Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês,
no dia 26 de maio de 2007.
Após analisar as condições de trabalho
do cortador de cana-de-açúcar Juraci Barbosa, de
39 anos, morto no dia 29 de junho de 2006, o Ministério
Público do Trabalho concluiu que, antes de morrer, Juraci
havia trabalhado 70 dias sem folga, entre 15 de abril de 26 de
junho.
Além disso, nos dias que antecederam sua morte, ele
cortou um volume de cana bem superior à média diária
de 10 toneladas. O médico João Amâncio Batista,
que avaliou todos os documentos apresentados pela usina São
José, empregadora de Juraci, disse à Folha de São
Paulo que um fato chamou a sua atenção: no
dia 28 de junho, um dia antes de sua morte, ele cortou 17,4 toneladas
de cana. Mas este não foi o único dia que
Juraci foi exposto a uma elevadíssima intensidade do trabalho.
O médico comentou que no dia 21 de abril ele chegou
a cortar 24,6 toneladas!
As conclusões do Ministério Público e
do médico trabalhista confirmam a observação
feita pela pesquisadora da Unesp de que há uma relação
direta entre as mortes e o aumento da produtividade. O Instituto
de Economia Agrícola (IEA), vinculado à Secretaria
de Estado da Agricultura, divulgou que a produtividade diária
dos trabalhadores nas lavouras de cana do estado de São
Paulo cresceu 7,89% nos últimos três anos. Nesse
período, a exaustão causada pelo excesso de trabalho
levou à morte 15 trabalhadores rurais no interior do estado.
Sérgio Torquato, pesquisador do IEA, afirma que a seleção
feita pelas usinas causa uma enorme pressão sobre os trabalhadores.
Com o avanço da mecanização, as vagas remanescentes
passaram a ser ocupadas por bóias-frias bons de braço.
As empresas, conclui ele, estão cada
vez pegando pessoas mais jovens. Portanto, o trabalhador
não tem escolha: é pegar e enfrentar o ritmo alucinante
de trabalho ou ficar desempregado e passar fome.
Protesto dos trabalhadores
No dia4 de maio, cerca de 1.000 bóias-frias
se manifestaram em frente a Agrishow, a maior feira agropecuária
do país. Houve momentos de tensão com a Polícia
Militar, que barrou parte da passeata, e com seguranças
do evento, que impediram a entrada dos manifestantes. O protesto,
que foi organizado pela Feraesp (Federação dos Empregados
Rurais do Estado de São Paulo) e teve o apoio do MST e
de sindicatos rurais da região canavieira de São
Paulo, marcou o início da campanha salarial dos bóias-frias
deste ano. Entre as reivindicações estão
a jornada de 30 horas semanais - hoje é de 44 - aumento
do piso salarial de R$ 450,00 para R$ 1.620,00, fim da exigência
de cumprimento de metas de produção, maior proteção
à saúde, controle da produção diária
pelos próprios bóias-frias, fim dos gatos
(empreiteiros que agenciam a força de trabalho), transporte
seguro e alimentação gratuita (suficiente
para garantir as necessidades nutricionais dos trabalhadores).
Dois mundos
A manifestação mostrou o confronto entre dois
mundos: de um lado, o mundo da alta tecnologia, das máquinas
agrícolas computadorizadas, monitoradas via satélite,
e de outro lado, o mundo do podão (instrumento usado para
o corte manual da cana), o mundo da escravidão assalariada,
onde as precárias condições de trabalho fazem
com que o trabalhador tenha sua vida útil reduzida à
dos escravos do século XIX, levando inclusive à
morte por excesso de trabalho, como foi o caso de Juraci e dos
outros colegas seus que não resistiram e morreram, devido
à opressão exercida pela fome vampiresca do capital,
sempre ávido por uma quantidade cada vez maior de trabalho
alheio.
A fome insaciável por lucro desse mundo enfeitiçado
pelas altas tecnologias é responsável pela destruição
simultânea da força de trabalho humana e da natureza.
