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A arte e o destino de Rodchenko: o experimento continua

Por David Walsh
25 Janeiro 2007

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Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês, no dia 29 de Agosto de 1998.

Aleksandr Rodchenko, uma exposição. MoMA, Nova York, 25 de junho-6 de outubro, 1998; Kunsthalle Düsseldorf, 6 de novembro de 1998 - 24 de janeiro de 1999; Moderna Museet, Stockholm, March 6-May 24, 1999.

A primeira retrospectiva geral nos EUA sobre o artista russo-soviético Alexander Rodchenko (1891 - 1956) está ocorrendo em Nova York. Em seguida a exposição será levada para a Alemanha e para a Suécia.

Um dos grandes artistas do século XX, o trabalho de Rodchenko foi inovador nos campos da pintura, escultura, colagem, fotografia e design (capas de livros e revistas, propagandas e cartazes), entre outros. Ganhou reputação internacional no começo dos anos 20; pouco mais tarde, o artista entrou em conflito com a burocracia estalinista e viveu seus últimos vinte anos de vida na obscuridade e no isolamento. Não foi assassinado - apenas foi silenciado e excluído.

A atual exposição mostra muitas coisas de uma só vez. Do ponto de vista histórico, ela amplia e aprofunda a compreensão sobre uma extraordinária geração de artistas russos; relembra, também, o trágico destino da arte e dos artistas nas mãos dos estalinistas; traz à tona, inevitavelmente, numerosos problemas formais e estéticos; e, por fim, oferece a um público substancial uma coleção de importantes e belas obras.

Rodchenko nasceu em São Petesburgo. Seu pai, filho de um servo, trabalhava na coxia de um teatro; sua mãe era lavadeira. No começo de 1900 sua família se mudou para uma cidade da província, Kazan, onde Rodchenko logo entrou para a escola de arte. Lá, em 1914, ele encontrou quem seria sua companheira por toda a vida, Varvara Stepanova (1894-1958), também ela uma grande artista. Depois de assistir a uma palestra e a uma performance dos futuristas David Burliuk, Vasilii Kamenskii e Vladimir Maiakovski, em 1914, aderiu ao movimento futurista. Mudou-se para Moscou em 1915 e teve sua obra incluída em uma exposição organizada por Vladimir Tatlin em março de 1916, junto com Kasimir Malevich, Lyubov Popova, Alexandra Exter, Nadezhda Udal’tsova e o próprio Tatlin.

Rodchenko foi um dos poucos artistas russos que se identificou com o governo revolucionário após outubro de 1917. Um ano depois foi trabalhar no bureau da Seção de Artes Visuais (Izo) de Moscou, no Comissariado de Esclarecimento do Povo (Narkompros). Rodchenko foi eventualmente nomeado chefe do bureau do museu da Izo e da mais importante instituição moscovita, o Museu da Pintura. O bureau do museu adquiriu aproximadamente 2,000 obras de arte moderna de mais de 400 artistas, e organizou 30 museus de província.

Depois de vários anos de investigações que aparentemente eram puramente formais, sobre traços, cores e texturas, em 1921 Rodchenko deu uma guinada e se identificou, quase exclusivamente, com a arte aplicada, voltada à transformação social. Assim começou a aventura chamada construtivismo. A discussão sobre as controvérsias deste movimento está fora do escopo deste artigo, mas, em linhas gerais, o construtivismo rejeitava a “inspiração artística”, proclamando a morte da representação na arte e declarando que, a partir de então, “devemos apenas fazer, processar e construir”.

Este componente ultimatista da visão construtivista era rejeitada pelos marxistas. Leon Trotsky escreveu que “rejeitar a arte como meio de captar e apreender o conhecimento, por conta da oposição à arte burguesa contemplativa e impressionista das últimas décadas, seria como tomar das mãos da classe que está construindo uma nova sociedade a sua mais valiosa arma”.

Independente da concordância ou rejeição da posição do construtivismo, penso que seria errado avaliar esta guinada de Rodchenko em 1921 como um sinal de fraqueza, menos ainda como de oportunismo. Pelo contrário, sua habilidade em trabalhar de um modo radicalmente diferente, enquanto mantém a mesma ferocidade estética essencial, parece-me uma prova dos excepcionais recursos culturais que estavam à disposição do artista.

