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Nacionalização na Bolívia: quem foi apunhalado?

Por Hector Benoit
5 Mayo 2006

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No último primeiro de Maio, dia dos trabalhadores, o presidente da Bolívia Evo Morales, eleito há apenas alguns meses, anunciou em discurso de grande repercussão mundial que nacionalizava o gás e o petróleo do seu país.

No pronunciamento, em tom dramático e procurando caracterizar heroísmo histórico em seu decreto, disse ele: “Espanhóis, americanos do norte, europeus saquearam o estanho, a prata e os recursos naturais. Devemos reconhecer que em 1937, sob a liderança das Forças Armadas se nacionalizou pela primeira vez o petróleo, a segunda nacionalização foi feita em 1969 com o intelectual Marcelo Quiroga Santa Cruz e sua luta prossegue no presente”.

Ora, na verdade, já essa história de Morales está meio mal contada. O presidente se esquece de dizer que Quiroga, na época, era ministro também de um governo militar, aquele comandado pelo general Alfredo Ovando Candia, o mesmo que fora parceiro de junta militar com René Barrientos, grande colaborador da CIA, e em cujo governo foi assassinado Che Guevara.

A história da Bolívia é rica desses cruzamentos paradoxais entre queda de governos, intelectuais oportunistas, militares, lideranças pequeno-burguesas, CIA, assassinatos e nacionalizações, estas últimas, em geral, respondendo à procura demagógica do apoio popular, e jamais coincidindo com os interesses reais dos sofridos trabalhadores bolivianos. Seja como for, esta seria, assim, a terceira nacionalização na área dos hidrocarbonetos ocorrida na Bolívia. Pode-se esperar que tenha uma sorte mais afortunada que as outras nacionalizações? As anteriores, apesar da mesma retórica inicial, pouco a pouco retrocederam. Trata-se desta vez de um ato que realmente coincide com os interesses dos trabalhadores bolivianos? Trata-se agora de um ato antiimperialista conseqüente? Trata-se de um avanço da revolução boliviana em direção ao socialismo?

Parece-nos que essas hipóteses são, no mínimo, pouco prováveis. Sobretudo, pensando nas diversas experiências anteriores na Bolívia e na América Latina de setores pequeno-burgueses que criaram novas fórmulas não-marxistas para atingir o socialismo. O partido de Evo Morales, o MAS, não escapa a essa característica de outros partidos pequeno-burgueses da América Latina: designa-se como um “movimento para o socialismo”, mas, desenvolveu também uma via absolutamente própria para chegar à nova sociedade.

Conforme o teórico de Morales, o vice-presidente Álvaro Garcia Liñera (sociólogo, ex-marxista e ex-guerrilheiro), a nova via chama-se “capitalismo andino-amazônico”. Segundo Liñera, em artigo publicado no Le Monde Diplomnatique, trata-se agora na Bolívia de construir um Estado forte que regule a expansão da economia industrial, e transfira excedentes para o âmbito comunitário, desenvolvendo “formas de auto-organização andino amazônicas”.

Mas, seriam estas formas “andino amazônicas” metáforas para falar em socialismo? Não, o socialismo somente viria, provavelmente, em cerca de meio século. Como escreveu ele, no mesmo artigo: “A descolonização do Estado e a implementação de um novo modelo econômico marcarão, desde o primeiro dia, o governo da esquerda indígena que acaba de iniciar um processo de mudança irreversível para o próximo meio século”.

Mas, por enquanto, no momento presente, parece que Liñera pretende ficar no capitalismo, ou melhor, nesse “capitalismo andino amazônico”. Como ele escreve: “O capitalismo andino-amazônico é a forma que, acredito, melhor se adapta à nossa realidade para melhorar as possibilidades das forças de emancipação operárias comunitárias a médio prazo. Por isso, o concebemos como um mecanismo temporário e transitório”.

Nesse sentido, esta nacionalização anunciada por Evo Morales, provavelmente, jamais chegará a ser propriamente uma expropriação em favor dos trabalhadores bolivianos. Tratar-se-ia de uma maneira habilidosa para levar adiante esse projeto de conservação do capitalismo na região e bloquear a construção de organizações propriamente revolucionárias.

