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A Suprema Corte do Canadá aprova julgamentos secretos e prisões arbitrárias

Por François Tremblay
16 de maio de 2007

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Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em francês no dia 26 de abril de 2007.

A Suprema Corte do Canadá, num veredicto dado no dia 28 de fevereiro em relação à constitucionalidade dos certificados de segurança, aprovou por unanimidade o poder do Estado de violar direitos democráticos fundamentais sagrados da Carta de Direitos e Liberdades Canadense, em nome da garantia da “segurança pública”.

Ainda que a Corte tenha decidido que o governo não tem o direito de realizar julgamentos secretos (um dos aspectos mais controvertidos do processo de certificado de segurança), a sua decisão, tomada como um todo, não constitui apenas um golpe contra os ataques às liberdades civis, que vêm sendo implementados pela elite do Canadá em nome da guerra ao terrorismo. Na verdade, ela é um esforço para dar uma aparência de legalidade à destruição dos direitos democráticos e de princípios jurídicos existente há muito tempo.

Para a Corte Suprema do Canadá a questão é a legalidade do certificado de segurança — um decreto ministerial que ordena a detenção arbitrária e a deportação de não cidadãos, sejam visitantes, refugiados ou imigrantes assentados, caso sejam considerados ameaças potenciais à segurança nacional pelas agências de segurança. Tal decreto pode ser emitido sem a menor prova que justifique a suposta ameaça.

Em 2005 a Corte Federal aprovou certificados de segurança constitucional e sustentou o direito do governo de manter inteiramente anônimas as pessoas citadas nos certificados de segurança, respaldado tanto na segurança nacional quanto nas relações diplomáticas, ou seja, mantendo boas relações com os Estados estrangeiros, incluindo regimes autoritários que praticam tortura para conseguir informações.

Com base nessa decisão, três pessoas foram detidas arbitrariamente sob a apelação dos certificados de segurança nacional. Adil Charkaoui, Hassan Almrei e Mohamed Harkat solicitaram à Corte Suprema que esta considerasse os certificados de segurança inconstitucionais, por violarem o direito a um julgamento imediato, ao direito à vida, à liberdade e à proteção da pessoa contra detenções arbitrárias e punições cruéis e incomuns, direitos estes garantidos na Carta Canadense de Direitos e Liberdades.

O ministro de segurança pública usou os certificados de segurança nacional para prender Charkaoui em 2003, Almrei em 2002 e Harkat em 2001, afirmando que havia indícios de que eles possuíam relações terroristas. Mahmoud Jaballah e Mohamad Mahjoub foram detidos e presos de maneira semelhante.

Charkaoui foi libertado em 2005 e Harkat em 2006, mas eles permanecem sujeitos a severas restrições, incluindo o uso permanente de uma pulseira GPS e a prisão domiciliar. Jaballah e Mahjoub foram libertados em 2007, depois de sete anos de prisão, estando também submetidos à prisão domiciliar. Almrei é o único que continua preso na penitenciária de Millhaven, uma prisão de segurança máxima em Kingston, Ontário. Todos serão deportados a seus países de origem onde, admite o governo, eles serão, muito provavelmente, torturados e mortos.

As origens do programa de certificado de segurança

Embora a lei de imigração do Canadá contenha, há mais de 30 anos, uma cláusula a respeito de certificados de segurança, esta lei sofreu mudanças fundamentais, relativas à aplicação dos certificados, sobretudo no Ato Anti-Terrorista aprovado pelos liberais que estavam no governo quando ocorreram os atentados terroristas de 2001.

Antes da adoção da lei, em dezembro de 2001, o governo teve que fazer uma declaração diante da Comissão de Pesquisa em Inteligência de Segurança (SIRC) — uma agência civil de “cães de guarda” estabelecida pelo parlamento para fiscalizar as atividades do Serviço de Inteligência de Segurança Canadense (CSIS) — explicando porque os estrangeiros representavam uma ameaça à segurança pública, estando sujeitos a serem detidos sem qualquer acusação. A SIRC examinou os documentos apresentados pelo ministro e obrigou o governo a enviar à pessoa detida um “resumo dos fatos existentes”. Na ocasião, um certificado de segurança foi emitido contra um indivíduo; ele ou ela tinha o direito de contestar esta decisão, com a presença de um conselheiro legal, diante de um tribunal cuja função era decidir sobre a aceitabilidade e sobre o sigilo das provas apresentadas pelo do governo.

A abolição desse procedimento deu efetivamente ao governo o poder para seqüestrar e prender arbitrariamente qualquer pessoa que considere como um risco à segurança, podendo ser feito mesmo quando o Estado não tenha provas suficientes para acusar essa pessoa. A lei dá ao governante o poder de manter em segredo as provas utilizadas para caracterizar alguém como uma ameaça à segurança nacional do Canadá.

