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Arte e Liberdade

André Breton e os problemas da cultura no século XX

Parte 2

Por Frank Brenner e David Walsh
17 Marzo 2007

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Isto nos traz de volta ao projeto central do surrealismo—a resolução das contradições entre sonho e realidade. A influência de Freud sobre os surrealistas—especialmente sua interpretação do significado dos sonhos e o descobrimento do inconsciente mental—é crucial. De fato, Breton foi um dos primeiros intelectuais na França a valorizar e dar atenção à importância do trabalho de Freud.

Mais do que um mero admirador de Freud, Breton acreditava que a psicanálise poderia ser usada não só para tratar enfermidades mentais, mas para transformar a vida de uma maneira geral. Esta interpretação radical de Freud é um dos principais temas do primeiro manifesto surrealista: “Se as profundezas de nossa mente contém estranhas forças capazes de aumentar as forças que estão na superficie, ou de travar uma batalha vitoriosa contra elas, há todo interesse em procurá-las.... Não se poderia usar também o sonho na solução das questões fundamentais da vida?”[21]

Freud, deve ser observado, não correspondeu à admiração dos surrealistas, a despeito da devoção declarada deles às suas idéias. Não apenas o seu gosto em relação às artes era conservador, como ele considerava que Breton e seus colegas usavam os conceitos psicanalíticos de maneira completamente inapropriada. Não fazia sentido para Freud a utilização de imagens oníricas em poemas ou pinturas, uma vez que os sonhos pra ele não tinham nenhum significado se separados de seus contextos psicológicos, isto é, separados da mente e da história de vida do indivíduo que os sonhou.

Além disso, a questão central da terapia psicanalítica era tornar consciente o inconsciente e, na opinião de Freud, o mesmo valia para a arte—não era o caso de voltar ao inconsciente, como os surrealistas estavam fazendo, mas justamente o contrário. “O que me interessa em sua arte”, disse Freud a Salvador Dali quando da visita deste em 1938, “não é o inconsciente, mas o consciente”. [22]

Ao mesmo tempo, no México, Trotsky colocava o mesmo ponto a Breton: “Você invoca Freud, mas não faz ele o oposto? Freud eleva o inconsciente ao consciente. Não estão vocês tentando encobrir o consciente sob o subconsciente?” [23]

Esta observação é bastante relevante e um grande número de trabalhos surrealistas que poderiam ser usados como exemplos—obras repletas de associações tão incoerentes ou imagens tão impenetráveis a ponto de cairem em uma espécie de solipcismo artístico. E, além disso, o surrealismo tendia a encorajar a produção de trabalhos deste tipo, através da transformação da espontaneidade em um princípio da prática criativa, pelo uso de técnicas como a “escrita automática”, que discutiremos mais adiante.

A produção artística depende, de fato, muito mais da intuição que a ciência ou a filosofia. Os idealistas (neles incluídos os primeiros surrealistas) concebiam a intuição como a pura ausência de razão, isto é, como pura subjetividade. Mas do ponto de vista do materialismo, o subjetivo é ele mesmo objetivo, o que quer dizer que tanto a mente inconsciente tem a sua própria lógica interna—que pode ser racionalmente compreendida—quanto que o consciente e o inconsciente formam uma unidade dialética na vida mental do indivíduo.

Trotsky, em sua autobiografia, fornece uma das mais lúcidas descrições dessa unidade, fazendo uma analogia entre sua operação na vida social e na esfera da criatividade individual: “A união criativa do consciente com o inconsciente é o que se costuma chamar de ‘inspiração’. A revolução é o furor criativo da história. Cada escritor de verdade conhece momentos criativos quando algo mais forte do que si mesmo está guiando suas mãos; cada orador de verdade experimenta momentos em que alguém mais forte do que o seu eu cotidiano fala por através dele. Isto é a ‘inspiração’, derivada da conjunção dos maiores esforços criativos de uma pessoa. O inconsciente ergue-se das profundezas e submete a mente consciente à sua vontade, misturando-a a si mesmo em uma síntese maior”.[24]

Dessa forma, sonhos e imaginação não são necessariamente uma fuga da razão e da realidade. Ao contrário, quando fundidos à consciência, eles dão abertura para possibilidades criativas enormes que aprofundam nossa compreensão do mundo e de nós mesmos.