Imediatamente, muitos observadores comentam que Morales realizou essa nacionalização visando obter uma vitória nas eleições da Assembléia Constituinte que será realizada em julho. Caso não tome medidas consideradas fortes, como as do decreto deste primeiro de Maio, corre o risco de perder o controle dos rumos da Constituinte e, em pouco tempo, ver as massas bolivianas marchando contra o seu governo, tornando-se, talvez, mais um presidente do país que não consegue cumprir até o fim o seu mandato.

Provavelmente, assim, as metas principais do MAS de Morales e Liñera, ao decretar a nacionalização, longe de expressarem um antiimperialismo conseqüente, visariam, muito mais, as seguintes metas: vencer as eleições de julho com certa margem suficiente; conservar o capitalismo boliviano; se conservar no poder e conservar a estabilidade na região, bloqueando o avanço do proletariado no cone sul do continente.

Diversos fatos apontam para essas hipóteses. Em primeiro lugar, como se sabe, foi dado às empresas estrangeiras um prazo de 180 dias para estabelecer uma renegociação dos contratos. Ora, depois das eleições de julho, caso Morales obtenha uma vitória sólida nas eleições, poderia ir cedendo sem maiores problemas às pressões das companhias estrangeiras. Além disso, segundo o decreto, no período de transição, para os campos de exploração cuja média de produção em 2005 tiver sido inferior a 33 milhões de metros cúbicos diários de gás, será mantido o atual sistema de distribuição do valor produzido, ou seja, não ocorrerá alteração nenhuma.

Nesta situação, sem alterações, se enquadrariam os casos da maioria das companhias estrangeiras. Assim é que, por exemplo, a British Petroleum (BP), segundo o jornal Estado de São Paulo, declarou “que está analisando o impacto da medida, mas, deseja buscar fórmulas para continuar trabalhando com o governo boliviano”. Para a BP, segundo a mesma fonte, “o ponto principal são os 180 dias de negociações”, mas, desde já a companhia observa que tem “pouca presença no país”. De forma similar, o consórcio Enron e Shell não demonstrou qualquer alarme, e anunciou “seu respeito à decisão soberana do governo boliviano”.

As mais atingidas seriam a Repsol (hispano-argentina) e, principalmente, a Petrobrás (estatal brasileira), que fizeram grandes investimentos nos últimos anos na Bolívia. Mas, parece que mesmo nestes casos não há grande motivo de alarme, pois o decreto sustenta que o Ministério de Hidrocarbonetos avaliará os investimentos feitos pelas empresas, bem como amortizações, custo operacional e rentabilidade de cada campo. Os resultados obtidos, segundo o mesmo jornal, “servirão de base para a YPFB (Yacimientos Petroliferos Fiscales de Bolívia) determinar compensação ou participação definitiva de cada companhia nos novos contratos”.

Parece, portanto, que a nacionalização será realmente sem expropriação e, no final dos 180 dias, após as negociações e, sobretudo, após as eleições de julho, a “grande” nacionalização pode mostrar-se, na verdade, uma grande farsa.

Nesse sentido, compreende-se a tranqüilidade do diretor de Gás e Energia da Petrobrás, Ildo Sauer, que declarou: “O contrato de transporte de gás está assegurado até 2019, com volume entre 24 milhões e 30 milhões de metros cúbicos por dia. Nada mudou”.

Da mesma forma, a mesma tranqüilidade se notou na Bolsa de São Paulo em relação às ações da Petrobrás: na abertura, as ações caíram levemente, recuando 0,21%, mas, logo durante o dia 3, ocorreu recuperação; a ação Petrobrás PN fechou em alta de 1,77% e a Petrobrás ON avançou 3,41%.

Da mesma maneira, o presidente Lula, apesar dos ataques dos parlamentares e políticos oposicionistas, que lhe cobravam medidas rígidas de defesa dos interesses nacionais, demonstrou total tranqüilidade e aproveitou para defender o “direito à autodeterminação das nações e do povo pobre da Bolívia”.

Sem dúvida, para o governo Lula, é preferível que Evo Morales, seu aliado e a quem apoiou na campanha presidencial, saía fortalecido nas eleições de julho, pois, ele próprio, Lula, certamente, espera que Morales lhe retribua o favor nas próximas eleições presidenciais que ocorrerão no Brasil em outubro de 2006. Além disso, a política externa de Lula na América Latina, sistematicamente, tem sido a repetição do que faz internamente: manter a todo custo a estabilidade política e garantir, assim, a continuidade dos lucros do capital financeiro internacional.

