Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês,
no dia 30 de setembro de 2006.
A tentativa do presidente dos EUA, George Bush, de reconciliar
dois aliados norte-americanosos presidentes afegão
e paquistanês, Hamid Karzai e o General Pervez Musharrafparece
ter fracassado.
Antes do jantar na Casa Branca, era visível o constrangimento
expresso pelos dois líderes ao posarem lado de Bush. Recusaram-se
até mesmo ao cumprimento formal. Enquanto isso, Bush tentava
fazer do episódio uma chance para estabelecermos
estratégias conjuntas. Mas Bush não foi capaz,
por meio do encontro, de articular nenhuma nova estratégia.
O porta-voz da Casa Branca, Tony Snow, disse à mídia
que os dois líderes concordaram em colaborar em relação
ao serviço de inteligência visando uma ação
coordenada contra os terroristas. Todavia, seus comentários
demonstraram que a discórdia entre os dois, tornada pública
na semana passada, ainda persiste.
De maneira geral, a mídia norte-americana internacional
subestimou o caso, rotulando-o de uma bofetada entre
dois aliados em disputa. Mas o episódio representa
o prelúdio do provável desastre da política
norte-americana no Afeganistão, onde as tropas dos EUA
e da OTAN estão enfrentando uma crescente resistência
por parte de forças contrárias à ocupação,
o que é uma conseqüência inevitável da
profunda desestabilização gerada pela invasão
liderada pelos EUA na região.
Karzai iniciou sua dura declaração afirmando
que o Paquistão deve fechar em todo o país os instrumentos
de disseminação dos princípios do ódioas
escolas islâmicas. Mostrou-se cético em relação
ao pacto assinado no mês passado entre o governo paquistanês
e líderes de tribos locais, em Waziristan do Norte. Sob
pressão de Washington, o exército paquistanês
enviou 70.000 homens à zona tribal autônoma de Pashtun,
próxima à fronteira com o Afeganistão, para
que fossem reprimidos simpatizantes locais das milícias
anti-ocupação que lutam no Afeganistão.
Enquanto Musharraf considerou que o pacto de não-agressão
foi uma vitória, na verdade ele significa um humilhante
retrocesso diante de meses de lutas sangrentas nos quais centenas
de soldados paquistaneses perderam suas vidas. O exército
retirou suas tropas de Waziristan do Norte e o governo ofereceu
uma recompensa, em troca de uma frágil garantia de que
as forças tribais impediriam a travessia da fronteira por
grupos anti-americanos. A presença militar serviu apenas
para gerar uma forte resistência nas regiões próximas
à fronteira, e provocou uma oposição nas
camadas do exército, que inclui um significativo número
de membros Pashtuns.
A declaração de Karzai sobre o pacto de Waziristan
do Norte foi apoiada por generais, oficiais e diplomatas norte-americanos,
que culpam o Paquistão pelo crescimento de grupos anti-ocupação
no Afeganistão, e exigem que Musharraf aja de maneira mais
decisiva no sentido de prevenir a infiltração de
grupos islâmicos no Afeganistão. Há nessas
acusações uma grande dose de hipocrisia, uma vez
que, na década de 80, a CIA armou e treinou grupos islâmicos
instalados no Paquistão, que cruzavam a fronteira com extrema
facilidade a fim de lutar contra o governo de Kabul, que era aliado
da União Soviética.
Com toda a certeza, guerrilhas contra a ocupação
estão usando o Paquistão como um refúgio.
Porém, a razão para a multiplicação
de ataques contra a ocupação liderada pelos EUA
é a larga hostilidade que a população afegã
tem contra os métodos repressivos utilizados pelo exército
norte-americano e a evidente incompetência do governo Karzai
em acabar com a crise econômica e social do país.
A conseqüência disso é o aumento do número
de afegãos que se dispõe a ingressar em grupos de
resistência à ocupação.
Musharraf respondeu a Karzai publicamente, declarando que o
Afeganistão é um estado falido. Ele nega que a Al
Qaeda e o Taliban operem do Paquistão. Nada disso
é verdade e Karzai sabe disso, afirmou ele à
CNN. Ele sabe que o tráfico de drogas está
financiando o Taliban. Ele sabe que isso não é um
problema gerado pelo Paquistão. Mas ele está ficando
cego. Ele parece uma avestruz com sua cabeça enterrada
no solo. Seu aberto desprezo por Karzai foi uma tentativa
de se diferenciar de alguém que é visto na região
como uma marionete dos EUA.
O comentário de Musharraf revela a difícil posição
política na qual a invasão norte-americana do Afeganistão
o colocou. Amplas camadas da população o vêem
como um palhaço que dá suporte à guerra
ao terror norte-americana. Apesar de seu apoio ao regime
Taliban, que tem um crescente número de militantes, Musharraf
enfrenta uma enorme pressão norte-americana. Mesmo assim,
seu regime conta com o apoio de uma aliança de partidos
islâmicos.
