Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês,
no dia 15 de setembro de 1998.
Em junho de 1914 o pintor Marc Chagall viajou de volta a Vitebsk,
na Rússia. Ele pretendia fazer uma parada de apenas três
meses antes de retomar seus estudos em Paris, mas a eclosão
da I Guerra Mundial deixou-o preso em sua terra natal. Em 1915,
casou-se com Bella Rosenfeld, sua noiva, em Vitebsk, e durante
a guerra trabalhou no Escritório de Economia de Guerra
em Petrogrado, onde estava intimamente envolvido com a vanguarda
local, tanto exibindo seus próprios trabalhos como visitando
outras exposições. Ele permaneceu na Rússia
após a Revolução de 1917.
Em setembro de 1918 Chagall foi indicado Comissário
para as Artes em Vitebsk, com responsabilidade para teatro no
local. No total, sua curta viagem durou cerca de oito anos, tempo
em que esteve ocupado com uma grande variedade de trabalhos. Esta
pequena exposição traz as pinturas deste período,
que, em sua maioria, permaneceram na Rússia desde 1922.
A disposição em três salas, que cobrem
um período relativamente curto da vida do artista, nos
possibilita focar a reação de Chagall diante das
mudanças bruscas provocadas pela I Guerra Mundial e pela
Revolução Russa.
As pinturas estão arranjadas em quatro áreas
principais. O grupo mais unificado delas é o sobre amor,
na Galeria 3, através do qual o observador passa para alcançar
as outras galerias. Suas pinturas para o teatro e sobre o teatro
estão em duas galerias, enquanto suas obras de propaganda
revolucionária estão distribuídas por toda
a galeria, junto daquelas sobre a vida judaica em Vitebsk. Todos
os grupos se relacionam entre si temática e estilisticamente.
As pinturas de amor ocupam o lugar mais destacado da exposição.
A grande tela Promenade (usada como pôster da exibição),
mostrando Bella voando por Vitebsk segurando a mão de Chagall,
é uma bela introdução ao seu trabalho desse
período. Em outros lugares da galeria aparecem diferentes
figuras de amantes-voadores, como em Sobre a Cidade, ou
um homem velho em Sobre Vitebskjunto de uma surpreendente
seqüência de retratos dele e de Bella apaixonados.
Está lá também certo número de pinturas
baseadas em quadros religiosos antigos. A Aparição,
baseado em A Anunciação de El Greco, representa
a inspiração como um anjo despejando cores na tela.
Este é, sem dúvida, o Chagall místico,
representando em seu trabalho o que Apollinaire chamou de mundo
"sobrenatural". Alguns críticos têm reagido
dizendo que isso seria o que Chagall gostaria e deveria ter produzido,
em arte, apenas se não tivesse sido tomado pela Revolução
Russa. Mas a observação do restante da exposição
sugere que Chagall não só respondeu positivamente
à possibilidade de um levante artístico na revolução,
como também era a favor de usar sua experiência de
arte revolucionária em seu trabalho mais pessoal (já
se sugeriu, por exemplo, que a cena de PromenadeChagall
preso à terra enquanto Bella voa altodeve alguma
coisa à seu retrato de uma bandeira revolucionária
ao vento).
Apesar de sua visão de mundo mística, Chagall
também era um entusiasta do desenvolvimento material da
cultura, que reconhecia ser a base da situação revolucionária.
Ele expressa isso de maneira clara para si próprio quando
pergunta, "Quem de nós pode ver, em sua totalidade,
seu trajeto, na vida ou na arte, e quem pode dizer onde ele vai
dar? Posso dizer que o destino sempre me guiou de lugar para lugar.
Eu deveria ser grato a ele pela minha permanência na Rússia
durante esses anos decisivos de guerra e revolução".
Um idéia mais clara de sua resposta ao florescimento
entusiástico da cultura no momento logo após a Revolução,
aparece quando estudamos os seus trabalhos para o Teatro de Câmara
Judaico, que foi dedicado às produções ídiches
(tal projeto somente foi possível graças ao levante
Bolchevique contra as restrições de cidadania, movimentação
e educação por parte do regime czarista). Chagall
já usava termos que ligavam o teatro ao levante social.
