Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês,
no dia 11 de janeiro de 2007.
No dia 15 de fevereiro de 2006, a Corte Constitucional Alemã
(BVG), em Karlshure, declarou que o Ato de Segurança
da Aviação introduzido pelo ex-governo formado
pela coalizão SPD (Partido Social Democrata) Partido
Verde, era inconstitucional e inválido. O objetivo da lei
era possibilitar que o Secretário de Defesa alemão
ordenasse o ataque a aviões civis que fossem suspeitos
de estarem sendo utilizados contra vidas humanas.
O atual ministro do interior, Wolfgang Schäuble (União
Democrata Cristã, CDU) reagiu a esse julgamento, propondo
uma emenda constitucional que vai muito além do Ato original.
A proposta de Schäuble permite não apenas o ataque
às aeronaves civis, caso se comprove um ataque terrorista,
mas autoriza também o governo a mobilizar o exército
alemão contra a população civil, em questões
internas.
Para este fim, Schäuble quer alterar o artigo 87º,
parágrafo 2, da Lei Básica Alemã, de maneira
que as forças armadas possam ser mobilizadas não
somente para a defesa nacional, mas também para defesa
direta contra qualquer outro ataque aos fundamentos da sociedade.
De acordo com a linha de argumentação utilizada
pelo ministro do interior, a legislação internacional
da guerra poderia então ser aplicada em tais casos de semi-defesa.
Tais regras permitem ataques militares a civis, sendo que estes
somente poderão descartados caso não possuam
nenhuma relação direta com ações militares
concretas.
A argumentação de Schäuble contraria a decisão
da mais alta corte da Alemanha, além de desrespeitar a
lei de segurança da aviação. A BVG baseou
seu julgamento no artigo 1º da Lei Básica, que declara
que a dignidade humana é inviolável
e que o sacrifício de vidas inocentes para que se salvem
outras é incompatível com a constituição.
Vidas humanas não podem ser exploradas de tal forma, jogando-as
umas contra as outras.
Schäuble reagiu do mesmo modo que fez o governo
Bush nos EUA declarando que os ataques terroristas e outros
ataques aos fundamentos da sociedade constituem um
ato de guerra. Ao colocar a questão desta maneira, Schäuble
elimina qualquer diferença entre um ataque internacional
e crimes domésticos, entre combatentes e criminosos, entre
paz e guerra. De acordo com ele, esta é uma discussão,
colocada nestes termos, é totalmente antiquada e obsoleta.
A proteção da dignidade humana, garantida na constituição
é, segundo ele, extremamente limitada em situações
de emergência extrema.
Na verdade, a formulação ataques aos fundamentos
da sociedade é tão imprecisa que possibilita
diversas interpretações. Schäuble se refere
repetidamente aos ataques terroristas de 11 de setembro, quando
terroristas conduziram dois aviões de passageiros em direção
ao World Trade Center. Na atual proposta de emenda constitucional,
não há menção alguma feita a aviões
ou terrorismo. A referência a qualquer outro ataque
aos fundamentos da sociedade poderia igualmente se aplicar
a qualquer manifestação pública ou uma greve
geral.
No dia 5 de janeiro, Schäuble declarou ao jornal Tagesspiegel
que seu interesse principal não é o de defender
os cidadãos comuns, mas defender o Estado. A regulamentação
proposta por ele deveria ser assinada na esfera política.
A advertência de perigo diz respeito à proteção
de interesses legais individuais. Os fundamentos da sociedade,
por outro lado, referem-se a propriedade coletiva. Se o Estado
como um todo é ameaçado, ele é obrigado a
defender sua existência e fazer o que for necessário
para proteger a comunidade legalmente definida contra os ataques
que visam causar a sua destruição.
Hobbes escreveu o seu Leviatã imediatamente depois da
guerra civil inglesa e defendeu a concepção do Estado
absoluto, no qual os indivíduos entregam todos os seus
direitos, abrindo mão de sua liberdade. De acordo com Hobbes,
a tarefa do todo-poderoso Leviatã é de lutar contra
o monstro bíblico com todos os meios possíveis.
Por monstro bíblico Hobbes entendia a revolução
social.
De acordo com essa lógica, todo direito fundamental,
toda forma de proteção do cidadão individual,
pode ser desrespeitada, caso o governo conclua que ela contraria
a necessária defesa do Estado. Schäuble
já declarou que ele é concorda em usar informações
obtidas por meio de interrogatórios obtidos através
de tortura, empregada por outros Estados, na intenção
de proteger o Estado alemão contra o terrorismo.
O ministro do interior justifica seus ataques aos direitos
democráticos básicos argumentando que o novo
terrorismo criou uma nova infra-estrutura e está
direcionado contra a sociedade como um todo.
