A violência do confronto entre a polícia e os
traficantes ocorrido na última quarta-feira (27/06) nas
favelas do Rio de Janeiro foi algo surpreendente. Com o apoio
do governo Lula, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio
Cabral (PMDB), comandou as polícias civil e militar e a
Força Nacional de Segurança para uma das maiores
operações de combate ao tráfico no estado.
Estima-se que em apenas um dia de confronto morreram 22 pessoas
e 11 ficaram feridas no conjunto de 12 favelas conhecido como
Complexo do Alemão. Ao todo, 1.350 homens foram mobilizados
para a operação.
O Complexo do Alemão abrange 3 quilômetros quadrados
e localiza-se nos morros da zona norte do Rio de Janeiro, à
apenas alguns quilômetros da costa cheia de glamour
da capital das praias da América do Sul. Ao
lado do luxo sustentado principalmente pelo turismo nacional e
internacional, amontoam-se nos morros cerca de 300 mil pessoas.
Um terço delas têm renda inferior a R$ 380,00 (cerca
de US$ 200) mensais.
Em termos de educação, renda per capita e saúde,
as condições das pessoas que moram nas favelas está
abaixo das condições de vida de alguns países
da África. O IDH - índice calculado pelo Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento e pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que avalia
a qualidade de vida da população - das favelas do
Complexo do Alemão é de 0,587. O IDH do Gabão
é de 0,637 e de Cabo Verde de 0,722. Em alguns países
da Europa, o índice é quase o dobro do medido nas
favelas do Rio: Noruega (0,927); Bélgica (0,923) e Suécia
(0,923). O Brasil está na 69ª colocação
no ranking do IDH de 2006 (em 177 países no total), com
um índice de 0,792.
O Complexo do Alemão é considerado o quartel-geral
do Comando Vermelho, grupo criado em 1979, no presídio
Cândido Mendes, na Ilha Grande, Rio de Janeiro, a partir
do convívio entre presos comuns e militantes dos grupos
armados que combatiam o regime militar. A partir dos anos 80,
o tráfico de drogas, especialmente de cocaína, foi
responsável pela grande ampliação do poder
do Comando Vermelho, que começou a adquirir armamento pesado,
como pistolas, metralhadoras, fuzis, granadas e armamento antiaéreo.
Os choques entre a polícia e os traficantes passaram a
ser comuns nesta região, mas a dimensão da operação
realizada no dia 27 foi inédita.
A megaoperação da polícia
O Complexo do Alemão está ocupado pela polícia
desde o dia 2 de maio. O Objetivo da operação era
capturar os responsáveis pela morte dos soldados Marco
Antônio Ribeiro Vieira e Marcos André Lopes da Silva,
do 9º Batalhão, assassinados com mais de 30 tiros
no dia 1º de maio.
Depois de reunir informações por mais de um mês,
a polícia decidiu atacar. Na terça-feira (26), véspera
da operação, o Centro de Informação
da Polícia Civil soube que, no dia seguinte, traficantes
se encontrariam numa casa onde estava escondido o paiol de armas
e drogas do Comando Vermelho, na Favela da Grota. Era o momento
que a polícia estava esperando.
Os policiais se reuniram às 5 horas da manhã
no estande de tiros da Polícia Civil, na zona norte do
Rio, e seguiram para o Alemão. O cerco começou por
volta das 9 horas. A polícia foi recebida a tiros. O confronto
armado entre a polícia e os traficantes durou sete horas.
Mas, afinal, o que pensam os moradores sobre a ação
da polícia? Como eles reagiram à presença
ostensiva do Estado na favela?
A reação dos moradores
O dia da megaoperação da polícia foi realmente
trágico para os moradores. Na favela da Grota, vítimas
inocentes saíam dos becos da favela nos braços de
parentes e vizinhos. Isso é uma guerra. Minha neta
foi baleada em casa, disse a avó de Larissa de Andrade
Silva, ferida no tornozelo e levada para o Hospital Getúlio
Vargas numa lotação. A avó preferiu não
se identificar.
Pouco tempo depois, Wesley Glauco, de 17 anos, da mesma favela,
deu entrada no hospital, ferido à bala. Na favela da Fazendinha,
Arlete dos Santos, de 48 anos, levou um tiro de bala perdida na
região lombar, e Karen Cristina Batista Borges, de 20,
ficou ferida por estilhaços de granada no tornozelo esquerdo.
As duas foram atendidas no hospital.
Por volta das 16:30 horas, três blindados da PM desceram
com os primeiros corpos da Grota. Em seguida, o motorista de uma
lotação foi obrigado a parar para que seis corpos
fossem jogados no interior da van e levados à delegacia.
Familiares e vizinhos de Bruno de Paula, de 20 anos, arrastaram
o corpo dele envolvido em lençóis pela rua até
a entrada da favela. Eles iniciaram um protesto contra a operação
policial. A manifestação foi reprimida minutos depois,
quando agentes de segurança lançaram gás
pimenta contra o grupo. Esse rapaz não era bandido,
afirmou uma mulher que pediu para não ser identificada.
Policiais civis levaram o corpo para o Instituto Médico
Legal (IML).