Falando do início da guerra, ele afirmou: "não
percebi que... aquela comédia sangrenta estava para começar,
e que ela teria como resultado a transformação do
mundo inteiro, incluindo Chagall, em um novo cenário teatral
em que grandes performances de massa se desenvolveriam."
Por volta de 1920, quando trabalhou nas peças de Moscou,
Chagall mostrou a sua compreensão profunda das possibilidades
artísticas abertas para o teatro pela nova sociedade. Ele
disse ao diretor e aos atores do Teatro Judeu: "joguemos
fora todas essas velharias. Vamos encenar um milagre". As
pinturas são cheias de energia e vida. A peça final,
Amor no Palco, é um elegante retrato de dois dançarinos
de ballet clássico (com as feições de Chagall
e Bella) delineados em um suave cenário cinza e branco.
A influência da vanguarda russaKandinsky e Malevich,
cujos trabalhos o artista conheceu em Petrogradofica clara
nas formas essenciais e envolventes que aparecem entre as figuras
dos dançarinos. É uma peça muito especial,
que se relaciona a outras pinturas de sua vida. O belo movimento
dos dançarinos prepara o espectador para a grande energia
das dias enormes telas que são expostas na mesma sala,
quadros que ocupam uma parede inteira.
Introdução ao Teatro Judeu traz o observador
dos bastidores aos limites do palco. Devido às suas grandes
dimensões, conseguimos observar cada detalhe do teatro.
Abram Efros, diretor de arte do teatro, está conduzindo
o próprio Chagall em direção ao diretor da
peça, Aleksei Granovsky. Atrás das cortinas descobre-se
pessoas bebendo. Animais escondidos em cantos estranhos, atores
com metade dos seus figurinos e enormes arco-íris levam
o olho cada vez para perto do palco. No centro da peça
um grupo klezmer toca com tanto entusiasmo que seus instrumentos
se desintegram em suas mãos. Se este trabalho é
a visão geral de Chagall sobre o poder do teatro, na tela
que está na parede oposta ele define suas percepções
deste teatro em particular.
Em cada um dos quatro quadros Música, Dança,
Drama e Literatura uma única figura personifica
a forma artística com o contexto de um casamento hassídico
(um longo Banquete de Casamento acima deles amarra todos
juntos). Novamente eles explodem em um exuberante entretenimento
para os que estão ao seu redor. A Música
tem uma face verde e uma rabeca alaranjada, e dança entre
cabanas camponesas. O extasiante Dança é
acompanhado por uma pessoa de ponta cabeça, apoiando-se
nas mãos, mas também por pessoas trabalhando duro
ao fundo. Em Drama um ator faz sua platéia chorar
de rir. Apenas Literatura é uma figura contemplativa,
mas atrás de seu pergaminho há um bode. É
um teatro vibrante, firmemente ligado às pessoas.
Isto se torna mais claro na segunda galeria onde muitos dos
seus figurinos e desenhos de sets estão expostos, junto
de estudos para grandes murais. Está claro também
que ele considerava seu trabalho de pintura como parte integrante
da criação de uma peça de teatro. Seus projetos
de figurinos colocam os atores em poses específicas. O
protagonista Solomon Mikhoels (que é mostrado em vários
projetos criando formas monstruosas com as mãos) disse
para Chagall: "estive estudando seus desenhos, e os entendi.
Eles me fizeram mudar a interpretação do meu papel
completamente. A partir de agora estou apto para usar meu corpo,
me mover e falar de forma diferente".
O fato desta elevação do potencial artístico
estar intimamente ligada à situação pós
Revolução Russa é mais visível nos
dois pequenos esboços para cartazes comemorativos do primeiro
aniversário da Revolução, que Chagall executou
como Comissário do Povo. Esses cartazes também destacam
o uso que ele fez de tal desenvolvimento em suas obras mais pessoais.
É difícil não ver conexão da pequena
obra O Cavaleiro com A Aparição. Na
primeira o mensageiro revolucionário toca sua corneta entre
os minúsculos povoados, e uma bandeira vermelha cruza a
tela, às suas costas.
