Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês,
no dia 29 de Setembro de 2006
A legislação aprovada pelo Parlamento na quarta
e pelo Senado na quinta-feira, que legaliza a política
do governo Bush de torturar e de prender suspeitos de forma arbitrária,
sem julgamento, bem como estabelecer tribunais irregulares para
tratar os prisioneiros de Guantánamo, marca um divisor
de águas nos Estados Unidos.
Pela primeira vez na história norte-americana, o Congresso
e a Casa Branca concordaram em pôr de lado as determinações
da Constituição e da Carta dos Direitos e adotou
formalmente métodos tradicionalmente identificados com
os Estados policiais.
Este projeto de lei é o resultado de um prolongado processo
de decadência da democracia norte-americana, que acompanhou
o imenso crescimento da desigualdade social e intensificou-se
nas eleições fraudadas de 2000. No começo
de dezembro de 2000, na véspera do veredicto da Suprema
Corte dos EUA, que parou a contagem dos votos na Flórida
e que outorgou a presidência a George W. Bush (que havia
perdido os votos populares em todo o país para seu oponente
do Partido Democrata Al Gore), David North, o secretário
nacional do Socialist Equality Party dos EUA e coordenador do
comitê editorial internacional do World Socialist Web
Site, afirmou, num relato sobre a crise das eleições
nos EUA:
a decisão da Suprema Corte revelará se
a classe governante norte-americana está disposta e preparada
a ir quebrando as tradicionais normas burguesas-democráticas
e constitucionais. Estará ela preparada a confirmar a fraude
eleitoral e a supressão dos votos e instalar na Casa Branca
um candidato empossado por meio de métodos grosseiramente
ilegais e anti-democráticos?
Uma parte substancial da burguesia, e talvez até
uma maioria da Suprema Corte dos EUA, está preparada a
fazer justamente isso. As elites dominantes nos Estados Unidos
retiraram de maneira dramática o apoio às tradicionais
formas da democracia burguesa.
A decisão da Corte Suprema e a recusa do Partido Democrata
a opor-se a ela demonstraram que, dentro da elite governante norte-americana,
não sobrou ninguém para defender de direitos democráticos.
O silêncio da elite política governante frente
às inúmeras medidas repressivas decretadas pelo
governo Bush confirmou esta análise.
A Lei de Comissão Militar de 2006 fará muito
mais do que implantar os procedimentos que serão utilizados
para carimbar o encarceramento de prisioneiros na Ilha de Guantánamo
e em outros campos de detenção administrados pelos
EUA em todo o mundo. Ela ataca os direitos de todos os cidadãos
americanos, bem como os de todos os residentes legais e outros
imigrantes, que estarão agora sujeitos à ameaça
de prisão e de prisão perpétua, com base
unicamente nas ordens do presidente, sem possibilidade de recurso
judicial.
Na próxima sexta-feira, o projeto de lei voltará
ao Parlamento para a votação final, a fim de conciliar
diferenças menores de linguagem entre as duas versões.
Provavelmente, no final da próxima semana, o presidente
Bush assinará a lei.
De acordo com esta lei, o presidente pode considerar qualquer
pessoa como um combatente inimigo ilegal, a ser investigada
por agentes de inteligência e presa por tempo indeterminado,
sem ter direito a qualquer recurso legal. A lei considera um combatente
inimigo ilegal aquele indivíduo envolvido em
hostilidades contra os Estados Unidos, que não seja
um membro regular de um exército oponente.
Dada a indeterminação da lei em relação
ao que significam as hostilidades, passa a não
haver mais qualquer distinção legal entre um verdadeiro
terrorista da Al Qaeda, um imigrante árabe que faz uma
doação de caridade em socorro ao Líbano,
e um estudante universitário americano que se confronta
com a polícia durante uma manifestação de
protesto contra a guerra no Iraque.
A legislação foi aprovada no Parlamento na quarta-feira,
com o apoio de 34 Democratas, que se juntaram a 219 Republicanos
na desequilibrada votação, que resultou em 253 votos
a favor e 168 contra. O Senado aprovou o projeto de lei no dia
seguinte, com uma margem ainda maior: 65 a favor e 34 contra,
com 12 Democratas juntando-se a um bloco quase unanimemente Republicano.
Antes de votar no projeto de lei completo, senadores derrotaram
quatro emendas: da restauração dos direitos de hábeas
corpus para prisioneiros, derrotada por 51 a 48; do aumento da
vigilância pelo Congresso sobre o programa de tortura da
CIA, que perdeu por 53 a 46; da imposição de um
limite de cinco anos às comissões militares, que
perdeu por 52 a 47; da proibição às específicas
técnicas de tortura mencionadas, que perdeu por uma margem
similar.
