Esta é a segunda das três partes do artigo
sobre a recente intervenção militar australiana
no Timor Leste. Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente
em inglês, no dia28 de julho de 2006.
Nos eventos seguintes à independência
de maio de 2002, a tensão política continuou sua
escalada entre o primeiro-ministro Alkatiri e seu governo de maioria
da Fretilin de um lado, e do outro, as forças anti-Fretilin
lideradas pelo presidente Gusmão e o ministro Horta das
relações exteriores. Naquela época, já
estavam prestes a explodir cenas que carregam enorme semelhança
às que irromperam este ano.
Num discurso extraordinário em 28 de novembro de 2002,
Gusmão se baseou em confrontos entre a polícia e
apoiadores de uma organização obscura conhecida
como CPD-RDTL na cidade de Baucau para lançar um ataque
ao governo, incluindo a exigência de que o ministro do interior,
Rogério Lobato, renunciasse. Ele também renovou
seu chamado por um governo de unidade nacional e, ecoando a retórica
de vários partidos de oposição, afirmou:
O partido do governo tem se colocado acima dos interesses
nacionais e dos interesses do povo, sua intenção
de tomar o poder em todas as suas formas é clara.
Alkatiri rejeitou enfaticamente as afirmações de
Gusmão, declarando: Nosso governo foi formado para
cinco anos e não seis meses.
Apenas alguns dias depois, em 3 e 4 de dezembro de 2002, revoltas
entraram em erupção em Dili. Por mais que houvessem
se originado num protesto estudantil contra os métodos
violentos da polícia, o ato inicial foi rapidamente transformado
em revoltas da juventude desempregada, estimuladas por grupos
de oposição anti-Fretilin. Nas investigações
que se seguiram, testemunhas confirmaram terem visto agitadores
dirigindo a multidão em direção a símbolos
proeminentes do governo. A casa de Alkatiri e as de seus parentes
foram queimadas até o chão e a mesquita de Dili
(Alkatiri é de origem muçulmana) também foi
atacada. Duas pessoas foram mortas e mais de 20 ficaram feridas
nos confrontos com a polícia antes que um toque de recolher
tivesse sido imposto.
Não há dúvidas de que a crise social e
econômica que se aprofundava no país ajudou a acender
a faísca das revoltas. No entanto, os oponentes da Fretilin
também fizeram sua parte. Lobato acusou o CPD-RDTL de uma
manobra orquestrada para derrubar o governo. O CPD-RDTL,
que possui combatentes de guerrilha dissidentes em suas fileiras,
reivindica-se a verdadeira Fretilin. Porém, este também
era associado a figuras que tinham conexões com a milícia
pró-Indonésia, que devastou o país em 1999.
Significantemente, Mário Carrascalão, um grande
fazendeiro de café, que havia sido governador sob a junta
indonesiana e liderado o Partido Social Democrata (PSD), uma dissidência
da UDT, lançou um aviso de guerra civil: Nós
estivémos unidos contra os indonésios, agora estamos
divididos. Isso é responsabilidade daqueles no poder e
o perigo é grande se não reconhecermos aonde isso
pode nos levar, disse ele.
As investigações falharam em revelar quem foi
responsável pelas revoltas. Não há dúvidas,
no entanto, de que o PSD de Carrascalão junto com o Partido
Democrático, a Igreja Católica, soldados decepcionados
com as Falantil e gangues juvenis estavam todos em total oposição
ao governo. Nem a Fretilin nem seus oponentes ofereciam qualquer
solução à profunda crise social que assolava
o país - legado do atraso econômico produzido por
séculos de domínio português e indonésio.
Porém, os partidos da oposição tiveram êxito
em apelar à crescente opinião de que a independência
falhou em trazer empregos, educação e melhora nas
condições de vida. De fato, após a partida
de vários oficiais bem pagos da ONU na véspera da
declaração de independência a artificialmente
inflada economia de Dili mergulhou de cabeça.
Os tumultos de 2002 também levantaram questões
relativas ao papel desempenhado pelas tropas e polícia
australianas, que foram criticadas por seu fracasso na ação.
Em outro recente artigo intitulado Timor Leste: Uma nova
guerra fria, o jornalista Keady observou: Logo após
as agitações de 2002, entrevistei testemunhas locais
assim como o chefe da forças australianas e da ONU sobre
reclamações que eles não teriam feito nada
para dar fim ao caos. Depois de muita investigação,
disseram-me que um representante da ONU foi extra-oficialmente
pedir ao primeiro ministro Alkatiri que ele renunciasse, uma resposta
interessante aos conflitos civis que faz rir das pretensões
apolíticas da ONU em esforços humanitários.
