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Como a Austrália orquestrou uma “mudança de regime” no Timor Leste

Parte 2

Por Peter Symonds
13 Octubre 2006

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Esta é a segunda das três partes do artigo sobre a recente intervenção militar australiana no Timor Leste. Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês, no dia 28 de julho de 2006.

Nos eventos seguintes à “independência” de maio de 2002, a tensão política continuou sua escalada entre o primeiro-ministro Alkatiri e seu governo de maioria da Fretilin de um lado, e do outro, as forças anti-Fretilin lideradas pelo presidente Gusmão e o ministro Horta das relações exteriores. Naquela época, já estavam prestes a explodir cenas que carregam enorme semelhança às que irromperam este ano.

Num discurso extraordinário em 28 de novembro de 2002, Gusmão se baseou em confrontos entre a polícia e apoiadores de uma organização obscura conhecida como CPD-RDTL na cidade de Baucau para lançar um ataque ao governo, incluindo a exigência de que o ministro do interior, Rogério Lobato, renunciasse. Ele também renovou seu chamado por um governo de unidade nacional e, ecoando a retórica de vários partidos de oposição, afirmou: “O partido do governo tem se colocado acima dos interesses nacionais e dos interesses do povo, sua intenção de tomar o poder em todas as suas formas é clara”. Alkatiri rejeitou enfaticamente as afirmações de Gusmão, declarando: “Nosso governo foi formado para cinco anos e não seis meses”.

Apenas alguns dias depois, em 3 e 4 de dezembro de 2002, revoltas entraram em erupção em Dili. Por mais que houvessem se originado num protesto estudantil contra os métodos violentos da polícia, o ato inicial foi rapidamente transformado em revoltas da juventude desempregada, estimuladas por grupos de oposição anti-Fretilin. Nas investigações que se seguiram, testemunhas confirmaram terem visto agitadores dirigindo a multidão em direção a símbolos proeminentes do governo. A casa de Alkatiri e as de seus parentes foram queimadas até o chão e a mesquita de Dili (Alkatiri é de origem muçulmana) também foi atacada. Duas pessoas foram mortas e mais de 20 ficaram feridas nos confrontos com a polícia antes que um toque de recolher tivesse sido imposto.

Não há dúvidas de que a crise social e econômica que se aprofundava no país ajudou a acender a faísca das revoltas. No entanto, os oponentes da Fretilin também fizeram sua parte. Lobato acusou o CPD-RDTL de uma “manobra orquestrada para derrubar o governo”. O CPD-RDTL, que possui combatentes de guerrilha dissidentes em suas fileiras, reivindica-se a verdadeira Fretilin. Porém, este também era associado a figuras que tinham conexões com a milícia pró-Indonésia, que devastou o país em 1999.

Significantemente, Mário Carrascalão, um grande fazendeiro de café, que havia sido governador sob a junta indonesiana e liderado o Partido Social Democrata (PSD), uma dissidência da UDT, lançou um aviso de guerra civil: “Nós estivémos unidos contra os indonésios, agora estamos divididos. Isso é responsabilidade daqueles no poder e o perigo é grande se não reconhecermos aonde isso pode nos levar”, disse ele.

As investigações falharam em revelar quem foi responsável pelas revoltas. Não há dúvidas, no entanto, de que o PSD de Carrascalão junto com o Partido Democrático, a Igreja Católica, soldados decepcionados com as Falantil e gangues juvenis estavam todos em total oposição ao governo. Nem a Fretilin nem seus oponentes ofereciam qualquer solução à profunda crise social que assolava o país - legado do atraso econômico produzido por séculos de domínio português e indonésio. Porém, os partidos da oposição tiveram êxito em apelar à crescente opinião de que a “independência” falhou em trazer empregos, educação e melhora nas condições de vida. De fato, após a partida de vários oficiais bem pagos da ONU na véspera da declaração de independência a artificialmente inflada economia de Dili mergulhou de cabeça.

Os tumultos de 2002 também levantaram questões relativas ao papel desempenhado pelas tropas e polícia australianas, que foram criticadas por seu fracasso na ação. Em outro recente artigo intitulado “Timor Leste: Uma nova guerra fria”, o jornalista Keady observou: “Logo após as agitações de 2002, entrevistei testemunhas locais assim como o chefe da forças australianas e da ONU sobre reclamações que eles não teriam feito nada para dar fim ao caos. Depois de muita investigação, disseram-me que um representante da ONU foi extra-oficialmente pedir ao primeiro ministro Alkatiri que ele renunciasse, uma resposta interessante aos conflitos civis que faz rir das pretensões apolíticas da ONU em esforços humanitários.”