A nova lei exige que um juiz da Corte Federal examine se o governo agiu certo em emitir um certificado de segurança contra um determinado indivíduo. Mas, apesar das conseqüências potencialmente drásticas para a pessoa acusada, esse exame é realizado sem a sua presença ou a de seu advogado. O governo, ou seja, o acusador, não é obrigado a mostrar ao juiz todas as provas à sua disposição; ele pode decidir sozinho o que irá revelar, não tendo a obrigação de provar nada. Ele somente precisa convencer o juiz de que possui bases reais para suspeitar de que o indivíduo é uma ameaça potencial à segurança do Canadá — em outras palavras, que o CSIS ou outra agência policial ou da inteligência o consideram como tal.

Não existe apelação da decisão do juiz ou qualquer outra forma de revisão judicial. Uma vez que o certificado tenha sido julgado “correto”, a lei exige que a ordem de deportação seja aplicada imediatamente, desprezando o risco de tortura. Em 2002 a Corte Suprema decidiu que em casos excepcionais alguém pode ser deportado mesmo que haja o risco de tortura ou morte.

Procedimentos secretos

A decisão unânime dos nove juízes da Corte Suprema em relação à constitucionalidade dos certificados de segurança foi lida pela chefe de justiça, Beverley McLachlin. Ela utilizou o pretexto da guerra ao terrorismo para criar uma base constitucional à destruição dos direitos democráticos realizada pela elite canadense. “Uma das responsabilidades mais básicas do governo é a de assegurar a segurança dos cidadãos”, afirmou ela.

McLachlin admitiu que o fato do Estado poder manter escondidas as provas a respeito de um detento por um certificado de segurança, além do caráter secreto das investigações dos certificados de segurança da Corte Federal, viola o direito à vida, à liberdade e à segurança previsto na Carta, e que essa violação é injustificável. Mas logo em seguida, ela disse que é de suma importância para os órgãos de segurança que as provas permaneçam secretas. Para resolver esse problema, ela sugeriu, em nome de toda a Corte, que o governo adotasse um procedimento utilizado na Inglaterra, onde advogados de confiança agem em nome dos prisioneiros em audiências secretas.

A Corte tomou conhecimento de que manter audiências e julgamentos secretos viola os princípios democráticos básicos de um acusado que é detido, e que este deve saber por qual crime ele está sendo acusado. McLachlin declarou também que “o juiz não tem... condições de compensar a falta de uma informação, uma contestação ou uma contra-prova que uma pessoa que conhece o caso poderia trazer. Por princípio, a pessoa cuja liberdade está em risco deve conhecer o caso pelo qual ela está sendo acusada. Com a nova lei, tal princípio não somente foi limitado; foi efetivamente destruído. Como pode alguém estar num caso como esse e não saber do que se trata?”

Depois de concluir que, por serem realizadas secretamente, as audiências da Corte Federal são inconstitucionais, a chefe de justiça voltou atrás, tentando justificar porque o Estado pode impedir o público, o detento e seus conselheiros legais de conhecerem as provas que o levaram a considerar tal indivíduo como uma ameaça nacional: “a obrigação de proteger a sociedade deve permitir que o Estado [não revele as provas por ele levantadas]. As informações devem ser obtidas de outros países ou informantes, em condições que não sejam reveladas. Há casos em que a situação pode ser tão crítica, que as provas não possam ser reveladas sem arriscar a segurança pública. Isso é uma realidade do nosso mundo moderno”.

Em outras palavras, o respeito pelos direitos fundamentais é incompatível com a luta contra o terrorismo e a defesa do Estado nacional.

Seguindo o precedente britânico, a Suprema Corte do Canadá nomeou advogados de confiança para acompanhar os procedimentos secretos em nome das pessoas cuja segurança está em risco, a fim de analisar as provas do Estado.

Mas essa prática é amplamente contestada na Inglaterra, até mesmo por muitos dos advogados especiais, que reclamam que as restrições legais impostas ao seu trabalho os tornam auxiliares do Estado.

Em abril de 2005 uma reportagem publicada no Reino Unido pelo Comitê de Assuntos Constitucionais da Câmara dos Comuns apontou as severas limitações impostas à atuação dos advogados especiais. A Suprema Corte do Canadá chegou mesmo a admitir estas limitações em seu próprio julgamento: “o comitê listou três importantes desvantagens enfrentadas pelos advogados especiais: (1) após eles terem visto o material confidencial, eles não podem, exceto em pouquíssimas exceções, entrar em contato com o acusado ou com seu conselheiro; (2) eles perdem os direitos existentes num julgamento comum, tendo que conduzir toda a defesa em segredo; e (3) eles não podem chamar testemunhas”.