Isto é evidente na arte; a imagem artística, obtida em parte através da intuição, não é uma alucinação vazia, podendo inclusive ser uma visão profética, pois os artistas conseguem imaginar - ou ver com os “olhos da mente” - certos aspectos da realidade com uma precisão muito maior do que seus contemporâneos—ou até mesmo si próprios—podem racionalmente compreender.

Embora Breton estavisse errado em procurar nos sonhos um substituto para a realidade, mais tarde ele passou a enxergar o problema de uma outra forma: ele agora definia o imaginário como sendo o que “tende a se tornar real” [25] e o objetivo das atividades surrealistas como sendo “lançar um fio condutor” [26] entre estados despertos e estados oníricos.

Predominantes, as formas burguesas de consciência expressam a tirania do que é, em outras palavras, a aceitação do fato consumado, e são inimigas do desenvolvimento da consciência de classe. No plano da psicologia individual, na experiência subjetiva de cada pessoa, um processo similar toma lugar: o pensamento consciente contém os ajustes, compromissos e frustrações impostos ao indivíduo pelas demandas do mundo exterior, o que significa acima de tudo a negação das necessidades e desejos humanos. Impedidos em grande medida de se concretizar na realidade, estas necessidades e desejos não desaparecem: encontram um escape no inconsciente, isto é, nos sonhos e na imaginação.

Este escape também pode ser uma aspiração—o sonho por si mesmo pode afirmar uma crença de que a vida pode ser melhor, e que as restrições à liberdade e à felicidade impostas pela realidade existente podem e devem ser superadas. Como Breton uma vez colocou poeticamente, “a resignação não é escrita sobre a pedra móvel do sono. A imensa manta escura tece diariamente em seu centro os olhos cravados de uma vitória clara”.[27] Aqui está a sua utlidade para a resolução de problemas fundamentais da vida: usando a imagem do fio condutor, o imaginário pode ser o meio através do qual a realidade é carregada de esperança.

A esperança é a chave para o conceito surrealista de beleza. Para Breton a beleza era idêntica a o que ele chamava de maravilhoso. Apesar de nunca ter definido isto com precisão, ele nos deu incontáveis exemplos dessas experiências: encontrando uma moça numa rua de Paris cujos olhos o fascinaram e que disse a ele que se chamava Nadja “porque em russo este é o começo da palavra esperança, e apenas o começo” [28]; em Guadalajara, de manhã bem cedo, entrando em um edifício maravilhosamente ornado e dilapidado que Breton tinha apelidado de Palácio Insano e encontrando, numa sala “escura e imensamente vazia”, uma jovem de cabelo desgrenhado e camisola branca amarrotada, limpando o chão e “sorrindo como o amanhecer do mundo”.[29] O maravilhoso é o momento do sonho se irrompendo na realidade, um pressentimento luminoso do desejo satisfeito.

Poesia e arte surrealista

É possível, ou oportuno, fazer uma avaliação do surrealismo—na pintura, fotografia, poesia, prosa, cinema etc—como um movimento artístico? Tal tarefa é muito vasta e está fora do nosso propósito presente. Certamente existem questões legítimas a serem levantadas.

Somos forçados a tratar aqui da fixação inicial de Breton no automatismo psíquico, esforço artístico livre do controle consciente, que ele insistia ser elemento indispensável do surrealismo. A sugestão de que entrando em um estado de transe ou de sonhos o inconsciente do artista é revelado de um modo puro e sem filtros hoje nos parece ingênua. O fato de que os produtos “espontâneos” que Breton e seus colegas produziram tomaram a forma de imagens poéticas altamente evoluídas, inconcebíveis sem um conhecimento extensivo de técnica literária e história, pode sugerir que os estados nos quais eles penetraram dificilmente eram livres da sugestão consciente.

Se concentrando nas fontes de inspiração da arte, Breton freqüentemente esquece que uma obra de arte é o produto da relação complexa entre o espontâneo/intuitivo e o concebido racionalmente, na qual nenhum dos lados pode ser negligenciado. O artista cria em si mesmo um equilíbrio entre esses elementos, uma tensão que está constantemente em questão, constantemente recriada. Nenhuma obra significativa pode ser simplesmente o ato de “exercitar” um propósito preconcebido, mas um propósito consciente deve emergir do ato de criar cada obra significativa.