Em O cavaleiro, é a imaginação
que invade o espaço; nessa, a revolução.
Os curadores da exposição afirmam que "não
é de se surpreender que os projetos de Chagall não
eram considerados suficientemente políticos pelos funcionários
locais do partido". A atitude de Chagall para com a revolução
pode ter sido complexa, mas afirmar que seu trabalho não
era "adequadamente político" surpreende quando
sabemos que no espaço de apenas dois meses ele produziu
150 banners e arcos para decoração das ruas.
O que liga seu trabalho expressamente político aos seus
projetos para o teatro (e também às suas figuras
voadoras) é o estudo aprofundado da vida judaica em Vitebsk.
Sua pintura de gênero talvez seja a menos interessante,
mas lança luz sobre seus outros trabalhos do mesmo período.
Obras como A Loja do Tio em Liozno, Rua de Vitebsk e Vista
de uma Janela em Vitebsk esboçam o pano de fundo para
trabalhos maiores como Sobre a Cidade. Estudos como O
Louco da Vila e Tio Zussy não apenas capturam alguns
aspectos da vida comunitária, como também os seus
personagens também estão escondidos dentre a platéia
dos teatros nas grandes telas de Moscou. Em seus elegantes e raros
trabalhos em preto e branco, ele não só captura
os mesmo aspectos da vida judaica como também (em obras
como Homem com Marionetes e Acrobata) exemplos mais antigos
de teatro judaico.
Chagall havia retornado para Vitebsk de Paris, onde era um
participante ativo no florescimento de uma nova arte (Apollinaire,
que Chagall conheceu, era próximo de Picasso; Robert e
Sonia Delaunay eram amigos próximos). Em Petrogrado, ele
havia feito parte da vanguarda. Em Vitebsk, o artista procurava
as origens de seu modernismo, de sua nova arte, e procurando inspiração
na gran de agitação social que o cercava. Como ele
mesmo colocou, "sem dúvida, senti que, depois de quatro
anos em Paris, estava pronto para ficar e trabalhar em minha cidade
natal. Eu queria buscar esse sonho no céu e no chão
de Vitebsk, e precisamente no espírito revolucionário
que me parecia favorável para a explosão de uma
nova arte".
Pela duração de sua estadia na Rússia
revolucionária, Chagall parecia estar atento ao potencial
que surgia no mundo ao seu redor, e expressou isso largamente
enquanto a busca de uma nova direção para a arte.
O artista declarou que "todos nos parecemos e todos somos
provavelmente nostálgicos, não do que nós
gostaríamos de saber ou das coisas externas a nós,
mas dos nossos próprios sonhos, do nosso próprio
impulso em direção a uma revolução
em nossa vida interna, que é o descobrimento da pureza,
da simplicidade, do natural, como os rostos das crianças
ou a voz de alguém que temos o hábito de chamar
de Divindade"; nota-se nesta afirmação uma
expressão em termos claramente religiosos. É significante,
entretanto, que ele tenha usado um conceito que iria adquirir
grande peso dentro do movimento surrealista: o da revolução
da vida interior.
Talvez o exemplo mais forte disso seja o grande quadro O Espelho.
Aqui a pequena figura de Bella está caída em uma
cadeira fora de escala, em frente a um gigante espelho arroxeado.
Existe um mundo por detrás da percepção consciente
do sujeito, e os surrealistas mais tarde reconheceriam aí
o lugar de Chagall em suas formulações artísticas.
Em 1942, André Breton pôde escrever em "Gênese
e Perspectiva do Surrealismo nas Artes Plásticas":
"no começo dos movimentos dadaísta e surrealista,
que deviam juntar a poesia com as artes plásticas, não
foi dado crédito suficiente para Chagall. Isso foi uma
grave omissão".
Essa exposição, que mostra as respostas do pintor
à imaginação e à revolução,
à realidade e à representação teatral,
nos permite ver Chagall ligando momentaneamente um mundo interior
e exterior e agindo como um condutor entre a pintura e o teatro.
Por um breve período, o trabalho de Chagall, que Breton
chamou de "determinadamente mágico", floresceu
em resposta à primeira tentativa de criar uma nova sociedade.