Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês,
no dia 3 de novembro de 2006.
A habilidade do primeiro-ministro britânico, Tony Blair,
em impedir o pedido de um inquérito sobre a guerra do Iraque
demonstra a incapacidade do parlamento em exercer o mínimo
controle genuinamente democrático.
Há mais de dois anos a guerra do Iraque vem sendo debatida
na Câmara dos Comuns. Àquele tempo, a forte oposição
à invasão liderada pelos EUA tornou-se ainda mais
acirrada - estimulada pela situação catastrófica
criada pela ocupação. Grande parte do eleitorado
britânico acredita que Blair arrastou o país a uma
guerra baseada em mentiras e que, por isso, as tropas britânicas
devem ser retiradas.
No dia 1 de novembro, o governo de Blair conseguiu vetar, por
298 votos a 273, uma moção que exigia o início
das investigações sobre as circunstâncias
que envolvem a invasão do Iraque.
As circunstâncias que permearam a votação
são politicamente instrutivas. A idéia da moção
foi levantada por dois pequenos partidos nacionalistas, o Scottish
National Party e o Plaid Cymru, e propunha somente um comitê
formado por líderes de sete partidos no parlamento com
a finalidade de rever "as responsabilidades do governo em
relação à guerra do Iraque".
A moção foi apoiada por uma grande parte do Liberal
Democrat Party, que possui 63 membros no parlamento e que se opôs
à guerra do Iraque. Mas a derrota de Blair somente passou
a se tornar possível a partir da adesão do Conservative
Party. Até agora, os conservadores vinham colaborando com
Blair em relação ao Iraque - garantindo a maioria
do governo mesmo diante de uma forte rebelião causada pelas
medidas provisórias emitidas pelo Labour Party.
A decisão do Partido Conservador [Tory] de endossar
a moção não representa uma tentativa de explorar
o sentimento popular contra a guerra. A atitude deste partido
frente à opinião pública é a mesma
do governo. Ao invés disso, a mudança da posição
do Tory foi motivada pela preocupação da burguesia
a respeito da grave crise que a guerra do Iraque produziu em Londres.
Militares graduados, como o comandante do exército,
general Richard Dannart, assim como diversos intelectuais e analistas,
têm declarado nas últimas semanas que a ocupação
do Iraque é uma política externa desastrosa, pior
que a crise de Suez em 1956. Nos EUA, onde a maioria do eleitorado
tem uma posição contrária à guerra,
o debate sobre o Iraque dominou a campanha eleitoral para o Congresso.
Setores significativos das elites norte-americana e britânica
estão inquietos diante da degradação da situação
da ocupação no Iraque, que começa a ameaçar
suas grandes ambições geopolíticas de controlar
o Oriente Médio e outras regiões.
Para estes setores, uma investigação como esta
proposta pelo parlamento poderia servir como um meio de "corrigir"
as distorções existentes no interior da estratégia
neocolonial. Em particular, poderia procurar aproximar setores
da burguesia que têm críticas quanto às relações
do governo Blair com os EUA.
O líder do Partido Liberal-Democrata, Menzies Campbell,
defendeu a moção, perguntando durante o debate parlamentar:
"não seria agora a hora de colocar em prática
uma estratégia britânica baseada em prioridades britânicas
e não numa estratégia que dependa do resultado das
eleições norte-americanas?"
Entretanto, os Torys estão desmoralizados devido a sua
própria atuação no Iraque e a sua excessiva
preocupação de que a investigação
poderia dificultar a continuidade da ocupação do
Iraque, prejudicando, assim, os interesses do imperialismo britânico.
Por isso, eles propõem que o inquérito seja realizado
dentro dos próximos doze meses, consistindo em audiências
com ex-militares. Os conservadores somente passaram a apoiar a
moção depois que o governo se recusou a aprovar
qualquer investigação.
Apesar dessa relutância, a manobra dos Torys serviu para
desmascarar qualquer pretensão do Parliamentary Labour
Party em se opor ao governo. Somente doze membros do parlamento
pertencentes ao Labour, assim como Clare Short, que no mês
passado rompeu com o partido, votaram contra o governo. Isso não
é nem metade do número de membros do Grupo de Campanha
Socialista do Labour Party, que constitui a ala esquerda do partido,
cujo presidente, John McDonnell, anunciou que se candidatará
a líder do Labour quando Blair finalmente pedir demissão.
O nível de degeneração desta dita "esquerda"
representada pelo Labour Party pode ser observado na sua atitude
diante da guerra de 2003. No dia 18 de março daquele ano,
139 dissidentes do Labour Party votaram contra a invasão.
