Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês,
no dia 28 de outubro de 2006.
Em seu famoso ensaio O 18 de Brumário de Luis
Bonaparte, Karl Marx descreve o modo como os homens, quando
caminham para um futuro incerto, procuram se acostumar às
tradições do passado. Quando estão ocupados
em revolucionar as coisas e criar uma sociedade superior, eles
invocam os espíritos dos heróis do passado. Quando
o desenvolvimento social se move em sentido inverso, quando a
sociedade retrocede, invocar o passado se transforma numa farsa.
O que ocorreu na Hungria na semana passada em conseqüência
do 50º aniversário do levante dos trabalhadores, em
1956, pode ser descrito somente como a paródia de uma farsa.
A camarilha da nova elite dominante lançou-se contra os
insurgentes de 1956, fazendo-os em pedaços.
Os conflitos que ocorreram nas proximidades das cerimônias
oficiais - insultos mútuos, intervenções
policiais e batalhas de rua - são a expressão de
uma divisão profunda na população húngara,
que necessita urgentemente de uma solução progressista.
A falta de compreensão histórica, tão evidente
no dia das comemorações, é em si um grande
obstáculo para tal solução.
As cerimônias oficiais foram organizadas pela coligação
socialista-liberal do governo liderado pelo primeiro-ministro
Ferenc Gyurcsany. Gyurcsany é membro do Partido Socialista
[MSZP] - sucessor da organização stalinista chamada
Partido dos Trabalhadores Húngaros [MDP], cuja manutenção
no poder foi garantida por meio da sangrenta repressão
do levante dos trabalhadores em 1956, por meio de tanques e tropas
soviéticas.
Gyurcsany convidou vinte líderes de estado europeus
para a comemoração na Praça Kossuth, que
fica em frente ao parlamento húngaro. Na noite anterior,
a praça havia sido evacuada pela polícia que retirou
os manifestantes contrários ao governo, organizados e liderados
por forças da direita.
A União Européia e a OTAN também enviaram
seus mais graduados representantes para a cerimônia. Eles
comemoraram a revolução de 1956 como uma luta por
liberdade e democracia, cujos objetivos teriam sido realizados
agora pela aprovação de uma constituição
burguesa, uma economia de livre mercado e a restauração
da propriedade privada.
Essa é uma distorção completa dos reais
objetivos daquele levante. Os revolucionários de 1956,
a maioria deles operários fabris, não desejava estabelecer
o regime capitalista na Hungria. Em toda a história, a
burguesia húngara nunca desenvolveu formas democráticas
de governo. Após o colapso da monarquia Habsburgo, a burguesia
húngara tomou o poder em 1920 derrubando violentamente
o governo soviético que havia tomado o poder um ano antes.
A partir daí, este grupo permaneceu no poder durante vinte
e cinco anos, por meio de medidas extremamente autoritárias,
inicialmente sob a ditadura de Miklos Horthy, estabelecendo, mais
tarde, estreita colaboração com os nazistas alemães.
O levante de 1956, dirigido contra a ditadura de Stalin, tinha
como objetivo estabelecer a democracia dos trabalhadores. Os trabalhadores
envolvidos tinham total clareza de seus objetivos: buscar o controle
democrático em todas as esferas da sociedade, inclusive
a economia. Seu objetivo nunca foi a devolução da
propriedade das fábricas aos seus antigos donos, os burgueses.
A criação de conselhos operários e o significativo
papel desempenhado por eles na revolta comprova esta afirmação.
Não foi a revolução, mas sim a sua repressão
sangrenta o fator decisivo na abertura do caminho para o retorno
às relações capitalistas - um processo que
foi plenamente realizado somente quatro décadas depois.
A iniciativa para tal desenvolvimento não se originou da
rebelião dos trabalhadores em 1956, mas sim da burocracia
stalinista, que, sob condições de profunda crise
política, só podia garantir seus privilégios
por meio da introdução da propriedade capitalista.
