Este artigo foi publicado no WSWS, originalmenteem francês no dia 26 de abril de 2007.
A Suprema Corte do Canadá, num veredicto dado no dia
28 de fevereiro em relação à constitucionalidade
dos certificados de segurança, aprovou por unanimidade
o poder do Estado de violar direitos democráticos fundamentais
sagrados da Carta de Direitos e Liberdades Canadense, em nome
da garantia da segurança pública.
Ainda que a Corte tenha decidido que o governo não tem
o direito de realizar julgamentos secretos (um dos aspectos mais
controvertidos do processo de certificado de segurança),
a sua decisão, tomada como um todo, não constitui
apenas um golpe contra os ataques às liberdades civis,
que vêm sendo implementados pela elite do Canadá
em nome da guerra ao terrorismo. Na verdade, ela é um esforço
para dar uma aparência de legalidade à destruição
dos direitos democráticos e de princípios jurídicos
existente há muito tempo.
Para a Corte Suprema do Canadá a questão é
a legalidade do certificado de segurança um decreto
ministerial que ordena a detenção arbitrária
e a deportação de não cidadãos, sejam
visitantes, refugiados ou imigrantes assentados, caso sejam considerados
ameaças potenciais à segurança nacional pelas
agências de segurança. Tal decreto pode ser emitido
sem a menor prova que justifique a suposta ameaça.
Em 2005 a Corte Federal aprovou certificados de segurança
constitucional e sustentou o direito do governo de manter inteiramente
anônimas as pessoas citadas nos certificados de segurança,
respaldado tanto na segurança nacional quanto nas relações
diplomáticas, ou seja, mantendo boas relações
com os Estados estrangeiros, incluindo regimes autoritários
que praticam tortura para conseguir informações.
Com base nessa decisão, três pessoas foram detidas
arbitrariamente sob a apelação dos certificados
de segurança nacional. Adil Charkaoui, Hassan Almrei e
Mohamed Harkat solicitaram à Corte Suprema que esta considerasse
os certificados de segurança inconstitucionais, por violarem
o direito a um julgamento imediato, ao direito à vida,
à liberdade e à proteção da pessoa
contra detenções arbitrárias e punições
cruéis e incomuns, direitos estes garantidos na Carta Canadense
de Direitos e Liberdades.
O ministro de segurança pública usou os certificados
de segurança nacional para prender Charkaoui em 2003, Almrei
em 2002 e Harkat em 2001, afirmando que havia indícios
de que eles possuíam relações terroristas.
Mahmoud Jaballah e Mohamad Mahjoub foram detidos e presos de maneira
semelhante.
Charkaoui foi libertado em 2005 e Harkat em 2006, mas eles
permanecem sujeitos a severas restrições, incluindo
o uso permanente de uma pulseira GPS e a prisão domiciliar.
Jaballah e Mahjoub foram libertados em 2007, depois de sete anos
de prisão, estando também submetidos à prisão
domiciliar. Almrei é o único que continua preso
na penitenciária de Millhaven, uma prisão de segurança
máxima em Kingston, Ontário. Todos serão
deportados a seus países de origem onde, admite o governo,
eles serão, muito provavelmente, torturados e mortos.
As origens do programa de certificado de segurança
Embora a lei de imigração do Canadá contenha,
há mais de 30 anos, uma cláusula a respeito de certificados
de segurança, esta lei sofreu mudanças fundamentais,
relativas à aplicação dos certificados, sobretudo
no Ato Anti-Terrorista aprovado pelos liberais que estavam no
governo quando ocorreram os atentados terroristas de 2001.
Antes da adoção da lei, em dezembro de 2001,
o governo teve que fazer uma declaração diante da
Comissão de Pesquisa em Inteligência de Segurança
(SIRC) uma agência civil de cães de
guarda estabelecida pelo parlamento para fiscalizar as atividades
do Serviço de Inteligência de Segurança Canadense
(CSIS) explicando porque os estrangeiros representavam
uma ameaça à segurança pública, estando
sujeitos a serem detidos sem qualquer acusação.
A SIRC examinou os documentos apresentados pelo ministro e obrigou
o governo a enviar à pessoa detida um resumo dos
fatos existentes. Na ocasião, um certificado de segurança
foi emitido contra um indivíduo; ele ou ela tinha o direito
de contestar esta decisão, com a presença de um
conselheiro legal, diante de um tribunal cuja função
era decidir sobre a aceitabilidade e sobre o sigilo das provas
apresentadas pelo do governo.
A abolição desse procedimento deu efetivamente
ao governo o poder para seqüestrar e prender arbitrariamente
qualquer pessoa que considere como um risco à segurança,
podendo ser feito mesmo quando o Estado não tenha provas
suficientes para acusar essa pessoa. A lei dá ao governante
o poder de manter em segredo as provas utilizadas para caracterizar
alguém como uma ameaça à segurança
nacional do Canadá.
