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Como a Austrália orquestrou uma "mudança de regime" no Timor Leste

Parte 3

Por Peter Symonds
14 Octubre 2006

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Esta é a conclusão de um artigo de três partes sobre a recente intervenção militar da Austrália no Timor Leste. Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês, no dia 29 de julho de 2006.

Em um artigo intitulado "Timor Leste: fala Alkatiri" publicado no último mês no website New Matilda, o conhecido jornalista australiano independente John Martinkus investigou as queixas do Primeiro Ministro Alkatiri de que seus oponentes políticos tinham procurado ganhar o controle das forças armadas do país e fomentado um golpe contra o governo.

Falando para Martinkus, o Primeiro Ministro disse: "Estavam sempre tentando assumir o comando da Falintil-FDTL [Forças de Defesa do Timor Leste]. Tentaram convencer o comando a ordenar e participar em um golpe. Fracassaram. Quando não conseguiram fazer com que o comando se juntasse às suas forças em um golpe, então, tentaram quebrar a F-DTL, e fizeram isso tirando dos seus quartéis quase seiscentos homens que foram considerados como revoltosos".

Em fevereiro e março, ocorreram greve e protestos de seiscentos soldados por queixas de falta de pagamento e por outras questões; suas subseqüentes demissões pelo governo Alkatiri; e a repressão de violentos protestos envolvendo soldados, gangues de jovens e políticos de oposição em 28 de abril, foram repetidamente citados na mídia australiana como as razões para o enviar tropas australianas.

Tendo conversado sobre esses eventos com os militares do Timor Leste, Martinkus escreveu: "Altas fontes do comando da F-FDTL confirmaram que as afirmações de Alkatiri eram verdadeiras. Disseram eles que três tentativas diversas foram feitas por lideranças para lançar um golpe contra Alkatiri nos últimos 18 meses".

"Fui capaz de confirmar que em abril de 2005, nas semanas seguintes às demonstrações de massa contra o governo de Alkatiri, o comandante da F-FDTL, brigadeiro Taur Matan Ruak, foi sondado para liderar um golpe. A sondagem foi feita por figuras importantes da Igreja Católica do Timor Leste. Ele rejeitou a oferta. Foi sondado novamente no começo deste ano, em uma reunião com proeminentes lideranças do Timor Leste e com dois políticos de nacionalidade estrangeira, estes lhe pediram que liderasse um golpe. Novamente recusou, sustentando que isso era contra a Constituição e que abriria um inaceitável precedente".

"Um dos principais deputados, o Tenente Coronel Falur Rate Laek, um veterano de Guerra contra a Indonésia, foi também sondado pelos mesmos dois líderes locais e estrangeiros. Ele também recusou".

"Devido à gravidade da informação, as nacionalidades dos estrangeiros não foram reveladas".

Os oficiais envolvidos, assim como Alkatiri e os líderes da Fretilin, claramente sabem quem fez essas sondagens, incluindo os nomes e as nacionalidades dos estrangeiros envolvidos. O fato de que não se revelassem os nomes, porém, não foi surpreendente. Isso vincula-se diretamente à recusa da Fretilin de opor-se abertamente à invasão australiana do país. Havendo temores de que se podia perder o controle do movimento de massas contra a ocupação militar. Alkatiri foi pressionado e concordou em "convidar" as tropas australianas. Renunciou então ao seu posto de primeiro ministro e, pouco tempo depois, deu sua benção à posse de Horta.

A hostilidade da Igreja em relação à Fretilin

Não é difícil compreender o quê estava por trás dos movimentos contra o governo da Fretilin. Desde 2001, a oposição política teve sustentação dos EUA e da Austrália, com Washington concedendo o papel principal a Canberra. Se os "estrangeiros" não eram militares ou agentes australianos ou americanos, estavam certamente agindo com o seu reconhecimento de que a remoção do governo de Alkatiri seria bem vindo por Howard e Bush.