Maria de Lourdes Alves, de 50 anos, também afirmou que
policiais estavam sendo violentos com moradores no interior da
favela. A gente sai de casa e não sabe se volta com
vida. Estou sem almoço, porque depois do que vi de manhã
quando saí de casa, não tive coragem de entrar na
Grota antes que a polícia saísse, disse ela.
Outro morador disse que prestaria queixa contra policiais pelo
desaparecimento de R$ 2,5 mil de sua casa. Será que
não podemos confiar em quem deveria nos socorrer?,
questionou ele antes de ser retirado por policiais.
A afirmação do governo de que não há
inocentes entre as vítimas causou revolta na população
local. A Polícia Civil não soube informar quais
os antecedentes criminais dos mortos já identificados,
o que aumenta a suspeita de que tenham morrido inocentes. Três
adolescentes de 13, 14 e 16 anos estão na lista oficial
dos mortos por policiais. Moradores do complexo do Alemão
afirmaram que apenas 9 dos 22 mortos na operação
policial teriam envolvimento com a criminalidade.
Um ambiente de guerra civil
No dia da operação policial, o clima nas favelas
do Complexo do Alemão era de uma verdadeira guerra civil.
A movimentação policial causou o fechamento de pelo
menos oito escolas na região.Durante vários
dias, 4.600 crianças permaneceram sem aula. O Unicef (Fundo
das Nações Unidas para a Infância) fez um
alerta sobre a situação de crianças que são
impedidas de estudar por viverem em áreas de confronto
e comparou os estudantes do complexo do Alemão com os da
faixa de Gaza e do Iraque. A violência urbana do Brasil
impede que meninas e meninos freqüentem as escolas.
Ataques às crianças são inaceitáveis.
As escolas devem ser ambientes seguros para que meninas e meninos
possam aprender e se desenvolver, afirmou a diretora-executiva
do Unicef, Ann Veneman, numa nota à imprensa. Segundo a
nota, a situação das crianças que foram às
aulas durante esse período foi ainda pior. As crianças
ficaram sem aulas ou foram transferidas para uma única
escola, onde milhares de estudantes dividem as salas de aula em
quatro turnos diários de apenas 2:15 horas, disse
o comunicado.
Outros identificam a operação no Complexo do
Alemão com o que ocorreu no Haiti: em fevereiro, o bairro
de Cité Soleil, o mais violento de Porto Príncipe,
a capital haitiana, enfrentou uma operação semelhante:
750 homens de vários países, sob o comando do Brasil,
invadiram a favela deixando 6 mortos. O saldo de mortes no Complexo
do Alemão, no entanto, é bem maior. Nos 60 dias
transcorridos desde o início da operação,
já morreram nas favelas do Rio 46 pessoas e 84 ficaram
feridas.
O correspondente da BBC no Brasil, Gary Duffy, afirmou que
dava para sentir que a polícia não era muito
bem vista pelos moradores das favelas. Eles não confiavam
na polícia. Duffy, que está trabalhando no
Brasil há apenas três meses - cobriu a disputa entre
católicos e protestantes na Irlanda do Norte de 1984 a
1998. Há uma certa semelhança entre o que
aconteceu aqui e o que acontecia na Irlanda do Norte. Lá,
quando a polícia e o Exército entravam nas áreas
católicas, as mulheres costumavam sair com tampas de metal
e batê-las no chão para avisar as pessoas envolvidas
com o IRA. Aqui no Alemão, houve vários disparos
de fogos de artifício para avisar os traficantes que a
polícia estava vindo, afirmou o jornalista.
Os moradores locais temem as balas perdidas, e aqueles que
têm condições estão deixando o local.
Várias casas e apartamentos em volta das favelas estão
à venda. Quando são vendidas, os preços são
muito baixos. O fotógrafo Sidraque Santos, de 41 anos,
que nasceu e morou toda a sua vida no conjunto de favelas do Rio,
diz que nunca viu operação como a de quarta-feira.
Após a operação, o fotógrafo admitiu
que já pensa em deixar esse morro carioca. Não
tem como ficar aqui, disse ele ao jornal Estado de São
Paulo. Santos contou que na favela do Cruzeiro, teve um
rapaz que foi abordado pela polícia e saiu correndo. A
polícia gritou: pára, pára, pára.
Ele não parou e a polícia atirou. Quando chegaram
para ver o morto, ele estava com um crachá de uma associação
de surdos e mudos.
O real significado da repressão policial
A violência aberta manifestada no complexo do Alemão
na semana passada é a mais clara demonstração
do aprofundamento da repressão no Brasil. No entanto, a
repressão não é direcionada apenas contra
o crime organizado. Nas favelas, as principais vítimas
deste confronto são as pessoas comuns que moram nas favelas.
Mas, acima de tudo, é importante perceber que a atitude
violenta por parte do Governo Lula e de seus aliados nos governos
estaduais tem como objetivo mostrar para toda a população
que eles estão dispostos a tudo para sufocar aqueles que
se opuserem a eles.