O apoio público de Bush ao acordo de Musharraf com o
Waziristan do Norte é significativo. O apoio foi dado apesar
da evidente oposição do Pentágono e de aliados
da OTAN. Na quarta-feira, o dia do jantar na Casa Branca, um oficial
militar norte-americano afirmou à imprensa que os ataques
aos norte-americanos e às tropas aliadas no Afeganistão
triplicariam caso a trégua for assinada. Na quinta-feira,
foi divulgada uma nota da Britains Defense Academy,
afirmando que a inteligência militar paquistanesaInter-Services
Intelligence (ISI)estava dando apoio indireto ao Taliban.
No entanto, Bush deu boas vindas a Musharraf na Casa Branca
como um bom amigo e tentou apaziguar sua discórdia
com o presidente do Afeganistão. A aproximação
cuidadosa revela preocupações reais em Washington
sobre a estabilidade do regime paquistanês e o receio da
crescente influência dos partidos islâmicos no Paquistão.
O apoio norte-americano a Musharraf, todavia, depende dele continuar
aceitando as ordens de Washington. Isso significa não fortalecer
sua própria base interna de apoiouma situação
que, a longo prazo, é insustentável.
O fracasso da tentativa de Bush, ao promover o jantar na Casa
Branca, de resolver o conflito entre Karzai e Musharraf, evidencia
o caráter negligente das aventuras militares do governo
Bush no Afeganistão. O ataque de 11 de setembro promoveu
um conveniente pretexto para realizar os objetivos de Washington,
que é garantir sua dominação econômica
e estratégica no Oriente Médio e na Ásia
Central. O Afeganistão, localizado entre duas regiões
ricas em recursos naturais, foi um conveniente primeiro passo.
Tal estratégia se encontra em pedaços. O governo
Bush enfrenta uma resistência armada que vem se expandindo
no Afeganistão. Ao mesmo tempo, a invasão enfraqueceu
seriamente a Musharraf, um aliado-chave dos EUA, e aponta para
o fracasso dos esforços de Washington em superar a antiga
rivalidade existente entre o Paquistão e a Índia.
O conflito entre os dois rivais do sul da Ásia interrompe
os planos do governo Bush para estabelecer relações
econômicas mais próximas com a Índia e transformá-la
num aliado potencial contra a China.
Há muito tempo, o Afeganistão tem sido uma arena
para o duelo entre o Paquistão e a Índia. Para atacar
o regime Taliban apoiado pelo Paquistão, a Índia
apoiou os militares da chamada Aliança do Norte, ao qual
pertence atualmente o governo de Karzai, em Kabul. De forma nada
surpreendente, a Índia aproveitou a oportunidade para reforçar
a sua posição no Afeganistão, por meio de
significativa ajuda econômica. Em abril, Karzai fez sua
quarta viagem à Nova Delhi com uma enorme delegação
de 110 pessoas, entre ministros, parlamentares e empresários.
O aprofundamento das relações com a Índia,
que prometeu mais US$50 milhões, além do valor já
acordado de US$650 milhões, está em marcante contradição
com a tentativa de acordo entre o Afeganistão e o Paquistão.
O regime paquistanês é altamente sensível
ao envolvimento da Índia com o Afeganistão, que
pode ser uma ameaça potencial da Índia na fronteira
oeste do Paquistão. O Paquistão se recusou a autorizar
o transporte de suprimentos indianos pelas estradas do Afeganistão.
Além disso, a inteligência militar paquistanesa (ISI)
acusou a Índia de estar envolvida no fomento à oposição
separatista armada na instável província paquistanesa
de Baluchistan.
O jantar na Casa Branca não poderia fazer nada para
resolver estes problemas. Sem dúvida alguma, Musharraf
foi fortemente pressionado pelos EUA. para reprimir as forças
do Taliban e da Al Qaeda que atuam no Paquistão. Mas as
críticas públicas feitas por ele esta semana, tanto
a Karzai quanto ao governo Bush, indicam que ele tem pouco espaço
de manobra a respeito dos assuntos nacionais.
O próximo passo dos EUA é tentar estabelecer
uma nova conversa tranqüila na Casa Branca. Um artigo na
revista Time na semana passada afirmou: Países
chaves da OTAN, cujas tropas lutam na guerra contra o Taliban
no sul do AfeganistãoInglaterra, Canadá, Austrália
e Holandaconsideraram a possibilidade de lançar um
ultimato a Musharraf para acabar com o Taliban, prendendo seus
líderes que atuam no Paquistão. Caso ele não
faça isso, deverá arcar com as conseqüências.
Tais conseqüências incluem o envio de
tropas da OTAN ao Paquistão para reprimir e assassinar
combatentes do Taliban. Bush declarou que, caso o exército
norte-americano localize Osama bin Laden no Paquistão,
ele espera que as forças norte-americanas cruzem a fronteira
e o agarrem. Tal movimento poderia colocar os aliados
numa rota de colisão. Como Musharraf disse à CNN:
Esta é uma região sensível. Nós
operamos do nosso lado da fronteira e os EUA e seus aliados operam
do outro lado. Vamos deixar as coisas assim. Nós não
queremos que a nossa soberania seja violada.