As queixas feitas a Martinkus são certamente verossímeis. A hostilidade da Igreja Católica ao governo da Fretilin surgiu nos debates sobre a nova constituição do país, quando membros da igreja e políticos de oposição defenderam o restabelecimento do catolicismo como religião oficial. Como sua proposta foi mal sucedida, o Bispo Belo, no entanto, forçou a remoção de uma cláusula expressando o princípio democrático básico da "separação entre igreja e estado" e um outro referindo-se ao direito de divórcio.

Em abril de 2005, lideranças da igreja organizaram uma prolongada campanha que durou várias semanas para opor-se à decisão do governo da Fretilin de manter como opcional a educação religiosa nas escolas e não como obrigatória. Esse elementar passo democrático provocou severas denúncias por parte da igreja, que pediu a remoção de Alkatiri. Falando em um comício em Dili, no dia 19 de abril de 2005, o padre Benâncio Araújo denunciou a "ditadura de Alkatiri" e informou que a igreja chamaria o povo de fora da capital para "derrocar o regime anti-democrático". Segundo uma reportagem do Ásia Times, o embaixador dos EUA no Timor Leste apoiou abertamente os protestos da igreja, assistindo mesmo pessoalmente uma das demonstrações.

No ultimo mês de abril, Alkatiri acusou a igreja de agir como um "partido de oposição", então retirou seus planos de transformar a educação religiosa voluntária. A retirada somente incentivou os sacerdotes católicos. Em janeiro de 2006, um dos principais parlamentares da Fretilin, Francisco Branco, denunciou um proeminente sacerdote por empreender uma campanha de derrubada do governo. Segundo Branco, o sacerdote teria dito aos seguidores da igreja que uma decisão de enviar estudantes para estudar em Cuba, transformaria o Timor Leste em um país comunista. Além disso, teria dito que a Fretilin tinha um plano para assassinar freiras e sacerdotes caso ganhasse a próxima eleição.

Contratos rivais

Existiam pelo menos duas outras razões para que o rancor da Austrália e dos EUA com o governo da Fretilin se aprofundasse no começo de 2006. Em janeiro, Canberra e Dili finalmente assinaram um tratado a respeito da conjunta exploração dos campos de petróleo e gás no mar do Timor. Ainda que a parte do leão tenha ido para a Austrália, Alkatiri tinha forçado o governo Howard a fazer concessões limitadas, mas significativas. Além disso, Dili estava examinando também propostas de cooperação com a China e com diversos países europeus, em prejuízo da Austrália, para explorar e desenvolver outros recursos potenciais de energia no território do Timor Leste.

Em fevereiro, o governo de Dili chamou por ofertas para os seus próprios campos de exploração, após uma pesquisa Chinesa-Norueguesa, a qual estimou que a área possuía meio bilhão de barris de petróleo, e cerca de dez trilhões de pés cúbicos de gás (aproximadamente 10 por cento do total estimado nas reservas do Mar do Timor). Tendo como prazo final 19 de abril, cinco companhias tinham submetido ofertas, seja individualmente, ou em consórcios. Foram a ENI da Itália, a GALP de Portugal (cuja maior acionista é a própria ENI), a petroleira do Brasil (Petrobrás), a Petronas da Malásia e a Reliance da Índia. .

Ao mesmo tempo, a Comissão do Timor Leste para Audiência, Verdade e Reconciliação (CAVR) liberou um abrangente relatório sobre os crimes da ditadura da Indonésia no Timor Leste entre 1975 e 1999 e a responsabilidade das grandes potências, especialmente os EUA e a Austrália, por sua cumplicidade. O relatório, que foi financiado pela ONU, chocou-se diretamente com os esforços de Gusmão para enterrar o passado e efetuar a reconciliação com a Indonésia. Quando foi apresentado formalmente no Conselho de Segurança da ONU, Gusmão se opôs ao documento e tentou suprimir suas revelações.