Quando os insights de Breton, particularmente os que se referem à prática da criação artística, estão em julgamento, vemos que eles possuem verdade profunda. Breton estava absolutamente certo em insistir na função indispensável dos estados “de expectativa e perfeita receptividade, e da necessidade de cultivar estados mentais caracterizados por uma vontade de receber estímulos de todas as fontes possíveis. [30]

Nenhuma obra de arte séria é realizada sem o elemento da surpresa, e que pode ser encorajado, de material emanando das profundezas interiores, que chega à superfície somente sob condições definidas, momentos nos quais “uma chama bem delicada ilumina ou completa o significado da vida como nada mais consegue fazer”.Breton celebra com beleza essas condições: “Ainda hoje conto apenas com o que vem da minha abertura, de minha ânsia de vagar à procura de tudo, que me mantém em comunicação misteriosa com outros seres abertos, como se nós fossemos repentinamente chamados a nos unir”.[31]

Breton não era meramente um teórico, ele era um poeta. O que se pode, então, dizer de sua própria obra? “Comparar dois objetos o mais distante possíveis um do outro, ou, por qualquer método, confrontá-los de uma maneira brusca e fulminante, permanece sendo a tarefa mais elevada que a poesia deve sempre aspirar.” [32] Isto é verdade? Este método é inevitavelmente frutífero? Ele também não pode produzir resultados que parecem meramente arbitrários ou triviais? Examinando a poesia de Breton, alguém pode encontrar tanto imagens extraordinárias quanto imagens que são inteiramente inacessíveis. Sua insistência de que a apreciação de beleza poderia contornar inteiramente o intelecto não se sustenta sob análise mais rigorosa. Sentimento e pensamento não são domínios separados por muralhas.

Alguém interessado nos versos de Breton faria bem em começar com Earthlight, que inclui sete volumes de poemas seus. Free Union (1931) [Livre União], The Pistol with White Hair (1932) [O Revólver de Cabelos Brancos] e The Air of the Water (1934) [O Ar da Água] parecem os mais interessantes.

O poema Free Union [Livre União], talvez o mais emocionalmente poderoso e direto de Breton, conclui: [33]

Minha mulher com seus olhos cheios de lágrimas
com seus olhos de escudo violeta e um ponteiro de velocímetro
minha mulher com seus olhos de savana
minha mulher com seus olhos de água pra beber na prisão
minha mulher com seus olhos de floresta para sempre sob o machado
com seus olhos de nível-do-mar nível-do-ar terra e fogo

Quase inevitavelmente Breton parece um poeta de versos extraordinários, mais do que poemas inteiros:[34]

Eu sonho eu vejo você infinitamente sobreposta a você mesma

ou

Na bela meia-luz de 1934
o ar estava um rosa esplendido a cor da tainha vermelha

ou

Os primeiros exploradores procurando menos por terras
Do que pelas suas próprias origens

Também é possível concordar com a afirmação de Breton de que beleza precisa ser convulsiva ou perturbante sem a priori concordar com a questão da forma ou do estilo. Seus ataques ao romance como uma forma e ao realismo como tendência entediante e medíocre “hostil a qualquer avanço intelectual ou moral” finalmente começam eles mesmos a ficar entediantes.

A maior fraqueza de Breton é que ele tende a detectar as qualidades que ele valoriza somente em um grupo pré-selecionado de trabalhos. Rompimento intelectual e emocional estão tão presentes nos romances de “tradicionalistas” como Theodore Dreiser e Thomas Hardy assim como nas pinturas dos surrealistas Tanguy ou Masson. Isto não quer dizer que forma é uma questão de indiferença, ou que certas formas não se esgotaram historicamente, mas Breton freqüentemente apresentava a questão de um modo unilateral (e de certa maneira egocêntrico).