Não havia dúvida sobre para que lado pesava a
simpatia do governo de Howard. Em dezembro de 2002, oficiais timorenses
reclamaram à mídia australiana que o ministro das
relações exteriores australiano, Alexander Downer,
havia sido abusivo e agressivo em negociações
com Alkatiri sobre o gás e petróleo marítimos
timorenses. Downer expressou objeção particular
ao conselho recebido por Dili do conselheiro da ONU, Peter Galbraith,
sobre Dili ter um forte argumento para uma parte muito maior das
fontes de energia.
Em 9 de dezembro de 2002, com palavras que prenunciavam diretamente
as recentes denúncias a Alkatiri, o Australian Financial
Review publicou um artigo intitulado Gusmão deve
assumir o controle declarando: Há desilusão
geral sobre a performance de Alkatiri e sua camarilha de velhos
esquerdistas da Fretilin, que não aprenderam nem esqueceram
nada desde seus dias no falido estado socialista de Moçambique
há mais de 30 anos atrás. O artigo concluía
que, pelo contrário, o presidente (Gusmão) era um
herói nacional, um homem modesto e decente que deveria
ser mais do que uma simples referência nessas circunstâncias.
O envolvimento australiano na luta pelo poder era claro. Em
maio de 2003, um artigo na revista australiana Bulletin
comentava: Igualmente fascinante é a disputa diplomática
entre Lisboa e Canberra pela influência no Timor Leste.
Nenhum lado admite estar em batalha, mas é claro que cada
um tem sua própria agenda. Nas sombras da antiga
União Soviética, a rádio do governo português
ruge através da praça principal por alto-falantes
enquanto famílias de velhos oficiais do governo colonial
contam suas pensões de 300 dólares enviadas de Lisboa.
Enquanto a embaixada-fortaleza australiana encontra-se no meio
do caminho ao aeroporto para um acesso fácil caso as coisas
fiquem feias novamente, a de Portugal fica ao lado dos gabinetes
governamentais, onde Alkatiri e sua facção supostamente
lideram o lobby anti-australiano.
Enquanto a União Européia patrocinava a oferta
portuguesa pela supremacia, Canberra contava com Washington, que
estava diretamente envolvida na política de Dili. Em artigo
intitulado Domando a república das bananas: os Estados
Unidos no Timor Leste, Ben Moxham, um pesquisador associado
ao Focus on the Global South (Enfoque no Sul Global),
uma organização de pesquisa e defesa situada em
Bangkok, Tailândia, apontou que organizações
americanas como o National Endowment for Democracy (Fundação
Nacional pela Democracia), o International Republic Institute
(IRI - Instituto Internacional Republicano) e o National
Democratic Institute (Instituto Democrático Nacional) estavam
engajadas em programas de promoção da democracia
no Timor Leste.
Todas essas organizações estavam diretamente
envolvidas em fomentar a pró-norteamericana revolução
colorida na Europa do leste e na Ásia central. Em
particular o IRI (coligado ao partido republicano), vem treinando
os partidos iniciantes nesse negócio. Através de
circunstâncias deliberadas e coincidentes, eles acabaram
por só ajudar a oposição amiga de Washington.
Enquanto o IRI se vê como um auxílio vital
à oposição do país, o partido no poder,
Fretilin, o vê como uma interferência, escreveu
Moxham.
Em 2003, tensões em relação à intromissão
internacional se irromperam quando o governo propôs uma
carta de imigração que barrava cidadãos estrangeiros
de engajarem-se em atividades políticas. A legislação
foi amargamente criticada por partidos de oposição
e várias organizações não-governamentais.
Transformou-se em motivo de uma batalha legal e foi eventualmente
vetada pelo presidente Gusmão. Moxham escreveu: Muitos
a viram (a legislação) como uma resposta direta
às atividades do IRI. A Fretilin até ameaçou
deportar a equipe do IRI sob tal lei depois de o IRI ter patrocinado
um plebiscito que a Fretilin considerou elaborado propositalmente
para a deslegitimar. Uma entrevista com o IRI para este artigo
trouxe nada mais do que comentários off the record (não-registrados),
mas é seguro dizer que eles vêem a Fretilin sob a
névoa paranóica da guerra fria.