Mas, ao iniciar a guerra, a grande maioria desses dissidentes
imediatamente se alinhou. No dia 4 de junho do mesmo ano, somente
11 membros do Labour apoiaram a moção dos liberal-democratas
que exigia uma investigação sobre a suposta existência
de armas de destruição em massa no Iraque.
Nos três anos que se passaram nada mudou na composição
de forças políticas do Labour Party. Um pequeno
número de parlamentares do partido se limita a registrar
o seu protesto formal, enquanto os outros justificam seu apoio
a Blair afirmando que eles "não poderiam" votar
com os torys ou fazer qualquer coisa que colocasse as tropas britânicas
em risco.
Tais argumentos são grotescos. A esquerda do Labour
não teve nenhuma dificuldade em aceitar as mentiras do
governo e os seus ataques aos direitos democráticos, em
aceitar uma guerra que custou centenas de milhares de vidas, incluindo
inúmeros soldados britânicos.
A incapacidade do parlamento em discutir a questão do
Iraque motivou o colunista político do Guardian, Simon
Jenkins, a observar que "essa Câmara dos Comuns é
o presente de Deus para a ditadura". O parlamento abriu mão
de sua "função democrática", continuou
ele, fazendo com que os parlamentares que se opunham fossem "incapazes
de fazer o mínimo que se espera numa democracia, ou seja,
disputar o executivo".
Mas como essa situação veio à tona? Jenkins
responsabiliza a falência dos partidos de oposição,
que não conseguem obrigar o governo a prestar contas, declarando
que "a Câmara dos Comuns representa atualmente pouco
mais que um colégio eleitoral para o primeiro-ministro".
Ele insiste que o parlamento possui um poder que não utiliza,
explicando: "não há nada que possa impedir
os membros do parlamento de discutirem aquilo que quiserem. Nada
pode impedir a criação de um grande comitê
para investigar a guerra. Ele pode exigir "documentos"
e intimar qualquer pessoa que achar necessário. Mesmo se
o comitê tiver receio de agir, o parlamento é soberano.
Não é necessário pedir permissão ao
governo para realizar investigações".
Aqui existe uma confusão. Quem deveria fazer isso?
Jenkins, de fato, repreende a oposição Tory -
o tradicional partido das grandes empresas - por não investigar
o governo do Labour Party. Mas a democracia parlamentar foi quem,
na realidade, escancarou muito da situação atual
pelo fato de que - apesar de seus desacordos táticos -
todos os partidos maiores concordam com o princípio do
militarismo contra a reação social. Todos eles têm
uma base social de apoio cada vez mais estreita, ancorada apenas
nos setores mais privilegiados da população.
A transformação do Labour Party num instrumento
da oligarquia financeira é fundamental para este processo
de destruição da democracia.
A extensão dos direitos democráticos para a classe
trabalhadora foi produto da luta de classes, ou seja, da ação
política das massas que culminou no início do século
vinte com a formação do Labour Party, que passou
a ser o representante político dos sindicatos. A degeneração
de tal partido e dos próprios sindicatos significa que
o governo não expressa minimamente a visão política
e os interesses sociais da classe trabalhadora. Ao invés
disso, a intenção do governo é impedir qualquer
interferência popular por meio de políticas que são
decididas nas salas fechadas das grandes empresas, que se opõe
fundamentalmente aos interesses da maioria da população.
No final das contas, o declínio da democracia parlamentar
é uma expressão de agudos e irreconciliáveis
antagonismos de classe existentes na sociedade. É impossível
assegurar um mandato democrático por meio de guerras e
conquistas coloniais, sustentadas através da dilaceração
de programas sociais e do empobrecimento da grande maioria da
população. As políticas oficiais se transformaram
numa conspiração contra os direitos sociais e democráticos
das massas.
A incapacidade da burguesia de examinar de maneira franca uma
questão de importância estratégica como a
guerra do Iraque está diretamente relacionada com a necessidade
de controlar a revolta da classe trabalhadora. É isso o
que justifica a paralisia política descrita por Jenkins
- algo altamente desestabilizador para a elite dominante.
Mesmo se o desastre do Iraque pudesse finalmente impulsionar
um movimento de setores da elite dominante contra o governo Blair
- algo que não deve ser descartado - nada de progressivo
poderia resultar disso.
Agora, tudo depende da mobilização independente
dos trabalhadores, da juventude e dos estudantes contra o governo
do Labour Party e todos os representantes do grande capital. No
centro dessa movimentação estará a construção
de um novo e legítimo partido socialista.