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Hungria: a controvérsia sobre a herança da revolução de 1956

Por Peter Schwarz
1 Noviembre 2006

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Este artigo foi publicado no WSWS, originalmente em inglês, no dia 28 de outubro de 2006.

Em seu famoso ensaio “O 18 de Brumário de Luis Bonaparte”, Karl Marx descreve o modo como os homens, quando caminham para um futuro incerto, procuram se acostumar às tradições do passado. Quando estão ocupados em revolucionar as coisas e criar uma sociedade superior, eles invocam os espíritos dos heróis do passado. Quando o desenvolvimento social se move em sentido inverso, quando a sociedade retrocede, invocar o passado se transforma numa farsa.

O que ocorreu na Hungria na semana passada em conseqüência do 50º aniversário do levante dos trabalhadores, em 1956, pode ser descrito somente como a paródia de uma farsa. A camarilha da nova elite dominante lançou-se contra os insurgentes de 1956, fazendo-os em pedaços.

Os conflitos que ocorreram nas proximidades das cerimônias oficiais - insultos mútuos, intervenções policiais e batalhas de rua - são a expressão de uma divisão profunda na população húngara, que necessita urgentemente de uma solução progressista. A falta de compreensão histórica, tão evidente no dia das comemorações, é em si um grande obstáculo para tal solução.

As cerimônias oficiais foram organizadas pela coligação socialista-liberal do governo liderado pelo primeiro-ministro Ferenc Gyurcsany. Gyurcsany é membro do Partido Socialista [MSZP] - sucessor da organização stalinista chamada Partido dos Trabalhadores Húngaros [MDP], cuja manutenção no poder foi garantida por meio da sangrenta repressão do levante dos trabalhadores em 1956, por meio de tanques e tropas soviéticas.

Gyurcsany convidou vinte líderes de estado europeus para a comemoração na Praça Kossuth, que fica em frente ao parlamento húngaro. Na noite anterior, a praça havia sido evacuada pela polícia que retirou os manifestantes contrários ao governo, organizados e liderados por forças da direita.

A União Européia e a OTAN também enviaram seus mais graduados representantes para a cerimônia. Eles comemoraram a revolução de 1956 como uma luta por liberdade e democracia, cujos objetivos teriam sido realizados agora pela aprovação de uma constituição burguesa, uma economia de “livre mercado” e a restauração da propriedade privada.

Essa é uma distorção completa dos reais objetivos daquele levante. Os revolucionários de 1956, a maioria deles operários fabris, não desejava estabelecer o regime capitalista na Hungria. Em toda a história, a burguesia húngara nunca desenvolveu formas democráticas de governo. Após o colapso da monarquia Habsburgo, a burguesia húngara tomou o poder em 1920 derrubando violentamente o governo soviético que havia tomado o poder um ano antes. A partir daí, este grupo permaneceu no poder durante vinte e cinco anos, por meio de medidas extremamente autoritárias, inicialmente sob a ditadura de Miklos Horthy, estabelecendo, mais tarde, estreita colaboração com os nazistas alemães.

O levante de 1956, dirigido contra a ditadura de Stalin, tinha como objetivo estabelecer a democracia dos trabalhadores. Os trabalhadores envolvidos tinham total clareza de seus objetivos: buscar o controle democrático em todas as esferas da sociedade, inclusive a economia. Seu objetivo nunca foi a devolução da propriedade das fábricas aos seus antigos donos, os burgueses. A criação de conselhos operários e o significativo papel desempenhado por eles na revolta comprova esta afirmação.

Não foi a revolução, mas sim a sua repressão sangrenta o fator decisivo na abertura do caminho para o retorno às relações capitalistas - um processo que foi plenamente realizado somente quatro décadas depois. A iniciativa para tal desenvolvimento não se originou da rebelião dos trabalhadores em 1956, mas sim da burocracia stalinista, que, sob condições de profunda crise política, só podia garantir seus privilégios por meio da introdução da propriedade capitalista.

A carreira de 45 anos de Ferenc Gyurcsany se desenvolveu exemplarmente nesse sentido. Ele começou como um alto funcionário no movimento da juventude stalinista, enriqueceu por meio das privatizações realizadas durante a década de 1990, e como primeiro-ministro está realizando um programa de drásticos cortes, nos moldes daqueles realizados pela União Européia e pelos bancos internacionais. Apesar disso, ele continua a se considerar um “socialista”.

Por isso, não é nada surpreendente que os líderes de governos europeus estivessem prontos a reconhecer as declarações de Gyurcsany a respeito da herança de 1956, e aclamá-lo tão calorosamente.

As cerimônias foram boicotadas pela oposição húngara, liderada pelo partido conservador nacionalista Fidesz [a União Cívica Húngara]. O Fidesz reivindica a herança de 1956, descrevendo o episódio como um movimento nacionalista e anticomunista. Fazendo isso, o partido simplesmente repete as mentiras espalhadas pelos stalinistas em 1956. A burocracia soviética, seus seguidores na Europa do Leste e as lideranças dos Partidos Comunistas de todo o mundo, condenaram os revolucionários de 1956 como sendo de direita e fascistas, justificando assim a brutal repressão ao movimento.

O Fidesz se originou a partir da Aliança de Jovens Democratas, criada por um grupo de jovens intelectuais, em 1988, no final da era stalinista. Eles exigiam eleições livres. Hoje, o maior partido de oposição da Hungria representa, acima de tudo, setores do campo e da classe média que se opuseram ao stalinismo porque ele os impediu de obter o mesmo nível de poder e riqueza que seus semelhantes no Oeste. Eles observam, com inveja, os antigos funcionários stalinistas que se tornaram multimilionários. Isto é o que estimula seu amargo ódio contra Gyurcsany e o MSZP.