Grande parte da imprensa brasileira, ex-diplomatas, políticos, empresários e a central sindical mais conservadora, a Força Sindical (adversária da Central Única dos Trabalhadores - CUT), aproveitaram para criticar o governo Lula e acusá-lo de irresponsável. O governo não estaria defendendo os enormes interesses nacionais da Petrobrás na Bolívia.

De fato, os interesses do Brasil e da sua maior empresa estatal, a Petrobrás, são enormes na Bolívia. Segundo o site de notícias da UOL, a filial boliviana da Petrobrás responde por 24% da arrecadação de impostos da Bolívia, 18% do Produto Interno Bruto total daquele país e 20% dos investimentos estrangeiros diretos da Bolívia.

Além disso, é a própria Petrobrás que opera 75% das exportações de gás enviadas da Bolívia para o Brasil, 46% das reservas do país, 95% da capacidade de refino e 23% da distribuição de derivados. Além de tudo isso, a empresa produz 100% da gasolina e 60% do diesel consumido na Bolívia. Os investimentos da Petrobrás naquele país somaram, entre 1994 e 2005, US$ 1,5 bilhão de forma direta.

Deve-se lembrar também, ainda segundo a UOL, que o Brasil e a Bolívia assinaram, em 1991, uma “Carta de Intenção de Integração Energética”, à qual se seguiu a construção de um gasoduto binacional entre 1997 e 2000, operado pela Petrobrás e por onde o hidrocarboneto é conduzido ao território brasileiro.Esse gasoduto tem capacidade para 30 milhões de metros cúbicos por dia. Esse gasoduto opera também nos países vizinhos: em 2005, suas vendas tiveram média de 22,9 milhões de metros cúbicos para o Brasil e 0,9 milhão para a Argentina.

A Petrobrás explora poços de petróleo e de gás natural em seis dos nove estados bolivianos (Tarija, Chuquisaca, Cochabamba, Beni, La Paz e Santa Cruz de La Sierra) e opera os gigantescos campos de gás de San Antonio e San Alberto, no sul do país. Foi justamente San Alberto que Morales escolheu como o local ideal para anunciar, no último primeiro de maio o decreto de nacionalização.

A mesma fonte, recorda ainda que o gás boliviano representa 52,5% da participação em novas descobertas internacionais e das reservas da Petrobrás no exterior e que na Bolívia estão a maior parte das reservas, 158 bilhões de metros cúbicos, contabilizadas pela Petrobrás dentro de seus ativos próprios de acordo com os critérios da “Securities and Exchange Commission”, dos Estados Unidos, entidade que regula os mercados de valores do país. Ainda relata o site da UOL, que a estatal brasileira Petrobrás negocia suas ações nas bolsas de valores de Nova York, Madri, Buenos Aires e São Paulo. Lembra ainda a mesma fonte que a filial Petrobrás Bolívia Refinación S.A. (PBR) opera as duas principais refinarias bolivianas, Gualberto Villaroel, em Cochabamba, e Guillermo Elder Bell, em Santa Cruz de la Sierra, e que estas duas juntas processam uma média de 40 mil barris de petróleo por dia, tendo sido compradas pela Petrobrás por US$ 100 milhões em 1999. A Petrobrás também é dona de 100 dos 400 postos de gasolina existentes na Bolívia. Além disso, relata a mesma fonte, a empresa emprega 750 pessoas na Bolívia.

Será possível que com tantos interesses na Bolívia a Petrobrás e Lula não sabiam antecipadamente das medidas tomadas por Morales no último primeiro de Maio? Teriam sido inocentemente surpreendidos pelo “revolucionário” Morales? Isto é tão inacreditável como as afirmações de que Lula nada sabia da corrupção que o Partido dos Trabalhadores, partido do próprio presidente brasileiro, comandou durante todo o seu governo, corrupção que existiu, sobretudo, nas empresas estatais (ente elas, a própria Petrobrás).

A respeito da nacionalização de Morales e diante das críticas ao governo brasileiro, o hábil assessor para assuntos internacionais de Lula, Marco Aurélio Garcia, professor universitário e grande conhecedor da história da América Latina, deixou escapar a seguinte frase: “O Brasil não levou uma punhalada pelas costas”. Diante dessa afirmação, podemos perguntar: a quem, então, Morales apunhalou com a sua nacionalização? Morales teria apunhalado pelas costas às companhias estrangeiras ou, então, ao próprio proletariado boliviano? Após os 180 dias saberemos melhor.

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