Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês,
no dia 5 de maio de 1997.
Por Os bairros centrais de muitas das grandes cidades norte-americanas
estão em estágios avançados de decadência.
Este fato coloca novos problemas aos artistas que se preocupam
com o destino dessas áreas urbanas e de seus habitantes.
Como deve o fotógrafo, por exemplo, responder a esse estado
de coisas?
A instalação Centro de Detroit: uma acrópole
americana (Downtown Detroit: An American Acropolis), é
constituída por 19 painéis do fotografo chileno
Camilo José Vergara. Atualmente em exposição
no Center Galleries em Detroit, o trabalho é uma tentativa
de lidar com este problema. As fotos, organizadas em uma pirâmide
invertida, são documentos reais do centro da cidade de
Detroit, sem nenhuma tentativa de sentimentalizá-lo ou
editá-lo. Em alguns casos, foram tiradas duas ou mais fotografias
do mesmo local, para capturá-lo em diferentes estações
do ano ("Vista Sul ao Longo da Park Avenue a partir da Rua
Sibley") ou ainda para expor o aprofundamento da decadência
("Edifício Metropolitan, na esquina da Farmer com
a John R."). O céu vermelho em "Fogos de Artifício-Vista
Sul ao Longo da Park Avenue a partir da Rua Sibley", forma
o coração luminoso da peça. Apenas um ser
humano aparece, um zelador de edifício, em "O Apartamento
do Sr. Broderick, 35? andar do Edifício David Broderick".
Morte das cidades
Nascido em 1944 e residente nos EUA desde 1965, há duas
décadas Vergara vem fotografando o estado das cidades norte-americanas.
Escreve ele: "No final do século XIX e no começo
do século XX, muitos fotógrafos foram contratados
para registrar o fenomenal crescimento das cidades. Hoje, são
pouquíssimos os fotógrafos documentando a sua morte".
Ele tem retratado as mudanças ocorridas nos bairros mais
pobres de Nova Iorque; Newark e Camden, Nova Jersey; Chicago;
Gary, Indiana; Detroit e Los Angeles.
O Novo Gueto Americano (The New American Ghetto.
Rutgers University Press, 1995), uma coleção
de fotografias e escritos, é o trabalho mais recente de
Vergara a ser publicado. No prefácio ele escreve: "A
malha urbana dos guetos, com sua dramática mudança
de função, sua pobreza e seu tamanho, nos desafia
a rejeitar a miséria humana que ela mesma representa".
A atual exposição em Detroit é um retorno
a uma questão que Vergara primeiramente levantou em dois
artigos em 1995. Naquele momento, ele criou um escândalo
quando fez uma proposta de que doze quadras do centro de Detroit
fossem preservadas como um "parque de arranha-céus
arruinados", uma "acrópole americana".
O fotógrafo sustenta que a cidade tem uma região
central diferente de qualquer outra. Ele nota que Detroit tem
um dos maiores conjuntos de arranha-céus datados do período
imediatamente anterior à quebra da bolsa de Nova Iorque
no mundo, e que nenhuma outra área urbana tem um processo
de decadência e abandono tão avançado. Um
em cada cinco prédios na área central está
vazio ou pouco ocupado, e a maioria dos arranha-céus está
"praticamente vazia, muitos dos edifícios em estado
avançado de ruínas... O lugar que inventou a obsolêscencia
planejada se tornou obsoleto" (Planning, agosto de 1995).
Em Metropolis (abril de 1995) Vergara comenta: "Em
uma versão contemporânea do declínio do império,
os marginaisidosos, sem-teto, alcoólatras, viciados
em drogas, loucosvagam nas sombras dos arranha-céus
vazios".
Em uma conversa por telefone, Vergara insistiu que não
haveria nenhum traço de ironia em sua proposta dos parques
de ruínas. Ele é um individuo sério e um
artista sério, e, apesar de sua proposta não ser
tão radical quanto a dos surrealistas na década
de 30que queriam que o símbolo do nacionalismo e
militarismo francês, o Arco do Triunfo, fosse enterrado
em uma montanha de esterco e depois explodido -, existe um elemento
original e intrigante em seu projeto.