O surrealismo certamente pode reivindicar crédito de ser o movimento artístico mais intelectualmente provocativo do século XX. Ele persistentemente fazia as questões mais penetrantes sobre a humanidade e de seu destino. Os trabalhos surrealistas abundam de imagens que colocavam a consciência ao invés de “amaciá-la”. Por exemplo: o retrato de René Magritte de um rosto de mulher no qual seus seios tomam o ligar de seus olhos e o sexo o lugar da boca (O Estupro), ou uma linha de Breton fundindo a descrição dos pais de uma garota com o apartamento aonde eles moram: “Seu pai uma entrada solidamente guiada pra dentro de sua sombra sua mãe uma bela pirâmide de sombra de luz”. [35]

Nossa expectativa do que é normal e razoável é interrompida por tais imagens, precisamente por esta razão—elas abrem pra nós um senso mais profundo do que é real. A pintura de Magritte não reproduz a face de uma mulher, mas sim sua ausência de face, e através disso nos evoca uma idéia de o que significa ser uma mulher nesse mundo.

Nas artes visuais, em particular, para que se avalie o impacto do surrealismo deve-se listar os nomes daqueles que estavam diretamente envolvidos ou profundamente influenciados pelo surrealismo: Giorgio di Chirico, Francis Picabia, Pablo Picasso, Marcel Duchamp, Hans Arp, Masson, Max Ernst, Man Ray, Salvador Dali, Joan Mir-, Luis Bu-uel, Alberto Giacometti, Magritte, Henri Cartier-Bresson, Tanguy, Arshile Gorky, Joseph Cornell. Novos horizontes para as atividades e imagens artísticas foram abertas pelo surrealismo, tanto que ele alterou completamente a noção popular do que é arte. Talvez a melhor indicação da influência surrealista seja simplesmente o fato da própria palavra ter se tornado parte da linguagem cotidiana.

A vida interna do movimento é uma questão que merece alguma consideração. A reputação de Breton de ser o “papa do surrealismo” ganhou circulação ampla, até pelos numerosos rachas e expulsões experimentados pelo movimento; não surpreendentemente, muitos daqueles deixados de fora do movimento culparam Breton pessoalmente. Assumidamente, Breton poderia em algumas ocasiões ter sido injusto, arbitrário e até cruel, mas qualquer avaliação objetiva dessas disputas demonstra que questões políticas, não pessoais, predominavam, especificamente quanto à questão da adesão dos surrealistas à revolução socialista. Em praticamente cada caso a posição de Breton foi justificada. (Deve-se notar também que a vida interna dos surrealistas não ficou incólume à degeneração do movimento dos trabalhadores. O Segundo Manifesto do Surrealismo de Breton (1930), na sua violenta e pungente crítica dos seus oponentes, mostra traços definidos do estalinismo do “Terceiro Período”).

Em 1929 Breton rompeu com um grupo que incluía o ator e poeta Antonin Artaud e o escritor Robert Desnos, principalmente pelas suas objeções à radicalização política do surrealismo; em 1932 Aragon saiu do movimento para assumir uma carreira como orador e liderança cultural do estalinismo francês; seis anos depois Eluard tomou o mesmo caminho, tornando-se de fato o poeta honorário do partido comunista e despejando versos ocasionais sob demanda; Dali foi expulso pela sua adoração heróica a Hitler, sem mencionar seu comercialismo e busca de publicidade que estimulou Breton a transformar seu nome em um acrônimo/sigla, “Avida Dollars.”

O que realmente incomoda vários críticos de Breton não são só as especificidades dessas disputas, mas o fato dele insistir em responsabilizar seus colegas por suas posições e ações. “O comércio intelectual”, escreveu Breton uma vez com evidente exasperação, “é um caminho de muita impunidade”. [36]

O escritor Georger Bataille, cujo rompimento com Breton tinha sido particularmente amargurado, desmentiu suas críticas anos depois: “Hoje eu acredito que as exigências de Breton...eram justificadas. Breton acolhia um desejo de devoção compartilhada a uma verdade suprema, e um ódio a cada concessão contrária a essa verdade; desta verdade Breton queria que seus amigos fossem a expressão - ou então que deixassem de ser seus amigos.” [37]

