Uma pesquisa feita pela professora Drª Maria Aparecida
Moraes Silva, livre docente da UNESP (Universidade Estadual Paulista),
comprova que a busca por maior produtividade tem obrigado os cortadores
de cana a colher até 15 toneladas por dia. Esse esforço
físico cada vez mais intenso está encurtando a vida
útil dos 170.000 trabalhadores rurais da região
produtora de cana-de-açúcar do Estado de São
Paulo.
Nas décadas de 1980 e 1990 o tempo que os cortadores
de cana permaneciam na atividade era de 15 anos, o que já
é um período bastante reduzido, considerando que,
naquela época, a expectativa de vida no Brasil era de 62
anos. Mas o mais alarmante é que o tempo de vida útil
dos cortadores de cana está diminuindo, ao invés
de aumentar. A professora, que vem pesquisando as condições
de trabalho dos trabalhadores nos canaviais, afirmou que desde
o ano 2000, a vida útil dos cortadores de cana está
por volta dos 12 anos.
Em 1980, cada trabalhador cortava, em média, 8 toneladas
de cana por dia. No final da década de 1990, os trabalhadores
já cortavam, em média, 12 toneladas/dia, isto é,
50% a mais (FSP - 28/09/2005). Portanto, o tempo de vida útil
está em relação inversa à intensidade
do trabalho. Enquanto a vida útil dos cortadores de cana
tem diminuído nas últimas décadas, a quantidade
diária de cana cortada por cada trabalhador, ao contrário,
tem aumentado permanentemente. Estudo da USP mostra que, para
cortar dez toneladas, são necessários 9.700 golpes
de podão - instrumento usado no corte da cana. O trabalhador
que corta 15 toneladas tem que dar 14.550 golpes num só
dia.
A conseqüência disso não pode ser outra senão
a degradação física. A professora da UNESP
afirma que, devido à ação repetitiva e ao
esforço físico, os cortadores de cana começam
a ter problemas de coluna, nos pés, câimbras, e tendinite.
A professora conclui que esse trabalho tem provocado a dilapidação
dos trabalhadores. O depoimento que o trabalhador de 33
anos, José Lúcio Oliveira, concedeu à Folha
de São Paulo confirma o comentário da professora:
na última quinta-feira, senti dores nas costas e
só consegui cortar 60 metros. Oliveira costuma cortar
100 a 120 metros por dia.
Como é a vida de um cortador de cana?
Oliveira mora com mais dois colegas numa casa de dois cômodos
em Pontal do Paranapanema (SP). Eles acordam às 4 horas
da manhã para esquentar a marmita que levarão ao
canavial. Às cinco da manhã já estão
no ponto do ônibus que os leva ao local de trabalho, onde
passam até 10 horas sob o sol. Eles fazem três paradas
para comer durante o dia: a primeira às 7:15 horas; a segunda
às 10 horas; e a última às 13 horas, quando,
geralmente, a comida já está fria, fato que deu
origem ao nome bóia-fria. Depois de milhares de golpes
nos pés de cana, param de trabalhar às 16 horas,
cansados, sujos e famintos. Chegando em casa, lavam a roupa e
preparam a comida para a janta e para o próximo dia. O
piso salarial da categoria no Estado de São Paulo é
de R$ 410,00 por mês. Com muito esforço e degradando
sua capacidade de trabalho, os mais fortes e hábeis conseguem
ganhar até R$ 1.200,00.
Vida útil igual a dos escravos
Comparando as condições de trabalho dos cortadores
de cana com a dos escravos africanos do século XIX, o historiador
Jacob Gorender comenta que até 1850, o ciclo de vida útil
dos escravos na agricultura era de 10 a 12 anos. Depois que o
tráfico de escravos africanos foi proibido, os proprietários
passaram a cuidar melhor dos escravos, e a vida útil subiu
para 15 a 20 anos.
A professora da UNESP afirma que os cortadores de cana têm,
portanto, uma vida útil menor que a dos escravos africanos
da segunda metade do século XIX. Isso ocorre porque os
usineiros modernos e seus grandes fornecedores não precisam
ter a preocupação de preservar a vida dos trabalhadores
assalariados. Eles podem comprar a força de trabalho no
mercado e usá-la com a máxima intensidade até
que esta se desgaste completamente, para depois trocá-la
por outra mais nova, pois o mercado de trabalho está repleto
de desempregados que necessitam trabalhar para sobreviver.
O que ganham os usineiros com o aumento da
intensidade do trabalho?
O usineiro paga o trabalho por tonelada de cana cortada. Isso
faz com que o trabalhador se esforce ao máximo para produzir
mais, pois, aparentemente, produzindo mais ele vai ganhar mais.