Não havia dúvida sobre para que lado pesava a simpatia do governo de Howard. Em dezembro de 2002, oficiais timorenses reclamaram à mídia australiana que o ministro das relações exteriores australiano, Alexander Downer, havia sido “abusivo e agressivo” em negociações com Alkatiri sobre o gás e petróleo marítimos timorenses. Downer expressou objeção particular ao conselho recebido por Dili do conselheiro da ONU, Peter Galbraith, sobre Dili ter um forte argumento para uma parte muito maior das fontes de energia.

Em 9 de dezembro de 2002, com palavras que prenunciavam diretamente as recentes denúncias a Alkatiri, o Australian Financial Review publicou um artigo intitulado “Gusmão deve assumir o controle” declarando: “Há desilusão geral sobre a performance de Alkatiri e sua camarilha de velhos esquerdistas da Fretilin, que não aprenderam nem esqueceram nada desde seus dias no falido estado socialista de Moçambique há mais de 30 anos atrás.” O artigo concluía que, pelo contrário, o presidente (Gusmão) era “um herói nacional, um homem modesto e decente” que deveria ser mais do que uma simples referência nessas circunstâncias.

O envolvimento australiano na luta pelo poder era claro. Em maio de 2003, um artigo na revista australiana Bulletin comentava: “Igualmente fascinante é a disputa diplomática entre Lisboa e Canberra pela influência no Timor Leste. Nenhum lado admite estar em batalha, mas é claro que cada um tem sua própria agenda”. Nas sombras da antiga União Soviética, a rádio do governo português ruge através da praça principal por alto-falantes enquanto famílias de velhos oficiais do governo colonial contam suas pensões de 300 dólares enviadas de Lisboa. Enquanto a embaixada-fortaleza australiana encontra-se no meio do caminho ao aeroporto para um acesso fácil caso as coisas fiquem feias novamente, a de Portugal fica ao lado dos gabinetes governamentais, onde Alkatiri e sua facção supostamente lideram o lobby anti-australiano.

Enquanto a União Européia patrocinava a oferta portuguesa pela supremacia, Canberra contava com Washington, que estava diretamente envolvida na política de Dili. Em artigo intitulado “Domando a república das bananas: os Estados Unidos no Timor Leste”, Ben Moxham, um pesquisador associado ao Focus on the Global South (“Enfoque no Sul Global”), uma organização de pesquisa e defesa situada em Bangkok, Tailândia, apontou que organizações americanas como o National Endowment for Democracy (Fundação Nacional pela Democracia), o International Republic Institute (IRI - “Instituto Internacional Republicano”) e o National Democratic Institute (Instituto Democrático Nacional) estavam engajadas em programas de “promoção da democracia” no Timor Leste.

Todas essas organizações estavam diretamente envolvidas em fomentar a pró-norteamericana “revolução colorida” na Europa do leste e na Ásia central. ”Em particular o IRI (coligado ao partido republicano), vem treinando os partidos iniciantes nesse negócio. Através de circunstâncias deliberadas e coincidentes, eles acabaram por só ajudar a oposição amiga de Washington. Enquanto o IRI se vê como um “auxílio vital” à oposição do país, o partido no poder, Fretilin, o vê como uma interferência”, escreveu Moxham.

Em 2003, tensões em relação à intromissão internacional se irromperam quando o governo propôs uma carta de imigração que barrava cidadãos estrangeiros de engajarem-se em atividades políticas. A legislação foi amargamente criticada por partidos de oposição e várias organizações não-governamentais. Transformou-se em motivo de uma batalha legal e foi eventualmente vetada pelo presidente Gusmão. Moxham escreveu: “Muitos a viram (a legislação) como uma resposta direta às atividades do IRI. A Fretilin até ameaçou deportar a equipe do IRI sob tal lei depois de o IRI ter patrocinado um plebiscito que a Fretilin considerou elaborado propositalmente para a deslegitimar. Uma entrevista com o IRI para este artigo trouxe nada mais do que comentários off the record (não-registrados), mas é seguro dizer que eles vêem a Fretilin sob a névoa paranóica da guerra fria.”