A nova lei exige que um juiz da Corte Federal examine se o
governo agiu certo em emitir um certificado de segurança
contra um determinado indivíduo. Mas, apesar das conseqüências
potencialmente drásticas para a pessoa acusada, esse exame
é realizado sem a sua presença ou a de seu advogado.
O governo, ou seja, o acusador, não é obrigado a
mostrar ao juiz todas as provas à sua disposição;
ele pode decidir sozinho o que irá revelar, não
tendo a obrigação de provar nada. Ele somente precisa
convencer o juiz de que possui bases reais para suspeitar de que
o indivíduo é uma ameaça potencial à
segurança do Canadá em outras palavras, que
o CSIS ou outra agência policial ou da inteligência
o consideram como tal.
Não existe apelação da decisão
do juiz ou qualquer outra forma de revisão judicial. Uma
vez que o certificado tenha sido julgado correto,
a lei exige que a ordem de deportação seja aplicada
imediatamente, desprezando o risco de tortura. Em 2002 a Corte
Suprema decidiu que em casos excepcionais alguém pode ser
deportado mesmo que haja o risco de tortura ou morte.
Procedimentos secretos
A decisão unânime dos nove juízes da Corte
Suprema em relação à constitucionalidade
dos certificados de segurança foi lida pela chefe de justiça,
Beverley McLachlin. Ela utilizou o pretexto da guerra ao terrorismo
para criar uma base constitucional à destruição
dos direitos democráticos realizada pela elite canadense.
Uma das responsabilidades mais básicas do governo
é a de assegurar a segurança dos cidadãos,
afirmou ela.
McLachlin admitiu que o fato do Estado poder manter escondidas
as provas a respeito de um detento por um certificado de segurança,
além do caráter secreto das investigações
dos certificados de segurança da Corte Federal, viola o
direito à vida, à liberdade e à segurança
previsto na Carta, e que essa violação é
injustificável. Mas logo em seguida, ela disse que é
de suma importância para os órgãos de segurança
que as provas permaneçam secretas. Para resolver esse problema,
ela sugeriu, em nome de toda a Corte, que o governo adotasse um
procedimento utilizado na Inglaterra, onde advogados de confiança
agem em nome dos prisioneiros em audiências secretas.
A Corte tomou conhecimento de que manter audiências e
julgamentos secretos viola os princípios democráticos
básicos de um acusado que é detido, e que este deve
saber por qual crime ele está sendo acusado. McLachlin
declarou também que o juiz não tem... condições
de compensar a falta de uma informação, uma contestação
ou uma contra-prova que uma pessoa que conhece o caso poderia
trazer. Por princípio, a pessoa cuja liberdade está
em risco deve conhecer o caso pelo qual ela está sendo
acusada. Com a nova lei, tal princípio não somente
foi limitado; foi efetivamente destruído. Como pode alguém
estar num caso como esse e não saber do que se trata?
Depois de concluir que, por serem realizadas secretamente,
as audiências da Corte Federal são inconstitucionais,
a chefe de justiça voltou atrás, tentando justificar
porque o Estado pode impedir o público, o detento e seus
conselheiros legais de conhecerem as provas que o levaram a considerar
tal indivíduo como uma ameaça nacional: a
obrigação de proteger a sociedade deve permitir
que o Estado [não revele as provas por ele levantadas].
As informações devem ser obtidas de outros países
ou informantes, em condições que não sejam
reveladas. Há casos em que a situação pode
ser tão crítica, que as provas não possam
ser reveladas sem arriscar a segurança pública.
Isso é uma realidade do nosso mundo moderno.
Em outras palavras, o respeito pelos direitos fundamentais
é incompatível com a luta contra o terrorismo e
a defesa do Estado nacional.
Seguindo o precedente britânico, a Suprema Corte do Canadá
nomeou advogados de confiança para acompanhar os procedimentos
secretos em nome das pessoas cuja segurança está
em risco, a fim de analisar as provas do Estado.
Mas essa prática é amplamente contestada na Inglaterra,
até mesmo por muitos dos advogados especiais, que reclamam
que as restrições legais impostas ao seu trabalho
os tornam auxiliares do Estado.
Em abril de 2005 uma reportagem publicada no Reino Unido pelo
Comitê de Assuntos Constitucionais da Câmara dos Comuns
apontou as severas limitações impostas à
atuação dos advogados especiais. A Suprema Corte
do Canadá chegou mesmo a admitir estas limitações
em seu próprio julgamento: o comitê listou
três importantes desvantagens enfrentadas pelos advogados
especiais: (1) após eles terem visto o material confidencial,
eles não podem, exceto em pouquíssimas exceções,
entrar em contato com o acusado ou com seu conselheiro; (2) eles
perdem os direitos existentes num julgamento comum, tendo que
conduzir toda a defesa em segredo; e (3) eles não podem
chamar testemunhas.