Surrealismo e Marxismo

Como já é evidente a partir da presente discussão, ninguém pode considerar seriamente a história do surrealismo sem trazer a tona o nome de Leon Trotsky. Breton começou a desenvolver uma admiração por Trotsky em agosto de 1925, depois de ler seu livro sobre o início da vida de Lênin, sobre o qual ele comentou, “não encontrei nehuma falta, nem em grandeza nem em perfeição”.[38] O estilo e substância da obra de Trotsky permaneciam em contraste gritante com os esforços do Partido Comunista francês (PCF), cada vez mais estalinizado. Apesar da filiação de Breton ao PCF no fim de 1926, junto com seus camaradas surrealistas Aragon, Eluard, Peret e Pierre Unik, ele não tinha ilusões sobre a organização.

Em Legítima Defesa (setembro de 1926) Breton escreveu: “eu não sei porquê eu deveria me abster mais ainda de dizer que o L’Humanite [o jornal diário do PCF]—infantil, declamatório, desnecessariamente cretino—é um jornal ilegível, totalmente inadequado ao papel de educação do proletariado que ele reivindica assumir. Além desses artigos de leitura rápida, que se apegam de forma tão próxima à atualidade que não há nenhuma perspectiva para o futuro... é impossível não notar naqueles que os escreveram um desgaste extremo, uma resignação secreta ao existente, com a preocupação de manter o leitor em uma ilusão mais ou menos generosa, da maneira mais barata possível” [39] Breton não era, obviamente, um dos artistas favoritos da liderança do partido.

Breton foi expulso do PCF e da sua organização cultural em 1933. Dois anos depois os estalinistas usaram como desculpa um confronto entre Breton e escritor soviético Ilya Ehrenburg numa rua de Paris (Ehrenburg tinha escrito um ataque grosseiro aos surrealistas; Breton o confrontou e deu um tapa na sua cara) para excluir Breton de discursar no seu Congresso de Escritores em Defesa da Cultura. Eluard só foi autorizado a ler a declaração de Breton, um de seus esforços mais extraordinários, tarde da noite em frente a uma multidão hostil. “Daqui de onde nós estamos”, Breton escreveu, “nós insistimos que a atividade de interpretar o mundo precisa continuar ligada com a atividade de mudar o mundo. Nós mantemos que é papel do poeta, do artista, estudar em profundidade o problema da humanidade em todas suas formas...”. [40]

Em sua avaliação do Congresso, “No Tempo em que os Surrealistas Estavam Certos (1935)”, Breton notou que “verdadeiro banho de repetições inúteis, considerações infantis e adulações: aqueles que clamam estar salvando a cultura mundial escolheram um clima doentio para isso”.

Ele denunciou o oportunismo dos intelectuais que aceitaram as ordens estalinistas: “Tanto no campo da política quanto no campo das artes, duas forças—a recusa espontânea das condições de vida oferecidas ao homem e a necessidade imperativa de mudá-las, por um lado, e a duradoura fidelidade a princípios de rigor moral, por outro—carregaram o mundo adiante”.[41]

Breton serviu no Comitê Francês de Inquérito nos Julgamentos de Moscou. Em setembro de 1936, de acordo com o livro Revolução na Mente de Polizzotti, “Breton discursou um grande comício para demandar ‘a verdade sobre o [primeiro] Julgamento de Moscou’: ‘Nós consideramos a encenação do Julgamento de Moscou como sendo uma ignóbil tarefa policial’, ele declarou. Stalin tinha se tornado ‘o grande negador e principal inimigo da revolução proletária... o mais indesculpável dos assassinos.’ Breton fez um apelo especial em nome de Trotsky, o maior dos alvos de Stalin, que tinha sido condenado à morte in absentia no tribunal: ‘um intelectual e guia moral de primeira linha, cuja vida, tão logo é ameaçada, se torna tão preciosa para nós como nossas próprias vidas.‘ “Breton nunca recuou dessa posição. Em 1951 ele comentou sobre os julgamentos-espetáculo: “Eu persisto em pensar que eles abriram, e inevitavelmente deixaram infestar, a maior carnificina dos tempos modernos”.[42]

O respeito de Breton por Trotsky era tão grande que lhe trouxe dificuldades quando eles vieram a colaborar no manifesto de 1938. Breton, que era conhecido ou se reunia com muitas das figuras significativas do círculo intelectual e artístico europeu e não era um indivíduo que se impressionava com facilidade nem que se chocava facilmente, se encontrou paralisado diante da presença do líder do partido bolchevique.