A aprovação da lei atendeu todas as expectativas
do governo Bush, exceto a proibição explícita
da Convenção de Genebra. A Casa Branca concordou
em abrandar levemente a terminologia utilizada, que garante ao
presidente o poder de interpretar a Convenção
de Genebra de modo a permitir formas menores de tortura.
As principais mudanças criadas pela lei são:
* Autorizar o presidente a estabelecer comissões militares
para processar prisioneiros sob custódia dos EUA, tanto
fora quanto dentro do país;
* Dar às comissões militares o poder de determinar
as punições, inclusive a pena de morte;
* Aceitar provas baseadas em rumores e declarações
de testemunhas coagidas;
* Permitir o uso de testemunhos obtidos através de tratamento
cruel, inumano ou degradante se a tortura tiver ocorrido
antes de 30 de dezembro de 2005, quando a mesma foi proibida pelo
Congresso;
* Permitir a promotores públicos esconder do réu
as provas entregues a um júri, caso estas envolvam informação
confidencial, além de substituir resumos não-confidenciais;
* Tirar dos detidos o direito de pedir hábeas corpus.
Violações da Constituição
Muitas das determinações desta legislação
são violações flagrantes da Constituição
dos EUA. Isso foi reconhecido pelo Senador Republicano Arlen Specter,
chefe do Comitê Judiciário que, apesar de tudo, votou
a favor do projeto de lei, depois que sua emenda pela manutenção
dos direitos de hábeas corpus foi derrotada.
Specter afirmou que, ao recusarem-se os direitos de hábeas
corpus aos suspeitos detidos durante a guerra ao terror,
o projeto de lei faria com que nossa civilizada sociedade
retrocedesse uns 900 anos, ou seja, voltasse à época
anterior à adoção da Carta Magna - a primeira
elaboração dos princípios democráticos
sob a lei inglesa.
Ele considerou que toda essa controvérsia se reduz
à posição que o Congresso assumirá:
se ele aceitará legislar infringindo um direito que está
explícito no próprio documento da Constituição,
direito este que tem sido aplicado a estrangeiros pela Suprema
Corte dos Estados Unidos.
O Artigo I, Seção 9 da Constituição
dos EUA declara: o direito do pedido de hábeas corpus
não deve ser suspenso, exceto em casos de rebelião
ou invasão que ponham em risco a segurança pública.
Ninguém no governo Bush ou na liderança Republicana
do Congresso alegou que os ataques terroristas de 11 de setembro
de 2001 constituíram uma invasão desse tipo. Eles
simplesmente ignoram o texto da Constituição.
As outras determinações do projeto de lei também
violam a sexta emenda da Constituição, que garante
um julgamento justo, baseado na amarga experiência dos colonos
com as injustiças da Coroa Britânica. A emenda diz:
em todos os processos criminais, o acusado deve desfrutar
do direito de julgamento rápido e público, por um
júri imparcial de estado e de distrito onde o crime foi
supostamente cometido, e de ser informado da natureza e da causa
da sua acusação; de ser confrontado com as testemunhas
contrárias a ele; ao estabelecimento de um processo compulsório
que possibilite que ele obtenha testemunhas a seu favor, e de
ter assistência de um conselheiro durante a defesa.
Prisioneiros em Guantánamo e em outros campos de concentração
americanos serão julgados por jurados oficiais militares,
podendo não ter o direito de conhecer as provas e testemunhos
contrários a eles. A atuação de seus advogados
será prejudicada por estarem diretamente vigiados pelos
militares, sob a autoridade do comandante-em-chefe.
Do ponto-de-vista do governo Bush e da liderança Republicana
no Congresso, estas grosseiras violações constitucionais
não são uma necessidade lamentável, mas uma
conquista. A utilização do terrorismo para gerar
pânico na população, não tem um objetivo
de curto prazo, como uma vitória nas próximas eleições,
mas principalmente o de construir as bases para o exercício
autoritário do poder nos Estados Unidos.
O papel dos Democratas
As votações em quatro emendas na quinta-feira
permitiram que os senadores Democratas aparecessem como defensores
das liberdades civis e constitucionais. O Chefe do Comitê
Judiciário, Patrick Leahy, por exemplo, denunciou a eliminação
da proteção do hábeas corpus para 12 milhões
de imigrantes residentes, bem como para imigrantes ilegais. Ele
disse que esta lei transforma em piada a retórica
arrogante de Bush e Cheney sobre a exportação da
liberdade pelo mundo, acrescentando: Que hipocrisia!.