Os patrões conseguem assim, por meio do pagamento por tonelada,
estimular o aumento da intensidade do trabalho.
O principal benefício que tem o patrão ao estimular
o aumento da intensidade do trabalho é de proporcionar,
ao longo do tempo, a diminuição do valor real pago
pela tonelada cortada e, conseqüentemente, a rebaixamento
do piso salarial da categoria. Na década de 1980, o piso
salarial dos cortadores de cana em São Paulo era equivalente
a 2,5 salários mínimos. Hoje ele equivale a 1,08
salários mínimos. Com isso, os resultados do aumento
da produtividade do trabalho são transferidos ao patrão,
por meio da diminuição do valor real da tonelada
cortada. Assim, com o passar do tempo, enquanto o lucro dos patrões
aumenta, a renda média real dos trabalhadores tende sempre
a cair, mesmo que eles cortem uma quantidade cada vez maior de
cana por dia. Nisso reside a contradição fundamental
do sistema atual: enquanto aqueles que não trabalham se
enriquecem a cada dia, aqueles que trabalham têm que trabalhar
mais e mais, e mesmo assim ficam cada vez mais pobres.
Portanto, o custo médio do corte manual de cana tende
sempre a diminuir. Apesar desta tendência, a substituição
dos trabalhadores pelas gigantescas máquinas de cortar
cana parece inevitável. E qual será o futuro destes
trabalhadores? Eles se somarão aos milhões de trabalhadores
desempregados que se empilham nas periferias das grandes cidades.
A perspectiva dos cortadores de cana, assim como os demais trabalhadores
brasileiros e de todo o mundo na sociedade atual é o aumento
da intensidade do trabalho, que leva à degradação
da sua capacidade de trabalho e de sua própria vida, a
diminuição do salário e, finalmente, o desemprego.
Vale lembrar que muitos cortadores de cana chegam ao fim da carreira
sem direito à aposentadoria.
Outra vantagem que a forma de pagamento por tonelada traz ao
usineiro é a possibilidade de fraudar a pesagem da cana.
A pesquisa realizada por Mariana Setúbal, num projeto vinculado
à UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e divulgada
em julho de 2005, estudou as condições de trabalho
dos cortadores de cana na cidade de Campos (RJ). A equipe de pesquisa
apurou que, apesar dos trabalhadores alegarem que ganhavam R$
0,12/metro de cana cortada, o valor efetivamente pago, na maioria
dos casos, era de até R$ 0,08/metro. Segundo a pesquisa,
essa diferença era devido ao fato de que a metragem estabelecida
por empreitada ficava a critério do apontador, que é
um funcionário de confiança do usineiro.
Repercussões políticas do pagamento
por tonelada
Mas, afinal, o que pensam os trabalhadores em relação
ao pagamento por tonelada? Para os cortadores de cana, essa forma
de pagamento possibilitou que eles passassem a ser seus próprios
capatazes. Por meio dessa forma de pagamento, a presença
de um chefe que controle o ritmo do trabalho passou a ser supérflua.
A ausência da presença permanente de um chefe aparece
para os trabalhadores como a conquista de uma certa liberdade.
Essa aparente liberdade estimula, por um lado, o desenvolvimento
da individualidade, da independência e do autocontrole dos
trabalhadores; por outro lado, estimula a concorrência entre
eles e de uns contra os outros, pois eles sabem que aqueles que
produzirem menos correm o risco de serem eliminados da turma.
Vale dizer que a meta de colheita individual, em muitas fazendas,
é de 10 a 12 toneladas por dia.
Em suma, o pagamento por tonelada tende a dividir os trabalhadores,
dificultando a sua organização. Uma vez que, aparentemente,
o salário de cada um depende somente de si próprio,
o individualismo é estimulado ao máximo. Por isso,
o pagamento por tonelada (ou por peça em outros setores
da produção) é a forma mais sutil e sofisticada
de exploração da força de trabalho.
Sangue novo
Por traz de toda a sutileza e sofisticação, o
que os representantes do capital buscam, incessantemente, são
novos meios de aumentar seus lucros. Assim, diante da crescente
exigência de força física no trabalho do corte
da cana, a procura por trabalhadores jovens é cada vez
maior. Nesse sentido, Aparecida de Jesus Pino Camargo, presidente
do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Piracicaba (SP), diz
que a maioria dos cortadores de cana está na faixa de 25
a 40 anos, mas que há cada vez mais jovens de 18 anos na
atividade.