O Fidesz representa uma mistura ideológica que combina o anticomunismo, a glorificação da propriedade privada, por um lado, com o nacionalismo e a demagogia social, que se opõe a União Européia e ao capital internacional, por outro. O líder do Fidesz, Viktor Orban, é um talentoso demagogo e mostra alguma genialidade quando manipula este contraditório quadro.

Apesar de ser oficialmente filiado ao Partido do Povo Europeu, a aliança européia de cristãos e partidos conservadores, o Fidesz é muito próximo à extrema direita. Isso ficou claro em diversas manifestações do Fidesz, quando seus militantes utilizando símbolos fascistas e gritavam palavras-de-ordem anti-semitas.

Em termos de conteúdo programático, há poucas diferenças entre Fidesz e MSZP. Na condição de líder do governo entre 1998 e 2002, Orban manteve a austeridade política de seu antecessor e preparou as condições para introduzir o país na União Européia. Sob sua liderança, a Hungria também aderiu à OTAN.

O principal campo de atuação do governo Orban, todavia, consistiu em distribuir lucrativos postos aos seus aliados. Seu regime adotou crescentes medidas autoritárias e desmoronou numa teia de escândalos de corrupção.

Desde setembro, Orban tem buscado a revanche de sua derrota em 2002. A publicação de um discurso interno de Gyurcsany, no qual ele prometeu ser rígido, aplicar políticas austeras e admitiu que iludia os eleitores “de manhã, de tarde e de noite”, desencadeou uma onda de indignação, da qual o Fidesz vem tentando tirar proveito - com a ajuda da extrema direita.

Em setembro, depois das manifestações que desencadearam violentos enfrentamentos, o Fidesz organizou protestos em frente ao parlamento, exigindo a derrubada do governo. De acordo com os planos do Fidesz, o aniversário da revolução húngara deveria representar o ápice destes protestos.

O governo reagiu evacuando violentamente a praça em frente ao prédio do parlamento e reprimindo de maneira igualmente violente os manifestantes no centro da cidade. De acordo com as estatísticas da polícia, cerca de 130 pessoas ficaram feridas, incluindo dez policiais. Os agitadores da direita se preocuparam em aparecer como seguidores da tradição dos trabalhadores rebelados em 1956, e até mesmo roubaram um tanque soviético de um museu, desfilando com ele pelas ruas, num espetáculo especialmente voltado à imprensa internacional ali reunida.

De acordo com a agência de imprensa húngara MTI, o Fidesz conseguiu reunir cerca de 100.000 pessoas na manifestação organizada para comemorar o 50º aniversário da revolução.

Até o momento, Gyurcsany resistiu a renunciar ao governo. Ele sabe que tem o apoio de governos e de empresários do ocidente, que hoje depositam mais confiança no milionário Gyurcsany do que no inescrupuloso demagogo Orban. O líder da fração socialista parlamentar, Ildiko Lendvai, argumentou que, atualmente, qualquer mudança no governo poderia abalar a confiança de investidores. A coalizão liberal do “livre mercado”, parceira do MSZE, manifestou sua total confiança em Gyurcsany.

Todavia, Orban está determinado a continuar sua campanha para desestabilizar o governo. Seu próximo passo é realizar um referendum, constitucionalmente questionável, em relação à reforma do governo. Ele tem a intenção de explorar a indignação generalizada existente com relação à austeridade do programa seguido por Gyurcsany. O Fidesz avançou consideravelmente nas eleições regionais ocorridas no dia 1 de outubro, ficando em maioria em dezoito das dezenove regiões húngaras.

O Fidesz e seus apoiadores de extrema direita são capazes de exercer tal influencia somente por causa da falta de uma verdadeira alternativa socialista ao MSZP. A repressão que a burocracia stalinista exerceu durante décadas sobre a classe trabalhadora e o cinismo com o qual os auto-intitulados “esquerdistas” do MSZP defenderam os interesses do capital internacional criaram um vácuo político que permitiu o crescimento dos demagogos de direita do Fidesz.

A tarefa da classe trabalhadora húngara é defender a herança da revolução de 1956 contra as arrogantes afirmações do MSZP e do Fidesz. O levante de 1956 representou uma rebelião de trabalhadores contra a opressão stalinista, não um movimento nacionalista pela restauração do capitalismo. Dessa forma, era uma fonte de inspiração para os trabalhadores de todo o mundo. Vários membros dos Partidos Comunistas, que tinham ainda ideais socialistas, romperam com o stalinismo e ingressaram no movimento trotskista, por considerarem corretas as posições do movimento trotskista mundial, do Comitê Internacional da Quarta Internacional, a respeito da selvagem repressão à revolução de 1956.

Depois de várias décadas, tanto o stalinismo como a burguesia se esforçaram para ocultar da classe trabalhadora a sua própria história - a história da revolução húngara e a tradição anterior dos movimentos socialista e comunista. Toda uma geração de socialistas revolucionários foi eliminada pelos expurgos stalinistas na década de 30, incluindo quase todos os líderes da Revolução Russa e vários comunistas húngaros. O líder da Oposição de Esquerda ao stalinismo e fundador da Quarta Internacional, Leon Trotski, foi morto por um assassino stalinista, em 1940.

Atualmente, mais do que nunca, o conhecimento desta história é uma necessidade urgente. Somente a perspectiva defendida por Leon Trotski e pela Quarta Internacional - a unificação internacional da classe trabalhadora na luta por uma sociedade socialista - oferece uma alternativa para a miséria e a reação política que resultou da restauração do capitalismo na Hungria e no resto da Europa oriental.