O Senador de Michigan, Carl Levin, afirmou: a deliberação
sobre o hábeas corpus neste projeto de lei agride tanto
os direitos constitucionais quanto as ações em Abu
Ghraib, Guantánamo e prisões secretas que abusaram
fisicamente dos prisioneiros.
Mas Leahy e Levin não explicaram por que eles e outros
líderes Democratas recusaram-se a bloquear a votação.
Por que eles não boicotaram a votação, uma
vez que para isso são necessários apenas 40 votos?
Na quarta-feira à noite, o Líder da Minoria no Senado,
Harry Reid, firmou um acordo com o Líder da Maioria, Bill
Frist, para permitir votações nas quatro emendas
em troca da garantia de que os Democratas não bloqueariam
a votação - apesar dos Democratas já terem
boicotado casos bem menos importantes, como a definição
do número de juízes das cortes de apelações
federais.
Em seu discurso no Senado, Leahy declarou: nós
estamos prestes a colocar a mais escura mancha na consciência
da nação. Isto é um grande erro... é
inconstitucional. É não-americano. Parece
que para os Democratas o erro não é tão grande
e a mancha não é tão escura, pois isso não
foi suficiente para fazer com que eles se opusessem efetivamente
ao governo Bush, faltando apenas um mês para as eleições.
Pelo contrário, Democrata após Democrata, após
toda a encenação, ficaram do lado do governo Bush.
Além dos já reconhecidamente conservadores, os 12
senadores Democratas que votaram a favor da versão final
da lei são, entre outros: Joseph Lieberman, de Connecticut;
liberais enfrentando competições para a reeleição,
como Robert Menendez, de Nova Jersey; Debbie Stabenow, de Michigan;
e Bill Nelson, da Flórida.
No Parlamento, dos 34 Democratas de direita estão alguns
do sul, vários membros do Congressional Black Caucus e
dois congressistas que são candidatos Democratas para o
senado dos EUA nas eleições do próximo mês
- Harold Ford, do Tennessee, e Sherrod Brown, de Ohio.
O liberal Brown procurou apelar ao sentimento anti-guerra existente
no seu estado..Ohio foi um dos estados que mais perdeu jovens,
homens e mulheres no Iraque. Uma única unidade da Guarda
Nacional localizada no subúrbio de Brook Park, em Cleveland,
perdeu vinte e quatro pessoas na guerra. Numa entrevista para
o MSNBC.com, Brown disse que os prisioneiros não
são soldados, nem combatentes representando um governo,
eles são terroristas.
Certamente, o objetivo de um julgamento é o de determinar,
baseado em provas, se os acusados são realmente culpados.
Brown, assim como o governo Bush, supõe que todos os prisioneiros
da CIA e dos militares dos EUA são culpados, e usa essa
presunção de culpa para justificar os procedimentos
arbitrários.
Brown refutou as críticas à sua cumplicidade
do governo Bush, dizendo: algumas pessoas simplesmente não
aceitam que eu concorde com George Bush sobre coisa alguma.
O editorial do New York Times lamenta antecipadamente
a aprovação do projeto de lei, observando que o
ano de 2006 vai afundar na história, por meio da aprovação
de uma lei tirânica que representará um dos
pontos fracos da democracia americana, a versão da nossa
geração da Lei de Estrangeiros e da Lei da Sublevação.
Mas o jornal não tentou dar uma explicação
séria para seu ataque à tirania, nem sugeriu um
fundamento para lutar contra ela.
Nem poderia, uma vez que o Times, assim como toda a
mídia da elite governante, e ambos os partidos da elite
corporativa norte-americana, apóia a assim chamada guerra
ao terror, que é um pretexto político para
o uso do militarismo e da guerra na busca dos objetivos globais
do imperialismo dos EUA. Uma política externa de agressão
militar é, afinal de contas, incompatível com a
democracia no interior do país.
A luta contra métodos autoritários de governo
deve ser levantada pela classe trabalhadora, a única força
social dentro da sociedade norte-americana que possui uma profunda
ligação com a defesa dos direitos democráticos.
O pré-requisito para esta luta é o rompimento com
os dois partidos da elite do governo norte-americano e a construção
de um movimento socialista de massas da classe trabalhadora.