Essa redução da idade média dos trabalhadores
é estimulada pelos usineiros, pois os jovens têm
os músculos, os nervos e os tendões mais sadios
do que os mais velhos. Afinal, se a vida útil média
dos trabalhadores é de 12 anos, um trabalhador de 30 anos
que começou a trabalhar com 18, já está na
fase de descarte. Por isso, os usineiros estão à
busca de sangue novo. Os jovens trabalhadores contém
a máxima potencialidade de trabalho a ser explorado.
A alta intensidade do trabalho pode levar à
morte
A busca por maior produtividade alcançada pelo aumento
da intensidade do trabalho é apontada como uma das responsáveis
pelas mortes de 19 bóias-frias no interior paulista desde
abril de 2004. Há quase dois anos, em setembro de 2005,
o Ministério Público Federal, a ONU (Organização
das Nações Unidas) e a Pastoral do Migrante do Guariba
(SP) iniciaram uma investigação para apurar se as
mortes dos trabalhadores estão relacionadas às precárias
condições de trabalho. A suspeita era de que as
mortes teriam ocorrido por excesso de trabalho, pois, em três
casos seguidos, as vítimas eram migrantes e a causa das
mortes foi a mesma: parada respiratória. Até hoje
a investigação não foi concluída.
A última morte ocorreu no dia 24 de abril deste ano, quando
o trabalhador de 20 anos, Lourenço Paulino de Souza, que
havia chegado de Tocantins, foi encontrado morto no final da tarde
ao lado do ônibus, no seu primeiro dia de trabalho.
A classe dominante tenta se defender das acusações
de trabalho escravo
O ex-ministro da Agricultura do governo Lula, Roberto Rodrigues,
afirmou no dia 30 de abril, numa atitude que beira o sarcasmo,
que o trabalho dos cortadores de cana é bruto, pesado,
mas bem remunerado. Os usineiros fazem coro ao ex-ministro:
o salário está muito acima da média
brasileira de remuneração, afirma à
Folha de São Paulo o usineiro Maurílio Biagi Filho.
Lamentável também é a opinião do
professor de agronomia da UNESP, Ulisses Rocha Antoniassi, que
diz: o trabalhador não é obrigado a trabalhar
muito, trabalha para ganhar mais, porque ganha por produtividade.
Estes senhores desconsideram que, além das metas de
produtividade existentes nas fazendas, os trabalhadores estão
pressionados pela sazonalidade do trabalho. É o que afirma
Wilson Rodrigues da Silva, presidente do Sindicato dos Empregados
Rurais de Guariba: o pessoal ganha de R$ 700,00 a R$ 1.200,00
só no período de safra. Mas e depois?
Como se vê, o esforço do ex-ministro, do professor
e do usineiro em defender a atual sociedade baseada no lucro,
é incapaz de ocultar a dura realidade: enquanto os cortadores
de cana são submetidos a condições inferiores
às dos escravos do século XIX, os capitalistas ligados
à rede mundial de produção e industrialização
da cana, e da comercialização dos seus derivados,
continuam aumentando seus lucros, tendo, a seu favor, o incentivo
dos governos de seus respectivos países.
O incentivo de Lula e Bush ao grande capital
internacional ligado à cana-de-açúcar
Os governos brasileiro e norte-americano aumentaram, a partir
desse ano, o estímulo à produção de
cana-de-açúcar no Brasil, esse setor deve exportar
US$ 7 bilhões neste ano. Um dos objetivos da recente visita
de George W. Bush ao Brasil foi fechar um gigantesco acordo sobre
a produção de etanol, combustível derivado
da cana. Vários estudiosos e representantes de entidades
de classe vêem com preocupação o estímulo
descontrolado à monocultura da cana. Nesse sentido, o advogado
da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Aton Fon,
afirma que o atual acordo entre Brasil e Estados Unidos para a
produção de agro-combustível, dificulta a
fiscalização do setor, tendo em vista que a preocupação
do governo agora é aumentar o plantio de cana, e isso não
prioriza as boas condições de trabalho dos cortadores.
O trabalhador deveria contar com o Estado para fazer a fiscalização,
estabelecendo este regulamento. Mas neste caso se complica tudo,
porque o Estado está do outro lado. Ao invés de
fiscalizar para garantir a saúde do trabalhador, o Estado
está, neste momento, mais interessado em garantir o aumento
da produção do etanol, em garantir que os usineiros
tenham maior acesso a crédito. Neste momento, a defesa
dos trabalhadores está bastante desarticulada, afirma
o advogado.
Lula e Bush mostram, assim, que unidos com o grande capital
levam a vida dos trabalhadores a níveis inferiores àqueles
dos escravos. Seus governos nada mais fazem do que aprofundar
as contradições desta sociedade que produz, de um
lado, a dilapidação da vida de milhões de
trabalhadores e, de outro, o enriquecimento desenfreado de uma
pequena parcela da população mundial.