O relatório foi só eventualmente noticiado pela mídia. Os EUA e a Austrália reagiram ambos com furor diante das conclusões, as quais, embora de forma limitada, ainda afirmam que os dois países seriam responsáveis pela sustentação da junta da Indonésia e os intimaram a pagar reparações ao Timor Leste. Ao contrário, Canberra e Washington esperavam que o relatório da CAVR constituísse não somente mais um ponto negativo contra o governo de Alkatiri, mas também contra a atuação da ONU. Sua hostilidade contra a ONU deriva do fato que, tentando realizar seu mandato, a ONU ajudou a instalação e manutenção do governo de Alkatiri. A administração Bush tem repetidamente se oposto à continuidade da presença da ONU no Timor Leste e, em meados de 2005, conseguiu com sucesso reduzir consideravelmente a dimensão e os objetivos da missão. Em janeiro de 2006 e novamente em maio, no meio da crise política, os EUA e a Austrália se opuseram ambos a qualquer prolongamento da presença da ONU no Timor Leste.

A opção militar

Considerando as suas sucessivas intrigas anteriores, não há dúvida que a Austrália teve uma participação nos acontecimentos políticos imediatamente precedentes que conduziram à sua intervenção militar em 24 de maio de 2006. As relações cerradas do governo Howard com Gusmão e Ramos-Horta foram indubitavelmente desenvolvidas mais ainda por uma rede de contatos estabelecidos pelo corpo diplomático da Austrália, por pessoal militar e técnicos militares em Dili, que se relacionaram com políticos de oposição, soldados rebeldes, policiais e mesmo líderes de gangues. Canberra não somente sabia quem estava envolvido nos protestos armados de março, mas, com toda a probabilidade, mesmo os encorajou.

Durante questionamento diante da comissão do Senado, o deputado, Secretário da Defesa e Estratégia, Michael Pezzullo, admitiu que 28 militares australianos estiveram pessoalmente no Timor Leste bem antes de 24 de maio e tiveram contato diário com oficiais do Timor. Os Verdes, que amplamente apoiaram o despacho de tropas australianas, perguntaram o que esses oficiais australianos tinham ido fazer no Timor. "Quero saber se a Defesa teve algum papel nos saques de tropas que precipitaram a corrente crise. Quero saber que comunicação e cooperação a Defesa teve com o líder rebelde Major Reinado", perguntou o senador dos Verdes, Kerry Nettle. Porém, maiores detalhes não foram fornecidos.

Os líderes de oposição do Timor Leste, de forma estridente, pediram à ONU investigação sobre o violento protesto que teve lugar em 28 de abril em Dili, que terminou com o assassinato pela polícia de muitos manifestantes. No entanto, comentando em seu artigo "Golpe de estado no Timor Leste" a jornalista escreveu: "Cheguei em Dili quando explodiram os primeiro tumultos em 28 de abril deste ano e como uma testemunha no meio da intranqüilidade, tive a impressão de que os soldados, muito jovens, tinham ajuda externa - acredito de políticos locais e de "estranhos". A maioria dos observadores citaram a capacidade dos soldados dissidentes de passarem de um grupo desarmado de protesto verbal para centenas brandindo paus e armas, como levantando as suspeitas locais que isso não era um protesto "orgânico". Entrevistei muitas pessoas - desde pertencentes à Fretilin até políticos de oposição e jornalistas locais - e nenhuma rejeitou o fato de que os protestos tinham sido desviados para ‘outros propósitos'."

Mesmo Horta reconheceu em seu relatório para o Conselho de Segurança da ONU em 5 de maio que Osório Lequi, o líder de um partido de oposição formado recentemente, o PDRT, foi envolvido na elevação das tensões. Horta relatou que os confrontos de 28 de abril não foram realizados por soldados dissidentes, mas sim, por uma gang de jovens e alguns elementos políticos, incluindo membros do PDRT, que atacaram a polícia provocando os distúrbios. Significativamente, na mesma sessão da ONU, oficiais dos EUA e da Austrália veemente se opuseram a qualquer extensão da missão da ONU, mais ainda a qualquer expansão, e a missão foi considerada concluída. Um compromisso foi acertado, finalmente, que a missão seria estendida por apenas um mês.