Em uma carta a Trotsky escrita imediatamente depois de sua partida do México, Breton tentou explicar este fenômeno: “Esta inibição é principalmente um produto.. da admiração sem limites que eu tenho por você ... Muito freqüentemente eu imagino o que aconteceria se, por um acaso impossível, eu me encontrasse diante de uma dos homens a partir dos quais eu modelei meu pensamento e sensibilidade....Como de repente eu me senti estranhamente despido das minhas habilidades, rezando para um tipo de necessidade perversa de me esconder. É o que eu chamo para meu próprio uso de, em memória de rei Lear, meu ‘complexo de Cordélia.’ Por favor, não ria de mim; é totalmente inato, orgânico. Eu tenho todas as razões para acreditar que isso é inerradicável.” [43]

Ao contrário de muitos outros no período pós-guerra, Breton nunca veio a repudiar as idéias gerais do socialismo ou suas associações com o trotskismo. Em uma entrevista ele fulminantemente sugeriu que um “verdadeiro estudo clínico” feito das “moléstias especificamente modernas” que fazem esse tipo de intelectuais arrependidos “mudar radicalmente suas opiniões e renunciar de uma maneira masoquista e exibicionista seus próprios testemunhos, se tornando campeões de quase o contrário do que começaram servindo com grande fanfarra.” [44] (Uma “moléstia” que atinge proporções epidêmicas nos nossos dias!)

Em uma mensagem que mandou para um encontro em 1957 em comemoração do aniversário de 40 anos da Revolução Russa organizado pelo PCI, a seção francesa do Comitê Internacional da Quarta Internacional naquele tempo, Breton expressou sua contínua fidelidade à causa “da emancipação humana”.Ele declarou: “A despeito de tudo eu permaneço entre aqueles que ainda encontram na memória da Revolução de Outubro uma grande parte do impulso que me guiou quando eu era jovem e que implicava em uma entrega total”. [45]

Em 29 de janeiro de 1962, quatro anos e meio antes de sucumbir de parada cardíaca aos 70 anos, Breton entregou um elogio comovente em honra de Natalia Sedova-Trotsky, que tinha morrido poucos dias antes em Paris. Ele declarou que a viúva de Trotsky “precisa saber que o processo evolutivo iria por fim impor uma revisão radical na história cinicamente falsificada dos últimos quarenta anos, que no final de seu processo irreversível iria não só fazer justiça a Trotsky, mas iria ser chamado a aceitar, com todo seu vigor e amplitude, as idéias pelas quais sua vida foi dedicada”. [46]

No seu apoio às idéias de Trotsky, Breton não estava sozinho entre os surrealistas. Pierre Naville rompeu com o grupo surrealista em 1926 e se jogou nas atividades do Partido Comunista. Mais tarde ele se tornou uma figura de liderança no movimento trotskista da França. Peret, um dos colaboradores mais próximos de Breton, cumpriu um papel ativo na Oposição de Esquerda brasileira e em 1931 foi indicado Secretário Regional da oposição para o Rio de Janeiro. Seguindo sua expulsão do Brasil por suas atividades, ele se juntou aos trotskistas franceses, masi tarde lutando na Guerra Civil Espanhola. Gerard Rosenthal, que como “Francis Gerard” tinha sido um dos mais originais surrealistas, serviu de advogado de Trotsky. Maurice Nadeau, o cronista do surrealismo, também participou do movimento trotskista. Nem o reforço das iniciativas artísticas e políticas de Breton por um número dos mais extraordinários artistas visuais do período entre guerras—Ray, Ernst, Tanguy, Masson, em particular—deve ser esquecido.