A carreira de 45 anos de Ferenc Gyurcsany se desenvolveu exemplarmente
nesse sentido. Ele começou como um alto funcionário
no movimento da juventude stalinista, enriqueceu por meio das
privatizações realizadas durante a década
de 1990, e como primeiro-ministro está realizando um programa
de drásticos cortes, nos moldes daqueles realizados pela
União Européia e pelos bancos internacionais. Apesar
disso, ele continua a se considerar um socialista.
Por isso, não é nada surpreendente que os líderes
de governos europeus estivessem prontos a reconhecer as declarações
de Gyurcsany a respeito da herança de 1956, e aclamá-lo
tão calorosamente.
As cerimônias foram boicotadas pela oposição
húngara, liderada pelo partido conservador nacionalista
Fidesz [a União Cívica Húngara]. O Fidesz
reivindica a herança de 1956, descrevendo o episódio
como um movimento nacionalista e anticomunista. Fazendo isso,
o partido simplesmente repete as mentiras espalhadas pelos stalinistas
em 1956. A burocracia soviética, seus seguidores na Europa
do Leste e as lideranças dos Partidos Comunistas de todo
o mundo, condenaram os revolucionários de 1956 como sendo
de direita e fascistas, justificando assim a brutal repressão
ao movimento.
O Fidesz se originou a partir da Aliança de Jovens Democratas,
criada por um grupo de jovens intelectuais, em 1988, no final
da era stalinista. Eles exigiam eleições livres.
Hoje, o maior partido de oposição da Hungria representa,
acima de tudo, setores do campo e da classe média que se
opuseram ao stalinismo porque ele os impediu de obter o mesmo
nível de poder e riqueza que seus semelhantes no Oeste.
Eles observam, com inveja, os antigos funcionários stalinistas
que se tornaram multimilionários. Isto é o que estimula
seu amargo ódio contra Gyurcsany e o MSZP.
O Fidesz representa uma mistura ideológica que combina
o anticomunismo, a glorificação da propriedade privada,
por um lado, com o nacionalismo e a demagogia social, que se opõe
a União Européia e ao capital internacional, por
outro. O líder do Fidesz, Viktor Orban, é um talentoso
demagogo e mostra alguma genialidade quando manipula este contraditório
quadro.
Apesar de ser oficialmente filiado ao Partido do Povo Europeu,
a aliança européia de cristãos e partidos
conservadores, o Fidesz é muito próximo à
extrema direita. Isso ficou claro em diversas manifestações
do Fidesz, quando seus militantes utilizando símbolos fascistas
e gritavam palavras-de-ordem anti-semitas.
Em termos de conteúdo programático, há
poucas diferenças entre Fidesz e MSZP. Na condição
de líder do governo entre 1998 e 2002, Orban manteve a
austeridade política de seu antecessor e preparou as condições
para introduzir o país na União Européia.
Sob sua liderança, a Hungria também aderiu à
OTAN.
O principal campo de atuação do governo Orban,
todavia, consistiu em distribuir lucrativos postos aos seus aliados.
Seu regime adotou crescentes medidas autoritárias e desmoronou
numa teia de escândalos de corrupção.
Desde setembro, Orban tem buscado a revanche de sua derrota
em 2002. A publicação de um discurso interno de
Gyurcsany, no qual ele prometeu ser rígido, aplicar políticas
austeras e admitiu que iludia os eleitores de manhã,
de tarde e de noite, desencadeou uma onda de indignação,
da qual o Fidesz vem tentando tirar proveito - com a ajuda da
extrema direita.
Em setembro, depois das manifestações que desencadearam
violentos enfrentamentos, o Fidesz organizou protestos em frente
ao parlamento, exigindo a derrubada do governo. De acordo com
os planos do Fidesz, o aniversário da revolução
húngara deveria representar o ápice destes protestos.