Depois de ter dito, no artigo Metropolis, que a maior
parte do centro da cidade de Detroit havia sido "salvo"
devido ao custo de sua demolição, Vergara introduz
sua idéia: "Nós podemos transformar aproximadamente
cem edifícios abandonados em um grande parque histórico
nacional de lazer, um Monument Valley urbano... A vida
selvagem do centro-oeste poderia invadir o parque pelo norte.
Árvores, vinhas e outras plantas poderiam crescer nos telhados
e para fora das janelas; cabras e animais silvestresesquilos,
gambás, morcegos, corujas, corvos, cobras, insetospoderiam
viver nos enormes prédios abandonados, somando seus chamados,
choros e barulhos estridentes ao cheiro das folhas em degradação
e excrementos de animais".
As autoridades da cidade se ofenderam com a sugestão:
"ultrajante", "uma afronta para os cidadãos
de Detroit" etc etc. A proposta de Vergara não ia
de encontro ao discurso oficial, que insistia no slogan "Detroit
is back!" (Detroit está de volta!). Um panfleto oficial
dizia: "O prefeito de Detroit, Dennis W. Acher, prevê
uma virada econômica para a cidade, através das tentativas
de revitalização urbana com a participação
de todos os cidadãos, organizações comunitárias
e empresários...". John Slater, chefe da Comissão
de Planejamento de Detroit, disse à imprensa: "Está
é a proposta mais ridícula que já ouvi...
É um absurdo ele dizer que esta é uma cidade fantasma".
O Detroit Free Press, em um editorial titulado "A
destruição do mundo?", reclamava: "Esta
não é certamente a face que Detroit deseja mostrar
ao mundo".
Uma carta escrita para a revista Planning observou:
"O autor diz que o parque de ruínas de arranha-céus
poderia ser um lugar onde se poderia ir para escapar do capitalismo
e experimentar o silêncio". Como alguém consegue
escapar do capitalismo em uma economia de mercado e o que levaria
alguém a fazê-lo?
Em sua matéria na Metropolis, Vergara conta a
reação de Michael Goodin da Crain's Detroit Business:
"Uma cidade que se coloca como símbolo mundial das
ruínas... jamais atrairá os turistas de Peoria,
Illinois... Nunca se conseguirá atrair investimentos, empresas
da área de saúde ou empresas automobilísticas
para um centro feito de ruínas permanentes... Roma é
uma civilização morta. A América não".
Dedo na ferida
Vergara obviamente pôs um dedo na ferida, e as autoridades
da cidade tinham boas razões para responder com hostilidade.
A condição desastrosa do centro da cidade de Detroit
(como também, é claro, de muitos dos seus bairros
residenciais), propositalmente apontada por Vergara, não
é apenas algo que constrange e desmotiva os investimentos
e o turismo, mas, mais do que isso, é expressão
de uma profunda falência social.
A ascensão e o subseqüente declínio de Detroit
foram rápidos. No momento precedente à Guerra Civil
Americana, a cidade tinha 45 mil moradores; nos 50 anos seguintes
a população cresceu mais de dez vezes. O crescimento
mais extraordinário teve lugar entre 1910 e 1930o
que não é nada surpreendente quando se leva em consideração
a evolução da indústria automobilística.
A população de Detroit dobrou entre 1910 e 1920,
e saltou dos 600 mil habitantes, em1930, para 1,5 milhão.
O valor da produção industrial na cidade subiu de
US$ 600 milhões para US$ 900 milhões no correr de
um único anode 1915 para 1916. De 1865 para 1950,
Detroit subiu da quadragésima segunda para a quinta maior
cidade dos Estados Unidos.
A construção dos arranha-céus de Detroit
começou após a I Guerra Mundial. A loja de departamento
Hudson, a mais alta do mundo, foi completada em 1924, no mesmo
ano em que o Book-Cadillac Hotel, o mais exclusivo hotel da cidade
e o maior do mundo, com 29 andares. O Edifício Buhl foi
completado em 1925; o Penobscotedifício mais alto
da cidade por meio séculoem 1928; o Guardian Building
foi inaugurado junto com o David Stott Building, em 1929.