Da metade dos anos 20 em diante, Rodchenko se dedicou mais e mais à fotografia. Parece apropriado que um artista tão preciso e técnico em sua abordagem do mundo exterior e interior, tão hostil às atitudes piedosas em relação ao passado cultural, tenha assumido uma atividade que “ao mesmo tempo era e não era arte”, como escreveu Peter Galassi no catálogo da exposição no MoMA.

Se Rodchenko esperava, conscientemente ou não, que ao trabalhar com fotografia (e seus elementos, como a “objetividade” e o “realismo”), iria de alguma forma apaziguar os conflitos com o crescente regime burocrático, estava enganado. Segundo Galassi, “Rodchenko e (seu amigo e colega cineasta Dziga) Vertov realmente acreditavam na revolução, em sua promessa de um mundo livre e novo, e entraram nela de cabeça, num abandono quase pueril. Esta era a ideologia de seus trabalhos. No fim da década de 20, entretanto, esta era uma interpretação da ideologia revolucionária que aqueles no poder não podiam permitir que outros sustentassem”.

Em abril de 1928, Rodchenko foi acusado de “formalismo burguês”, por usar ângulos pouco comuns ao fotografar. É assombroso. A burocracia estalinista não se caracterizava pela profundidade de pensamento; ela era bastante sensível, entretanto, a tudo o que fosse desconhecido ou perigoso à sua dominação. O estilo de Rodchenko, inclusive os seus esforços em desfamiliarizar os objetos, torná-los “estranhos”, era bastante atacado. Uma vez começados os ataques, eles nunca paravam, e, embora Rodchenko tenha admitido seus “erros”, e passado a realizar seus trabalhos com uma intenção sincera de “corrigi-los”, infalivelmente ele voltava a inovar. Os princípios estéticos e intelectuais absorvidos no período de insurreição revolucionária estavam profundamente entranhados no artista.

Alguns dos ataques verbais eram absurdos demais para serem tomados seriamente enquanto crítica estética. Galassi observa que algumas discussões “estavam envenenadas por um cínico interesse pessoal de indivíduos e grupos que buscavam o apoio do crescente regime totalitário”. Por exemplo, Rodchenko foi muito atacado por conta da série de fotos do movimento dos Pioneiros, garotas e garotos de nove ou dez a quatorze anos. O crítico Ivan Bokhanov denunciou uma das imagens mais famosas de Rodchenko, um close de uma jovem com expressão determinada em seu rosto: “a garota pioneira não deve olhar para cima. Isso não tem coerência ideológica. As pioneiras e as garotas da Komsomol (organização juvenil do Partido Comunista da União Soviética) devem olhar para adiante”.

O artista “passou as últimas duas décadas da sua vida isolado, amargurado, confuso, desmoralizado e pobre” (Galassi). Em seu diário, pouco tempo depois do fim da II Guerra Mundial, Rodchenko escrevia: “já não precisam de mim, sou totalmente desnecessário, quer eu trabalhe ou não, quer eu viva ou morra. Poderia mesmo estar morto, sou o único que se preocupa com minha própria existência. Sou um homem invisível”.

Alto nível estético e intelectual

Uma ponto alto da atual exposição é o fato de ser exposto o alto nível estético e intelectual de Rodchenko em relação a uma grande variedade de tarefas. (Este reconhecimento não determina a priori a capacidade artística de alguém. Esta é uma outra questão, que analisarei brevemente abaixo). Esteja o artista pintando quadros de figuras geométricas, desenhando o logotipo das linhas aéreas estatais, ou ainda fotografando cenas das ruas de Moscou, pode-se perceber uma grande inteligência e uma extraordinária sensibilidade em seus trabalhos. Percebe-se que as decisões nunca são arbitrárias, pelo contrário, são o resultado de sérias considerações estéticas, filosóficas e, principalmente, sociais.

O neto do artista, Alexander Lavrent’ev, em um dos textos do catálogo, comenta a fascinação de Rodchenko pelo progresso da ciência e suas implicações. Numa exposição de suas obras em 1920, Rodchenko escreveu um texto no qual dizia: “Em cada uma das minhas obras faço uma nova experimentação, com um valor diferente em relação à anterior”. O título do texto era “Tudo é experimento”.