Não é coincidência que, no dia 20 de junho,
o governador de São Paulo, José Serra, colocou a
tropa de choque para reprimir e expulsar, por volta das 2:30 horas
da madrugada, os estudantes que ocupavam o prédio da Faculdade
de Ciências e Letras da Unesp (Universidade Estadual Paulista),
no campus de Araraquara, interior de São Paulo. Os estudantes
foram encaminhados para a delegacia de polícia.
Também não é casual a atitude do governo
Lula que, no dia 31 de maio, mandou 150 homens da Polícia
Federal invadir as fábricas Cipla e Interfibra, em Joinvile,
Santa Catarina, ocupadas pelos trabalhadores, levando mandatos
de prisão contra os dirigentes, alegando que a empresa
devia para a Previdência. Mas, afinal, porque Lula não
mandou a Polícia Federal intervir quando a fábrica
estava nas mãos dos antigos patrões, que são
os verdadeiros devedores? Porque Lula não intervém
no Bando Itaú, no Unibanco ou na construtora Mendes Júnior,
que juntos deviam, já em 2005, mais de R$ 1 bilhão
à Previdência?
Portanto, só o que sobra para os moradores comuns das
favelas, para os trabalhadores e para a juventude no Brasil é
a repressão deste Estado cada vez mais policialesco. Mas,
será que as medidas repressivas tomadas por parte do governo
seriam a expressão da sua força?
Vejamos a situação que se encontra o governo
Lula: desde o primeiro mandato, o governo vem sofrendo um desgaste
brutal devido aos escândalos de corrupção:
em maio, o Ministro de Minas e Energia, Silas Rondeau, teve que
deixar o cargo, após ter sido descoberto seu envolvimento
com a máfia das obras públicas, liderada pela construtora
Gautama; o irmão mais velho do presidente Lula, Genival
Inácio da Silva, o Vavá, está sob acusação
de tráfico de influência no governo em favor da chamada
máfia dos caça níqueis, que explora jogos
ilegais. Se Lula ainda mantém elevados índices de
popularidade nas pesquisas de opinião, é em conseqüência
das esmolas oficiais - como o programa bolsa família, o
vale gás, etc. - concedidas aos trabalhadores mais pobres,
que vivem em condições extremamente precárias,
programas que servem apenas para manter os trabalhadores na miséria
e cada vez mais dependentes do governo.
O parlamento, por sua vez, também afunda na lama da
corrupção: a amante de Renan Calheiros, presidente
do Senado Federal, denunciou que a pensão do filho que
tem com o senador era paga pela construtora Mendes Júnior.
Defendendo-se de acusações que surgem a cada
semana, o governo e o parlamento estão completamente imobilizados.
Gastam grande parte do tempo buscando provar sua duvidosa inocência.
Diante de tanta corrupção e impunidade, que só
se aprofundam desde o escândalo do mensalão em 2005,
os trabalhadores e os jovens não estão depositando
mais nenhuma esperança nas CPIs (Comissões
Parlamentares de Inquérito) ou nas Comissões de
Ética, isto é, nos julgamentos dos corruptos pelos
próprios corruptos. Os trabalhadores e jovens começam
a sair às ruas para se manifestar. Manifestações
que reúnem milhares de pessoas começam a se tornar
freqüentes nas principais cidades brasileiras. Diante de
um movimento que começa a ganhar força, o que resta
ao frágil governo Lula e seus aliados? A única coisa
que resta a eles é usar o último recurso para segurar
as massas: a força das armas.
Somente assim é possível compreender a megaoperação
policial posta em prática no Complexo do Alemão.
Mais do que combater o crime organizado, a intenção
dos governos federal e estaduais é fazer uma demonstração
de força, para todos os trabalhadores e estudantes do Brasil
saibam do que o governo é capaz de fazer contra aqueles
que se insubordinam. Foi exatamente este o tom da ordem dada por
Lula ao comandante da Aeronáutica, no dia 25 de junho,
quando os controladores de vôo realizavam uma operação
padrão, retardando a saída dos vôos em vários
aeroportos brasileiros. Lula disse: coloque ordem na casa
para manter o bom funcionamento dos aeroportos e a disciplina
militar, porque é preciso respeitar a hierarquia.
E o presidente ex-operário concluiu: eu fiz muitas
greves na minha vida, e eu consigo perceber quando tem má-fé,
quando tem má vontade.
Certamente, Lula deve ter dirigido as greves no ABC na década
de 1980 com muita boa fé e boa vontade,
que, aliás, o tornaram confiável à classe
dominante e fizeram com que tivesse o apoio de amplos setores
desta classe para chegar à Presidência da República
e cumprir o papel que ele pode fazer melhor do que ninguém:
bloquear o movimento de massas, mesmo que para isso seja preciso
comandar ou apoiar os seus aliados no comando da polícia
e do exército contra os trabalhadores nas favelas, nas
fábricas e contra os estudantes nas universidades, e defender
assim os interesses do grande capital.
Diante de tudo isso, só resta uma saída para
os trabalhadores e jovens do Brasil e de todo o mundo: a construção
de uma nova direção que rompa e supere as burocracias
sindical e estudantil aliadas aos governos burgueses corruptos.