Existem muitos motivos para acreditar que o governo Howard, com o apoio da administração Bush, tinha já colocado em movimento planos para uma ocupação militar no Timor Leste. Em 12 de maio, quando estava para ir a Washington, Howard confirmou que as forças armadas da Austrália tinham ordenado que três navios de guerra fossem enviados à costa do Timor Leste, sem informar o governo de Alkatiri. A diplomacia de canhão realizada pelo governo de Canberra visava intensificar a pressão sobre a liderança da Fretilin. Howard sabia bem que os planos visavam expulsar Alkatiri no congresso da Fretilin que seria realizado entre 17 e 19 de maio. A facção dissidente, comandada pelo embaixador do Timor Leste na ONU e nos EUA, José Luís Guterres, e o anterior embaixador na Austrália, Jorge Teme, estava recebendo apoio aberto na mídia australiana.

Mas, o movimento de Guterres fracassou quando a maioria esmagadora dos delegados do congresso da Fretilin confirmaram Alkatiri no dia 19 maio. Logo que o congresso terminou, confrontos rapidamente surgiram entre as forças de segurança pró-governo e soldados dissidentes, polícia e gangues de jovens em Dili e nas proximidades, providenciando o pretexto necessário - colapso da "lei e da ordem" - para que as forças armadas da Austrália fossem enviadas. Dois dos envolvidos nos confrontos - "Major" Alfredo Reinado e Vicente "Railos" da Conceição - têm todas as características de agentes provocadores.

Reinado passou seu exílio na Austrália e treinou no último ano na academia de defesa em Canberra. Controlando um punhado de policiais militares, se dirigiu em 23 de maio, em companhia do repórter da SBS David O'Shea, para os subúrbios de Dili, onde provocou um tiroteio com as tropas governamentais. Festejado nos dias seguintes pela mídia australiana, Reinado não escondeu seu desejo de que os "pacificadores" australianos assumissem o controle da situação, e insistiu que Alkatiri se demitisse e que fosse levado a julgamento.

Em 24 de maio, sob a pressão de Gusmão e Horta, Alkatiri finalmente concordou em endossar um convite formal para que tropas e policiais da Austrália, Portugal, Malásia e Nova Zelândia entrassem no país. Em algumas horas, os primeiros soldados australianos começaram a desembarcar no aeroporto de Dili. Mas os confrontos continuaram enquanto a Austrália pressionava por um acordo definitivo sobre a extensão de sua intervenção e sobre as regras de seu envolvimento. Em sua entrevista com o jornalista Martinkus, Alkatiri explicou que Reinado e Railos juntaram forças aquele dia para um ataque conjunto a uma fase militar governamental em Tacitolu. Significativamente, apenas quinze dias depois, Railos surgiu em boatos de que era o líder de um "esquadrão da morte" pro-Fretilin, organizado pelo ministro do interior Lobato, com a concordância de Alkatiri. Essa denúncia totalmente sem consistência tornou-se rapidamente o pretexto para pedidos de que ambos os lideres fossem demitidos.

Howard encurtou bruscamente sua visita à Irlanda retornando para a Austrália em 24 de maio, a tempo para anunciar publicamente o despacho de tropas para o Timor Leste. Como chegavam notícias do agravamento dos conflitos em Tacitolu e em outros lugares, Howard deu a ordem para a intervenção ser realizada a todo vapor, sem esperar por um acordo com o governo de Alkatiri. Em alguns dias, uma força de 1300 soldados australianos, apoiados por veículos e helicópteros de ataque estavam no país. A partir da insistência de diplomatas e militares australianos, o governo da Fretilin concedeu amplos poderes a esses "pacificadores", permitindo-lhes impor efetivamente leis marciais em Dili.

A cronologia dos eventos desses cinco últimos anos demonstra que a ocupação militar do Timor Leste pela Austrália, assim como a remoção de Alkatiri e a instalação de Ramos-Horta como primeiro ministro, não foram a conseqüência da inesperada quebra da "lei e da ordem" em Dili. Foram, ao contrário, o produto de planos longamente preparados para "mudar o regime", visando proteger os interesses econômicos e estratégicos do imperialismo australiano. Tendo fracassado desde 2002 em conseguir seus objetivos de expulsar o governo de Alkatiri através de meios indiretos, o governo Howard, com o suporte da administração Bush, optou entre maio e junho de 2006 pela mais direta abordagem militar.

Concluído