Em outras palavras, eles são legalmente impedidos de realizar a defesa em nome daqueles que eles representam: eles não podem discutir as acusações feitas pelo Estado com a pessoa que é considerada uma ameaça à segurança nem mesmo para por à prova a veracidade destas acusações, nem podem chamar testemunhas para refutar as afirmações feitas pelo Estado.

Apesar de citarem as objeções feitas pelos advogados especiais britânicos, os juizes do Canadá nada fizeram, argumentando somente que a prática constitui um balanço razoável entre os direitos dos indivíduos e as necessidades do Estado.

Tratamento cruel

Em sua decisão de fevereiro, a Suprema Corte considerou que é aceitável prender uma pessoa arbitrariamente sem uma acusação e sem tornar claras as razões de sua detenção, provocando sua extradição para um país onde se pratica a tortura. A Suprema Corte do Canadá admitiu apenas que, em determinadas circunstâncias, detenções arbitrárias sem acusação devem ser consideradas punições cruéis e incomuns.

Os cinco detentos por certificados de segurança foram mantidos durante um longo período em condições insalubres de isolamento e frio, sem acesso a seus advogados e suas famílias, a tratamentos médicos necessários, ou seja, condições muito aquém daquelas normalmente oferecidas a todo prisioneiro canadense. Eles realizaram diversas greves de fome, simplesmente para ter acesso à assistência médica e à televisão (veja em “Prisoners continue hunger strike at Canada’s Guantanamo”).

Uma prisão especial de segurança máxima foi construída em Millhaven, Kingston, para manter os detentos. Ela foi apelidada de “Guantánamo do norte”, uma referência à cruel prisão americana na Baia de Guantánamo, em Cuba, aquela prisão onde os tão falados terroristas chamados de “combatentes ilegais” estão apodrecendo.

As condições da prisão em Millhaven são tão ruins que um juiz se sentiu obrigado a fazer os seguintes comentários, em resposta a um apelo pela libertação de Mohammad Mahjoub, o mais velho detento, preso há sete anos, que estava no 83º dia de greve de fome, já apresentando precárias condições de saúde: “o requerente hoje é um homem velho e doente, preocupado com a sua saúde e com a falta de contato com a sua família, que ocorre nas raras visitas e telefonemas”. O juiz disse ainda que a detenção de Mahjoub “poderia certamente ser descrita como arbitrária”.

A indiferença da elite em relação aos princípios democráticos

A Suprema Corte concedeu um ano ao governo para que modifique a lei acerca dos certificados de segurança. Nesse meio tempo, a Corte permitiu explicitamente que o governo utilize o procedimento existente contra as pessoas. A Corte ainda declarou que se o governo não modificar as leis dentro de um ano, os acusados poderão apelar à Corte para anular os certificados de segurança.

A mídia apresentou esse julgamento como uma conquista dos direitos democráticos e o fim dos julgamentos secretos, enquanto ao mesmo tempo expressa a satisfação de que a Suprema Corte não limitou a capacidade do Estado em levar a cabo a “luta contra o terrorismo”.

Num artigo publicado no dia 25 de fevereiro, o New York Times considerou a decisão como uma prova de que no Canadá a luta contra o terrorismo está sendo conduzida respeitando os direitos individuais.

No dia 26 de fevereiro, o articulista do jornal de Quebec La Presse, Yves Boisvert, aprovou a decisão da Corte, observando que com isso, ela “reconheceu o direito do Estado de tomar medidas excepcionais contra os cidadãos estrangeiros, e que o Estado deve investigar os suspeitos com a estrita finalidade de garantir a segurança pública”, e que a decisão “não atrapalha a nossa capacidade de lutar contra o terrorismo”.

O Globe and Mail, jornal de negócios do Canadá, saudou a “solução pragmática” encontrada pela Corte para resolver um dilema moral nessa “era do terror”. Ressaltando que a Corte autorizou a detenção arbitrária de estrangeiros suspeitos de terrorismo, o Globe declarou: “apesar da Corte criticar as decisões controversas dos julgamentos secretos, essas podem ser reparadas facilmente”. Seu editorial enfatizou que “o impacto a longo prazo da decisão preservará a capacidade do governo de proteger os canadenses dos terroristas”.

O governo conservador de Harper, por sua vez, aceitou imediatamente a decisão da Corte, anunciando uma nova lei baseada na decisão da Corte, que será apresentada ao parlamento em breve.

A decisão da Suprema Corte em relação aos certificados de segurança, de autoria da chefe de justiça, representa um forte giro à direita. Ela constitui o sinal verde para o ataque realizado pela elite canadense aos direitos democráticos e aos princípios jurídicos existentes há muito tempo, sob o pretexto de lutar contra o terrorismo.