Emergência do neo-colonialismo

As atividades de Washington e seu aliado australiano no Timor Leste eram parte de rivalidades inter-imperialistas que irromperam em 1990 seguindo o colapso da União Soviética. Em 2002, a luta pela supremacia estava acontecendo em Dili quando a administração de Bush estava alavancando a “gerra global ao terrorismo”. Não surpreendentemente, nos preparativos para a invasão liderada pelos Estados Unidos ao Iraque em 2003, as facções políticas no Timor Leste aliaram-se com seus financiadores internacionais. A Fretilin ecoou as posições da França e Alemanha, que publicamente insistiam em dar mais tempo aos inspetores de armas da ONU, enquanto em fevereiro de 2003, Horta escreveu um artigo obsceno no New York Times argumentando que a iminente guerra traria paz e democracia à população iraquiana.

O governo de Howard juntou-se à invasão ilegal do Iraque para segurar interesses australianos no Oriente Médio e para ganhar o apoio de Washington para suas ambições na região do Pacífico asiático. Em julho de 2003, apenas quatro meses após a “coalition of the willing” (“coalisão dos desejosos”) ter invadido o Iraque, Canberra fez o mesmo com sua “preventiva” intervenção militar. Howard prendia-se à crise social e política das ilhas Salomão para declarar um “Estado falido” e intimidou o governo a permitir a entrada de 2000 soldados e policiais -predominantemente australianos - e a autorizar oficiais australianos a controlar as principais alavancas de poder do Estado na próxima década. Ao mesmo tempo, a Austrália usou a intervenção nas ilhas Salomão para intimidar e ameaçar outras pequenas ilhas-Estados do Pacífico, insistindo em normas de “bom-governo” e inserindo burocratas australianos em altas posições em Fiji, Papua Nova Guiné e Nauru.

No Timor Leste, no entanto, ao contrário de outros países do Pacífico, o governo de Howard sofreu uma oposição determinada e respondeu através do patrocínio a uma guerra política subterrânea mal disfarçada, em aliança com Washington, e através de seus procuradores políticos na oposição anti-governista, contra Alkatiri e seus apoiadores da Fretilin. As hostilidades à Fretilin se intensificaram depois que Alkatiri recusou-se a aceitar empréstimos do Banco Mundial e do Banco de Desenvolvimento da Ásia e voltou-se, ao invés disso, à China, Cuba e Brasil para investimentos, ajuda financeira e outras formas de assistência.

Enquanto seus oponentes australianos continuamente referiam-se à Fretilin como “marxistas”, nenhuma das medidas por ela adotada tem qualquer relação com marxismo ou socialismo. Um diplomata anônimo recentemente descreveu o governo de Dili como “o melhor bando de neoliberais” que se pode esperar. O alvo real da hostilidade norte-americana tem sido as relações da Fretilin com seus rivais econômicos, com Washigton principalmente preocupado com o crescimente da influência chinesa.

Em setembro de 2003, o programa “Dateline” intitulado “Presidente do Timor sob cerco”, veiculado no canal australiano SBS, novamente destacou a crescente animosidade a Alkatiri. João Saldanha, cabeça do grupo de estudos de orientação americana no Timor Leste, reclamou: “Estamos tentando isolar o Timor Leste do resto do mundo. Somos um país pequeno, não acho que podemos bancar isso... Há um desvio deste governo. Há alguma atenção, não muita à Austrália, aos Estados-Unidos, ao Japão, mas acho que mais para a China”. O ministro das relações exteriores, Horta, criticou Alkatiri por rejeitar empréstimos do Banco Mundial, dizendo: “Eu agiria mais depressa para entrar nestas questões que são potenciais para investidores, privilégios, para que eles comecem a investir, você sabe.”

Os oponentes da Fretilin ofereceram a falsa panacéia das reformas de mercado. Juntaram-se sob o guarda-chuva de antigos lutadores da Fretilin, hoje anti-Fretilin, decepcionados com o fracasso do governo em providenciar o reconhecimento devido por seus serviços prestados, a juventude desempregada sem perspectiva de emprego ou futuro, oficiais anteriormente empregados sob a junta da Indonésia e aldeias desprovidas até mesmo dos serviços mais básicos de educação e saúde. A origem muçulmana de Alkatiri e a insistência da Fretilin em tornar o português a língua nacional providenciou mais grãos para o moinho da oposição. No seu discurso de fim de ano em dezembro de 2003, Gusmão mais uma vez criticou abertamente o governo Fretilin. Desta vez, ele fez uma jogada para obter poderes adicionais, chamando o estabelecimento de dois corpos consultivos presidenciais, o Conselho de Estado e o Conselho Superior de Defesa e Segurança.

A continuar