Lavrent’ev comenta que nesse período Rodchenko “estava tentando definir as leis de construção que governavam o mundo físico. As categorias do espaço e do tempo interessaram-no menos como conceitos filosóficos do que como modelos astronômicos, geométricos e psicológicos do mundo”. Ele buscava desvelar “as peças físicas, biológicas e conceituais do mundo, a matéria prima de sua construção”. A noção de que um número (infinito) de pontos em um dado segmento de linha era igual ao número de pontos que formava todo o universo, aparentemente trouxe a Rodchenko a esperança de que “suas próprias construções (lineares) podiam ajudá-lo a vislumbrar as profundezas do tempo e do espaço”.

Que esta busca quase mística fosse de certa forma confusa e um pouco sem direção não é o que está em questão. A ambição e a amplitude dos objetivos de Rodchenko são comoventes e impressionantes. “Sou tão interessado no futuro que gostaria de ser capaz de ver vários anos adiante”, escrevia ele em 1920.

Rodchenko era um indivíduo notável, mas além dele muitos artistas russos da época tinham preocupações igualmente sérias. Os oponentes do marxismo, de uma maneira um tanto grosseira, apontavam para o fato de que Malevich, Tatlin e outros já tinham trabalhos reconhecidos antes de Outubro de 1917, o que provaria de que a revolução seria um fator secundário na formação de suas vidas artísticas. Sem dúvida, seria um reducionismo extremo atribuir todas as conquistas do começo dos anos 20 à tomada do poder pelos bolcheviques, por mais estrondosa que esta tenha sido.

Talvez seja interessante considerar indivíduos como Rodchenko tanto como produtos quanto como produtores de uma época revolucionária, que encontrou sua maior expressão na Revolução de Outubro, um evento que deu um forte impulso a outras experimentações e inovações. O estalinismo pode ser visto como uma resposta contra-revolucionária a esse desenvolvimento histórico.

Tenho diferentes reações às diferentes fases do trabalho de Rodchenko e aos vários meios com os quais ele trabalhou. As pinturas de figuras geométricas não suscitam nenhuma emoção, apesar de sua hábil execução. De fato, muitas de suas pinturas parecem tão severas que mal permitem qualquer resposta emotiva - como, sem dúvida, era a intenção. Antes, no entanto, que se clame, diante de um destes quadros, por “um pouco mais de humanidade!”, é bom considerar as difíceis condições sob as quais trabalhavam o artista e seus companheiros (digo isto deixando de lado, por estar fora do escopo deste artigo, algumas questões ideológicas não-resolvidas).

“Nossa época empunha um machado”, escreveu Trotsky. Ele nos diz na mesma obra que “a arte necessita de conforto, e até de abundância”. Rodchenko tinha 22 anos quando estourou a I Guerra Mundial, e a Revolução de Outubro e a Guerra Civil de 1918-1921 a seguiram. Sabemos que na época em que pintava obras célebres como “Preto sobre preto”, em 1918, Rodchenko chegou mesmo a passar fome. A Revolução, incluindo sua imensa privação, era sem dúvida inspiradora, mas também gerava severas tensões no sistema nervoso, cuja estabilidade e sanidade são mais centrais para o trabalho do artista do que para o cientista ou o líder político.

Por volta de 1924, o mal degenerativo conhecido como estalinismo buscava seu caminho pelo governo soviético. Resumidamente, a nenhum dos grandes artistas soviéticos foi permitido o luxo de uma vida desenvolvida orgânica e naturalmente. Temos, assim, apenas algumas fagulhas magníficas do que estes seriam capazes.

Os primeiros quadros de Rodchenko eram formalmente brilhantes, mas um pouco intangíveis, incompreensíveis. Penso que ele começou a se encontrar em seu trabalho de fotomontagem. Suas ilustrações para o livro Sobre isto (Pro eto) (1923), de Maiakovski, são irresistíveis. Ele combinou fotos do poeta e de sua amada Lília Brik com vários itens recortados de revistas; encontrou, assim, o equivalente visual dos versos angustiados e tragicômicos de Maiakovski. Acompanhando as linhas “Tapei meus ouvidos / em vão! / ouvi / minha / minha própria voz / a faca da minha voz me atravessa as patas”, havia arranjado, por exemplo, um gigantesco Maiakovski sentado soturnamente em uma ponte, ursos polares, outra imagem em tamanho natural do poeta com a mão na cabeça, e um barco, aparentemente navegando através de águas congeladas.