O governo reagiu evacuando violentamente a praça em
frente ao prédio do parlamento e reprimindo de maneira
igualmente violente os manifestantes no centro da cidade. De acordo
com as estatísticas da polícia, cerca de 130 pessoas
ficaram feridas, incluindo dez policiais. Os agitadores da direita
se preocuparam em aparecer como seguidores da tradição
dos trabalhadores rebelados em 1956, e até mesmo roubaram
um tanque soviético de um museu, desfilando com ele pelas
ruas, num espetáculo especialmente voltado à imprensa
internacional ali reunida.
De acordo com a agência de imprensa húngara MTI,
o Fidesz conseguiu reunir cerca de 100.000 pessoas na manifestação
organizada para comemorar o 50º aniversário da revolução.
Até o momento, Gyurcsany resistiu a renunciar ao governo.
Ele sabe que tem o apoio de governos e de empresários do
ocidente, que hoje depositam mais confiança no milionário
Gyurcsany do que no inescrupuloso demagogo Orban. O líder
da fração socialista parlamentar, Ildiko Lendvai,
argumentou que, atualmente, qualquer mudança no governo
poderia abalar a confiança de investidores. A coalizão
liberal do livre mercado, parceira do MSZE, manifestou
sua total confiança em Gyurcsany.
Todavia, Orban está determinado a continuar sua campanha
para desestabilizar o governo. Seu próximo passo é
realizar um referendum, constitucionalmente questionável,
em relação à reforma do governo. Ele tem
a intenção de explorar a indignação
generalizada existente com relação à austeridade
do programa seguido por Gyurcsany. O Fidesz avançou consideravelmente
nas eleições regionais ocorridas no dia 1 de outubro,
ficando em maioria em dezoito das dezenove regiões húngaras.
O Fidesz e seus apoiadores de extrema direita são capazes
de exercer tal influencia somente por causa da falta de uma verdadeira
alternativa socialista ao MSZP. A repressão que a burocracia
stalinista exerceu durante décadas sobre a classe trabalhadora
e o cinismo com o qual os auto-intitulados esquerdistas
do MSZP defenderam os interesses do capital internacional criaram
um vácuo político que permitiu o crescimento dos
demagogos de direita do Fidesz.
A tarefa da classe trabalhadora húngara é defender
a herança da revolução de 1956 contra as
arrogantes afirmações do MSZP e do Fidesz. O levante
de 1956 representou uma rebelião de trabalhadores contra
a opressão stalinista, não um movimento nacionalista
pela restauração do capitalismo. Dessa forma, era
uma fonte de inspiração para os trabalhadores de
todo o mundo. Vários membros dos Partidos Comunistas, que
tinham ainda ideais socialistas, romperam com o stalinismo e ingressaram
no movimento trotskista, por considerarem corretas as posições
do movimento trotskista mundial, do Comitê Internacional
da Quarta Internacional, a respeito da selvagem repressão
à revolução de 1956.
Depois de várias décadas, tanto o stalinismo
como a burguesia se esforçaram para ocultar da classe trabalhadora
a sua própria história - a história da revolução
húngara e a tradição anterior dos movimentos
socialista e comunista. Toda uma geração de socialistas
revolucionários foi eliminada pelos expurgos stalinistas
na década de 30, incluindo quase todos os líderes
da Revolução Russa e vários comunistas húngaros.
O líder da Oposição de Esquerda ao stalinismo
e fundador da Quarta Internacional, Leon Trotski, foi morto por
um assassino stalinista, em 1940.
Atualmente, mais do que nunca, o conhecimento desta história
é uma necessidade urgente. Somente a perspectiva defendida
por Leon Trotski e pela Quarta Internacional - a unificação
internacional da classe trabalhadora na luta por uma sociedade
socialista - oferece uma alternativa para a miséria e a
reação política que resultou da restauração
do capitalismo na Hungria e no resto da Europa oriental.