Emergência do neo-colonialismo
As atividades de Washington e seu aliado australiano no Timor
Leste eram parte de rivalidades inter-imperialistas que irromperam
em 1990 seguindo o colapso da União Soviética. Em
2002, a luta pela supremacia estava acontecendo em Dili quando
a administração de Bush estava alavancando a gerra
global ao terrorismo. Não surpreendentemente, nos
preparativos para a invasão liderada pelos Estados Unidos
ao Iraque em 2003, as facções políticas no
Timor Leste aliaram-se com seus financiadores internacionais.
A Fretilin ecoou as posições da França e
Alemanha, que publicamente insistiam em dar mais tempo aos inspetores
de armas da ONU, enquanto em fevereiro de 2003, Horta escreveu
um artigo obsceno no New York Times argumentando que a
iminente guerra traria paz e democracia à população
iraquiana.
O governo de Howard juntou-se à invasão ilegal
do Iraque para segurar interesses australianos no Oriente Médio
e para ganhar o apoio de Washington para suas ambições
na região do Pacífico asiático. Em julho
de 2003, apenas quatro meses após a coalition
of the willing (coalisão dos desejosos)ter invadido o Iraque, Canberra fez o mesmo com sua preventiva
intervenção militar. Howard prendia-se à
crise social e política das ilhas Salomão para declarar
um Estado falido e intimidou o governo a permitir
a entrada de 2000 soldados e policiais -predominantemente australianos
- e a autorizar oficiais australianos a controlar as principais
alavancas de poder do Estado na próxima década.
Ao mesmo tempo, a Austrália usou a intervenção
nas ilhas Salomão para intimidar e ameaçar outras
pequenas ilhas-Estados do Pacífico, insistindo em normas
de bom-governo e inserindo burocratas australianos
em altas posições em Fiji, Papua Nova Guiné
e Nauru.
No Timor Leste, no entanto, ao contrário de outros países
do Pacífico, o governo de Howard sofreu uma oposição
determinada e respondeu através do patrocínio a
uma guerra política subterrânea mal disfarçada,
em aliança com Washington, e através de seus procuradores
políticos na oposição anti-governista, contra
Alkatiri e seus apoiadores da Fretilin. As hostilidades à
Fretilin se intensificaram depois que Alkatiri recusou-se a aceitar
empréstimos do Banco Mundial e do Banco de Desenvolvimento
da Ásia e voltou-se, ao invés disso, à China,
Cuba e Brasil para investimentos, ajuda financeira e outras formas
de assistência.
Enquanto seus oponentes australianos continuamente referiam-se
à Fretilin como marxistas, nenhuma das medidas
por ela adotada tem qualquer relação com marxismo
ou socialismo. Um diplomata anônimo recentemente descreveu
o governo de Dili como o melhor bando de neoliberais
que se pode esperar. O alvo real da hostilidade norte-americana
tem sido as relações da Fretilin com seus rivais
econômicos, com Washigton principalmente preocupado com
o crescimente da influência chinesa.
Em setembro de 2003, o programa Dateline intitulado
Presidente do Timor sob cerco, veiculado no canal
australiano SBS, novamente destacou a crescente animosidade a
Alkatiri. João Saldanha, cabeça do grupo de estudos
de orientação americana no Timor Leste, reclamou:
Estamos tentando isolar o Timor Leste do resto do mundo.
Somos um país pequeno, não acho que podemos bancar
isso... Há um desvio deste governo. Há alguma atenção,
não muita à Austrália, aos Estados-Unidos,
ao Japão, mas acho que mais para a China. O ministro
das relações exteriores, Horta, criticou Alkatiri
por rejeitar empréstimos do Banco Mundial, dizendo: Eu
agiria mais depressa para entrar nestas questões que são
potenciais para investidores, privilégios, para que eles
comecem a investir, você sabe.
Os oponentes da Fretilin ofereceram a falsa panacéia
das reformas de mercado. Juntaram-se sob o guarda-chuva de antigos
lutadores da Fretilin, hoje anti-Fretilin, decepcionados com o
fracasso do governo em providenciar o reconhecimento devido por
seus serviços prestados, a juventude desempregada sem perspectiva
de emprego ou futuro, oficiais anteriormente empregados sob a
junta da Indonésia e aldeias desprovidas até mesmo
dos serviços mais básicos de educação
e saúde. A origem muçulmana de Alkatiri e a insistência
da Fretilin em tornar o português a língua nacional
providenciou mais grãos para o moinho da oposição.
No seu discurso de fim de ano em dezembro de 2003, Gusmão
mais uma vez criticou abertamente o governo Fretilin. Desta vez,
ele fez uma jogada para obter poderes adicionais, chamando o estabelecimento
de dois corpos consultivos presidenciais, o Conselho de Estado
e o Conselho Superior de Defesa e Segurança.