Em 1919 Henry Ford declarou que a história era "uma
fraude". Uma década depois, a revista Outlook
proclamou Detroit "a cidade mais moderna do mundo, a cidade
do amanhã. Onde não há passado, onde não
há história". Mesmo ridicularizadas e desprezadas,
as leis da história se fizeram ouvir.
Sem dúvida muitos fatores específicos contribuíram
para a degeneração do centro de Detroit, que tanto
avançou nas últimas décadas. Mas como se
poderia rejeitar a conclusão de que, mais do que qualquer
outra coisa, esta degeneração espelha o declínio
da posição mundial e da autoconfiança do
capitalismo norte-americano, e, especificadamente, de sua indústria
automobilística? Deve ser acrescentado que a degeneração
de Detroit demonstra a inadequação do mercado como
um instrumento de planejamento social, o caráter particularmente
anárquico da vida econômica do país e a miopia
generalizada da classe dominante norte-americana.
Vergara insiste em dizer que sua proposta tem um caráter
puramente estético; ele não está nem "lutando
contra o Estado" nem "fazendo uma nova revolução".
"Ruínas são poderosas", ele diz. "Os
poetas sempre foram fascinados por elas". Ruínas são
tão impressionantes quanto montanhas, "ambas recebem
luz de uma maneira específica". Lembramos então
que arranha-céus têm histórias diferentes
das que têm as montanhas. "Você pode apreciá-los
sem a história", ele responde. Sem dúvida isso
é verdade, mas parece que estamos fugindo de uma questão
importante.
A contemplação séria das ruínas
romanas não começou até aproximadamente mil
anos após o colapso deste império, e, além
disso, elas não foram vistas então como objetos
naturais. Como o historiador britânico de arte Francis Haskell
escreve, "O passado evocado pelas ruínas é
um passado generalizado, profundamente imbuído de meditações
sobre transitoriedade dos poderes terrestres e a fragilidade
das conquistas humanas" (History and its Images -
A História e suas imagensgrifo nosso). Um número
considerável dos habitantes atuais de Detroit, entretanto,
estava vivo no tempo em que as "ruínas" que Vergara
propõe preservar foram construídas. A sociedade
que os pôs de pé continua a existir e reivindica
certamente prosperar. Inevitavelmente, uma proposta para organizar
um memorial à sua deterioração ofende as
autoridades, e ela própria se torna uma questão
social.
Ninguém pode acusar Vergara de adotar uma atitude indiferente
frente à miséria atrelada à decadência
de Detroit. Ele escreve eloqüentemente sobre as "vidas
interrompidas, a falta de futuro, a destruição da
cidade". E pergunta: "Por que somos cercados por tanta
decadência e morte? Por quanto tempo isso vai durar?".
Por que então estaria ele tão relutante em desenvolver
as dimensões sociais de seu projeto? O clima intelectual
retrógrado deve ter seu papel nisso. Artistas e intelectuais
nem sempre foram tão tímidos na defesa da revolta.
Não seria possível, ainda, que o ceticismo reinanteque
não vê nenhuma possibilidade de transformação
radical da sociedadeleve o artista, desesperado na procura
pela beleza, a encontrar elementos estéticos redentores
no que existe, ou mesmo na decadência do que existe? Cada
objeto e local são pitorescos se tivermos a intenção
de entendê-los assim.
De qualquer forma, continuaremos a fazer a melhor interpretação
possível do "parque arranha-céus arruinados"
de Vergaraa de que este projeto não é um apelo
aos corações e mentes da gangue que dirige Detroit
à serviço do lucro, mas sim um desafio, uma provocação,
uma bofetada na "opinião pública" e no
senso-comum.
No final das contas, pode-se apenas agradecer ao fotógrafo
pelas imagens fantásticas de esquilos, gambás e
corvos deixando seus excrementos nas "catedrais e castelos
do comércio, erguidos para o avanço e a glória
do capitalismo industrial e seus campeões".