Os marxistas, confrontados com essa história, podem querer ponderar as seguintes questões relativas: por que é que esta tendência artística cujas preocupações, na superfície, aparentam estar tão distantes daquelas da classe trabalhadora vieram a se identificar tão atentamente, mais atentamente do que qualquer outra, com a revolução proletária e a Quarta Internacional? Porque é que tanto nas obras de Breton produzida nos anos 30 parece urgente e contemporânea, enquanto tanto dos esforços da mesma epoca em “descrever realisticamente a vida da classe trabalhadora” encontram-se datadas e até pueris? Este artigo foi uma tentativa de oferecer uma resposta pelo menos parcial: de que os surrealistas carregavam uma verdadeira crítica radical do real, tanto nas suas dimensões exteriores quanto interiores.

Breton era o mais admirável representante de uma geração extraordinária de artistas pequeno-burgueses; um poeta que se direcionou ao marxismo, mantendo sua visão poética, embasado em profundas e constantes convicções; um intelectual, em suma, que foi mais longe do que ninguém. Seus melhores escritos nos regojizam por sua combinação de crítica violenta e delicadeza; seu zelo revolucionário e devoção à beleza; sua infatigável energia e confiança; seu exercício da imaginação ao grau mais elevado.

No manifesto de 1938, há uma passagem impressionante (aparentemente escrita por Breton) que torna claro porque o artista é “um aliado natural da revolução”. Evocando a teoria da sublimação de Freud, a declaração explica que o artista precisa organizar “as forças do mundo interior” contra a insuportável realidade de repressão e alienação dentro da sociedade capitalista, mas essas forças interiores não são exclusivas do artista como indivíduo, mas “comuns a todos os homens”. Esta é a razão pela qual a luta do artista pela sua própria arte se mescla com a luta pela libertação de toda a humanidade: “A necessidade de emancipação da mente tem que seguir seu curso natural, para ser induzida a reemergir nesta necessidade primordial: a necessidade da emancipação do homem”.[47] Deve ser difícil pensar em um artista que exemplificou Breton melhor do que ele mesmo: no início do movimento surrealista tinha escrito que “liberdade” era a única palavra “que me exalta ainda”, e ele continuaram perseguindo a busca pela liberdade, seguindo “seu curso natural” não importando aonde ela o levasse ou que forças tentassem pará-lo. [48] Nisto reside a grandeza de sua realização e a persistente significância de sua vida.

Notas
21. Breton, Manifesto Surrealista 1924, marxists internet archive. [back]
22. Arnold Hauser, The Social History of Art (New York: Random House, 1985), vol. 4, Naturalism of the Film Age, p. 223. [back]
23. Jean van Heijenoort, With Trotsky in Exile: From Prinkipo to Coyoacan (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1978], p. 122. [back]
24. Leon Trotsky, My Life: An Attempt at an Autobiography (New York: Pathfinder Press, 1970), pp. 334-35. [back]
25. Andre Breton, Earthlight, trans. Bill Zavatsky and Zack Rogow (Los Angeles: Sun & Moon Press, 1993), p. 90. [back]
26. Andre Breton, The Communicating Vessels, trans. Mary Ann Caws and Geoffrey J. Harris (Lincoln: The University of Nebraska Press, 1990), p. 86. [back]
27. Ibid., p. 145. [back]
28. Breton, Nadja, p. 66. [back]
29. Breton, Free Rein, p. 28. [back]
30. Breton, Manifestoes of Surrealism, p. 180. [back]
31. Andre Breton, Mad Love, trans. Mary Ann Caws (Lincoln: University of Nebraska Press, 1987), p. 25. [back]
32. Breton, Communicating Vessels, p. 109. [back]
33. Breton, Earthlight, pp. 84-85. [back]
34. Ibid., pp. 142, 148, 153. [back]
35. Ibid., p. 123. [back]
36. Polizzotti, Revolution of the Mind, p. 318. [back]
37. Ibid., p. 336. [back]
38. Rosemont, ed., What is Surrealism?, p. 30. [back]
39. Ibid., p. 32. [back]
40. Breton, Manifestoes of Surrealism, p. 240. [back]
41. Ibid., pp. 245-46, 248. [back]
42.Polizzotti, Revolution of the Mind, pp. 436-37. [back]
43. Ibid., p. 462. [back]
44.Rosemont, ed., What is Surrealism?, p. 202. [back]
45. Ibid., pp. 297-98. [back]
46. Ibid., p. 308. [back]
47. Breton, Free Rein, p. 31. [back]