Ele ainda se referiu à resolução 1368
da ONU, que deu cobertura internacional ao governo Bush para a
guerra ao terror. Essa foi a resolução
que deu a duvidosa justificativa para iniciar a guerra no Afeganistão,
onde a Al Qaeda operava sob a proteção do governo
Taliban. A resolução 1368 não dá de
forma nenhuma a base para a introdução da lei marcial
na luta interna contra o terrorismo.
No Süddeutsche Zeitung, Heribert Prantl comparou
a emenda constitucional proposta por Schäuble ao artigo 68º
da constituição do Reich alemão de 1871,
que dava um sistema legal ao falado estado de cerco do Reich.
De acordo com esse artigo, o imperador poderia impor um estado
de emergência e ignorar direitos básicos, quando
houvesse evidência de um perigo urgente à segurança
pública, que não poderia ser enfrentado com
os meios usuais ampliando assim a ação
da polícia.
Na verdade, não era necessário buscar um fenômeno
semelhante num passado tão distante como o do Reich alemão.
A constituição da República de Weimar de
1919 regulamentava, no artigo 48º, parágrafo II: Quando
a segurança e a ordem pública do Reich alemão
são substancialmente perturbadas ou ameaçadas, então
o presidente do Reich poderá tomar as medidas necessárias
para restaurar a segurança e a ordem pública, se
necessário com a ajuda das forças armadas.
Esta cláusula foi usada pelo presidente Friederich Ebert
(SPD) em 1921, em não menos que uma dúzia de ocasiões,
normalmente para reprimir movimentos políticos dos trabalhadores
que protestavam contra as condições existentes sob
o capitalismo. Esses movimentos eram então combatidos com
brutalidade feroz pelo exército alemão e pela Freikorps,
uma milícia de extrema-direita.
Diversos analistas procuraram entender a intransigência
com que Schäuble insiste em realizar seu objetivo de legalizar
as ações do exército alemão em ações
domésticas, baseadas em idiossincrasias pessoais. Na realidade,
a postura de Schäuble é a expressão lógica
das políticas adotadas pela grande coalizão governamental
na Alemanha (SPD, CDU e União Social Cristã).
O acordo de coalizão desenvolvido pela união
dos partidos e o SPD declarava: tendo em vista a ameaça
representada pelo terrorismo internacional, a fronteira entre
segurança nacional e internacional vem se tornando cada
vez mais indeterminada... seguindo a decisão da Corte Constitucional
Federal no Ato de Segurança da Aviação, nós
iremos examinar em que medida existe necessidade de uma emenda
constitucional.
Na primavera deste ano, o secretário de defesa alemão,
Franz Josef Jung (CDU), já exigiu uma redefinição
dos casos de defesa, na qual se inclua o terrorismo. O Papel Branco
sobre Política de Segurança, publicado no último
outono pelo governo, demonstrou que este percebeu a necessidade
de uma expansão do sistema constitucional para
que se torne possível a intervenção das forças
armadas e o uso de meios militares para resolver conflitos domésticos.
De acordo com uma notícia no jornal taz do dia
6 de janeiro, o porta-voz do SPD para assuntos domésticos,
Dieter Wiefelspütz, reivindica ainda uma mudança
na interpretação do termo defesa. Wiefelspütz
insistiu que era irrelevante quem corria perigo ou quem
atacava. Em sua opinião, defesa é a proteção
do território nacional e de seus cidadãos, quando
as ações policiais são insuficientes
para a defesa contra o perigo.
No final de 2005, o governo composto pelo SPD-Partido Verde
formou uma grande coalizão para implementar a política
socialmente retrógrada da Agenda 2010, na tentativa de
responder à crescente oposição popular. Agora,
a colaboração entre os dois maiores partidos políticos
do país acabou com qualquer possibilidade de oposição
no interior das instituições parlamentares. Isso
conduz abre inevitavelmente o caminho para que as crescentes tensões
sociais encontrem expressão fora dessas instituições.
Apenas algumas semanas atrás, o editor do semanário
Die Zeit, de 75 anos, Theo Sommer, alertou sobre os perigos
da atual situação para a elite dominante na Alemanha:
se um número razoável de pessoas acreditar
que estão sendo roubadas, elas se revoltarão. Mesmo
no nosso país, ninguém pode garantir que não
haverá uma revolução futuramente. Não
se deveria abusar da história.
É nesse contexto que se deve analisar o golpe dado por
Schäuble nos direitos constitucionais básicos. Sob
o pretexto de anti-terrorismo, o governo está assumindo
o mesmo poder autoritário que foi utilizado anteriormente
na Alemanha por um imperador e pelo presidente do Reich, em Weimar,
para reprimir a oposição popular e o movimento socialista
dos trabalhadores.