Os dois artistas juntaram forças durante a NEP para propagar várias empresas do governo, os produtos e os serviços que estas ofereciam. A exposição traz uma prazerosa seleção destes trabalhos. Rodchenko pensava o design da embalagem, e Maiakovski o que seria escrito. Uma caixa de biscoitos Krosnyi Aviator (Aviador Vermelho), por exemplo, trazia uma mensagem alarmando as armas inimigas sobre a invencibilidade da Força Aérea Vermelha. Dizia: “Nossa aviação toma os céus / e nós propagamos a idéia em todos os lugares / mesmo nos doces: / Se é nosso o céu / o inimigo rasteja feito um caranguejo”. Um anúncio para a cerveja Trekhgornoe (Três Picos) em 1925 dizia, “A cerveja Trekhgornoe expulsa a hipocrisia e a luz do luar”.

Rodchenko criou, nas palavras de um visitante americano na década de 1920, “uma espantosa variedade de coisas”: capa de livros e revistas, marcadores, jóias para a companhia aérea estatal, pôsteres de filmes... A exposição mostra uma réplica do Clube dos Trabalhadores da URSS, projetado para a Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais, ocorrida em Paris em 1925 (ele também desenhou a capa da versão soviética do catálogo da exposição). O Clube, nas palavras de um dos próprios organizadores da exposição, “era uma entidade nova, pós-revolucionária, um local público que pretendia oferecer tanto esclarecimento político, quanto descanso e renovação após a jornada de trabalho”.

Os trabalhos fotográficos de Rodchenko tomam, aproximadamente, metade da exposição. Talvez sejam os seus melhores trabalhos. O “princípio da contraposição” , como chamado por um crítico, parece ser aplicável aqui. Num meio mais frio e técnico, Rodchenko é capaz de dar vazão ao seu lado mais caloroso, mais humano. As fotos que tirou de Maiakovski em 1924, mostrando um homem soturno, bastante vulnerável, são maravilhosas. Assim é o retrato de sua velha mãe, também de 1924.

As atitudes de Rodchenko diante dos acontecimentos políticos dos seus dias são desconhecidas, ao menos para mim. É interessante notar que incluiu fotos de Trotsky em, pelo menos, dois dos 25 pôsteres litográficos que ilustram “A história do VKP [Partido Comunista (Bolchevique) de toda a Rússia]”, os quais lhes foram encomendados em 1925-26. Em 1927, uma de suas fotos revela uma enorme pilha de arquivos em uma mesa, e é intitulada “Abaixo a burocracia”.

Na mostra constam também seleções de fotos de alguns ensaios, como “A construção da Rua Miasnitskaia”, as fotos dos Pioneiros (1928-30), as da fábrica AMO (1929) e do Moinho do Vakhtan (1930), a sua cobertura da construção do canal entre os mares Branco e Báltico (1933), um projeto levado adiante com um enorme sacrifício e às custas de muitas vidas.

Achei as duas fotos de Varvara Stepanova muito expressivas e penetrantes. A primeira é de 1924, e mostra uma mulher vigorosa, cabelos castanhos, rosto redondo, segurando um cigarro com uma das mãos e apoiando a cabeça com a outra. Seu rosto tinha um sorriso um pouco cínico, como se dissesse, “O que você está aprontando agora?”; seu cabelo estava um desarrumado e suas roupas e rosto um pouco sujos, embora talvez fosse apenas a luz. De qualquer forma, ela parecia estar em um intervalo do trabalho.

A outra é de 1936. Trata-se da mesma mulher, embora não seja nada fácil perceber isso. Ela está vestida para sair, com um casaco, um chapéu caindo sobre um dos olhos. Olhando para baixo. Sua expressão? Parece confusa, perdida, resignada. A luz, que entra por uma janela por detrás do fotógrafo, recai sobre Stepanova fazendo uma sombra em seu rosto e uma sombra vertical no lado esquerdo do seu corpo. Ela aparenta estar, por assim dizer, aprisionada. É uma das fotos mais assustadoras que já vi. De 1924 para 1936 - apenas 12 anos - pouco mais de uma década: tempo suficiente para destruir as conquistas do início do século.

Esta é uma exposição fascinante. Vá vê-la se estiver perto de você.