazan,
além de outras ações.
Elas demonstram que acabou o período de apatia e confusão,
que durou 15 anos, desde a queda da União Soviética.
A realidade da Rússia capitalista trouxe degradação
social, pobreza, ilegalidade, guerra e doenças. A classe
trabalhadora da Rússia está começando a reconhecer
que, dentro dos limites da atual situação, ela serve
de mão-de-obra barata e eleitorado manipulado, que deve
votar de maneira submissa a cada quatro anos em um ou mais dos
protegidos da oligarquia e da burocracia estatal.
O aprofundamento da desigualdade social e o crescimento da
cadeia de comando autoritária estão
criando condições para novos atos de protesto social.
As greves de mineiros de 1989-1990 não foram esquecidas.
Elas mostram o quanto a classe trabalhadora pode ser poderosa
quando começa a se movimentar.
O desenrolar dos fatos levanta a questão das perspectivas
políticas com uma nova intensidade. O que, infelizmente,
faltava àqueles mineiros e a outros setores da classe trabalhadora
russa nos anos da perestroika era um entendimento
claro da origem dos seus ganhos sociais passados, dos fundamentos
da Revolução de Outubro de 1917 e, como conseqüência,
de como os ganhos sociais conquistados nessa revolução
poderiam ser defendidos.
A grande experiência da Revolução de Outubro
de 1917, mais uma vez confirmada de maneira negativa pela amarga
experiência dos últimos 20 anos, mostra que é
impossível resolver qualquer uma das questões sociais
e econômicas fundamentais em benefício dos trabalhadores
sem que se tenha: (a) a construção de um partido
independente dos trabalhadores; e (b) um programa revolucionário
internacional.
É importante compreender que a continuidade política
que liga o nosso tempo à época das três revoluções
russas passa pela luta de Leon Trotsky e da Oposição
de Esquerda contra a degeneração stalinista do Partido
Bolchevique e do Estado soviético nas décadas de
1920 e 1930 e pela fundação da IV Internacional
em 1938.
A luta para introduzir essa compreensão na consciência
da classe trabalhadora russa e pela assimilação
das principais lições das lutas internacionais do
proletariado no século XX - essa é a tarefa para
a qual os trabalhadores mais conscientes, estudantes e representantes
dos intelectuais na Rússia devem direcionar suas forças.