O relatório do IPCC - Painel Intergovernamental sobre a
Mudança no Clima, grupo criado pelas Nações
Unidas em 1988, que reúne opiniões de pesquisadores
do mundo inteiro - divulgou dados alarmantes a respeito da degradação
do meio ambiente. Segundo o relatório, para limitar o aumento
da temperatura a 2º C, é preciso que as emissões
de gases-estufa se estabilizem em 2015 e caiam, em seguida, a
algo entre 50% e 80% do nível de 2000. Se isso não
for alcançado, será impossível, mais tarde,
evitar que as temperaturas aumentem até em 5º C ou
mais. A Terra se transformaria num planeta inóspito devido
à aceleração do degelo da Groelândia
e na Antártida, à rápida elevação
dos oceanos e à inundação de terras baixas,
afogando cidades como Londres, Nova York, Miami e Rio de Janeiro.
Alheios a toda esta destruição por eles dirigida,
alheios à barbárie gerada pela sociedade do capital,
os capitalistas e seus aliados, preocupados somente em aumentar
o lucro, propõem que se plante mais cana e que se invista
mais em máquinas. O ex-ministro da Agricultura e co-presidente
da Comissão Interamericana do Etanol, Roberto Rodrigues,
defendeu, durante um seminário em Ribeirão Preto,
no interior de São Paulo, que o trabalho do cortador de
cana deve ser abolido e substituído pelas máquinas.
Admitindo que o trabalho do cortador de cana é pesado,
ele considera que, abolindo a profissão de cortador de
cana, estaria resolvido o problema das mortes dos cortadores de
cana por excesso de trabalho. Mas, somente na região de
Ribeirão Preto, maior produtora de cana do país,
existe cerca de 170.000 cortadores de cana. Afinal, para onde
iriam estes trabalhadores? A proposta de Rodrigues é que
o Estado crie um programa que substitua a cultura da cana nos
terrenos mais íngremes e inaptos à mecanização.
Nestas áreas poderiam se produzir frutas, madeira ou até
mesmo extrair borracha. Para realizar esse plano, que ele chama
de humanização do setor canavieiro,
ele sugere que o governo paulista crie uma proposta de financiamento.
Assim matamos três coelhos com uma cajadada só: eliminamos
o corte manual, criamos atividade que agrega renda ao trabalhador
e ao agricultor e reduzimos a concentração de monocultura.
No entanto, há algo que ex-ministro não explica:
como encontrar trabalho para 170.000 trabalhadores numa área
correspondente a 10% da área atual. Afinal, a produção
de frutas, madeira ou a extração de borracha não
são muito mais intensivas do que a da cana-de-açúcar.
É evidente, portanto, que nessa minúscula área
não haverá lugar para todos. Na realidade, a humanização
proposta por ele tem outro nome: desemprego em massa. Mas, então,
o que propor como solução para melhorar as condições
de vida destes trabalhadores?
A criação de organismos superiores
de luta: comitês de cortadores de cana
Apesar organizarem mobilizações e negociarem
melhores condições de trabalho para os cortadores
de cana, os sindicatos não estão se mostrando capazes
de dar um combate efetivo no sentido de resolver a catastrófica
situação a qual os bóias-frias estão
submetidos. Negociações anuais que respeitam a data-base
da categoria e alguns protestos não dão conta da
radicalidade da opressão exercida contra os trabalhadores.
Eles representam nada mais do que a continuidade de uma atuação
rotineira, repetida ano a ano, totalmente aquém daquilo
que a realidade exige. As condições de trabalho
dos cortadores são tão dramáticas que é
necessário superar a rotina. É fundamental criar
uma forma de organização superior.
Somente por meio de comitês permanentes, organizados
pelos próprios cortadores, espalhados em todas as usinas
e ligados por comitês municipais e regionais, somente assim,
será possível organizar uma verdadeira resistência
contra as péssimas condições de trabalho
que estão levando os trabalhadores à morte. Os comitês
servirão como meio legítimo de denúncias
de todo e qualquer abuso que seja cometido contra os cortadores
de cana. Os comitês, por estarem ligados uns aos outros,
serão capazes de reagir com a rapidez e de maneira generalizada,
a qualquer nova situação que surja.
Depois do Ministério Público, dos médicos
e dos pesquisadores confirmarem a relação entre
as mortes e o excesso de trabalho, não é possível
ficar apenas negociando passivamente. Chegou a hora de reagir.
Chegou a hora de dar um basta às mortes no campo. Chegou
a hora de construir a auto-organização dos cortadores
de cana.