Em outras palavras, eles são legalmente impedidos de
realizar a defesa em nome daqueles que eles representam: eles
não podem discutir as acusações feitas pelo
Estado com a pessoa que é considerada uma ameaça
à segurança nem mesmo para por à prova a
veracidade destas acusações, nem podem chamar testemunhas
para refutar as afirmações feitas pelo Estado.
Apesar de citarem as objeções feitas pelos advogados
especiais britânicos, os juizes do Canadá nada fizeram,
argumentando somente que a prática constitui um balanço
razoável entre os direitos dos indivíduos e as necessidades
do Estado.
Tratamento cruel
Em sua decisão de fevereiro, a Suprema Corte considerou
que é aceitável prender uma pessoa arbitrariamente
sem uma acusação e sem tornar claras as razões
de sua detenção, provocando sua extradição
para um país onde se pratica a tortura. A Suprema Corte
do Canadá admitiu apenas que, em determinadas circunstâncias,
detenções arbitrárias sem acusação
devem ser consideradas punições cruéis e
incomuns.
Os cinco detentos por certificados de segurança foram
mantidos durante um longo período em condições
insalubres de isolamento e frio, sem acesso a seus advogados e
suas famílias, a tratamentos médicos necessários,
ou seja, condições muito aquém daquelas normalmente
oferecidas a todo prisioneiro canadense. Eles realizaram diversas
greves de fome, simplesmente para ter acesso à assistência
médica e à televisão (veja em Prisoners
continue hunger strike at Canadas Guantanamo).
Uma prisão especial de segurança máxima
foi construída em Millhaven, Kingston, para manter os detentos.
Ela foi apelidada de Guantánamo do norte, uma
referência à cruel prisão americana na Baia
de Guantánamo, em Cuba, aquela prisão onde os tão
falados terroristas chamados de combatentes ilegais
estão apodrecendo.
As condições da prisão em Millhaven são
tão ruins que um juiz se sentiu obrigado a fazer os seguintes
comentários, em resposta a um apelo pela libertação
de Mohammad Mahjoub, o mais velho detento, preso há sete
anos, que estava no 83º dia de greve de fome, já apresentando
precárias condições de saúde: o
requerente hoje é um homem velho e doente, preocupado com
a sua saúde e com a falta de contato com a sua família,
que ocorre nas raras visitas e telefonemas. O juiz disse
ainda que a detenção de Mahjoub poderia certamente
ser descrita como arbitrária.
A indiferença da elite em relação
aos princípios democráticos
A Suprema Corte concedeu um ano ao governo para que modifique
a lei acerca dos certificados de segurança. Nesse meio
tempo, a Corte permitiu explicitamente que o governo utilize o
procedimento existente contra as pessoas. A Corte ainda declarou
que se o governo não modificar as leis dentro de um ano,
os acusados poderão apelar à Corte para anular os
certificados de segurança.
A mídia apresentou esse julgamento como uma conquista
dos direitos democráticos e o fim dos julgamentos secretos,
enquanto ao mesmo tempo expressa a satisfação de
que a Suprema Corte não limitou a capacidade do Estado
em levar a cabo a luta contra o terrorismo.
Num artigo publicado no dia 25 de fevereiro, o New York
Times considerou a decisão como uma prova de que no
Canadá a luta contra o terrorismo está sendo conduzida
respeitando os direitos individuais.
No dia 26 de fevereiro, o articulista do jornal de Quebec La
Presse, Yves Boisvert, aprovou a decisão da Corte,
observando que com isso, ela reconheceu o direito do Estado
de tomar medidas excepcionais contra os cidadãos estrangeiros,
e que o Estado deve investigar os suspeitos com a estrita finalidade
de garantir a segurança pública, e que a decisão
não atrapalha a nossa capacidade de lutar contra
o terrorismo.
O Globe and Mail, jornal de negócios do Canadá,
saudou a solução pragmática encontrada
pela Corte para resolver um dilema moral nessa era do terror.
Ressaltando que a Corte autorizou a detenção arbitrária
de estrangeiros suspeitos de terrorismo, o Globe declarou:
apesar da Corte criticar as decisões controversas
dos julgamentos secretos, essas podem ser reparadas facilmente.
Seu editorial enfatizou que o impacto a longo prazo da decisão
preservará a capacidade do governo de proteger os canadenses
dos terroristas.
O governo conservador de Harper, por sua vez, aceitou imediatamente
a decisão da Corte, anunciando uma nova lei baseada na
decisão da Corte, que será apresentada ao parlamento
em breve.
A decisão da Suprema Corte em relação
aos certificados de segurança, de autoria da chefe de justiça,
representa um forte giro à direita. Ela constitui o sinal
verde para o ataque realizado pela elite canadense aos direitos
democráticos e aos princípios jurídicos existentes
há muito tempo, sob o pretexto de lutar contra o terrorismo.