No último primeiro de Maio, dia dos trabalhadores, o
presidente da Bolívia Evo Morales, eleito há apenas
alguns meses, anunciou em discurso de grande repercussão
mundial que nacionalizava o gás e o petróleo do
seu país.
No pronunciamento, em tom dramático e procurando caracterizar
heroísmo histórico em seu decreto, disse ele: Espanhóis,
americanos do norte, europeus saquearam o estanho, a prata e os
recursos naturais. Devemos reconhecer que em 1937, sob a liderança
das Forças Armadas se nacionalizou pela primeira vez o
petróleo, a segunda nacionalização foi feita
em 1969 com o intelectual Marcelo Quiroga Santa Cruz e sua luta
prossegue no presente.
Ora, na verdade, já essa história de Morales
está meio mal contada. O presidente se esquece de dizer
que Quiroga, na época, era ministro também de um
governo militar, aquele comandado pelo general Alfredo Ovando
Candia, o mesmo que fora parceiro de junta militar com René
Barrientos, grande colaborador da CIA, e em cujo governo foi assassinado
Che Guevara.
A história da Bolívia é rica desses cruzamentos
paradoxais entre queda de governos, intelectuais oportunistas,
militares, lideranças pequeno-burguesas, CIA, assassinatos
e nacionalizações, estas últimas, em geral,
respondendo à procura demagógica do apoio popular,
e jamais coincidindo com os interesses reais dos sofridos trabalhadores
bolivianos. Seja como for, esta seria, assim, a terceira nacionalização
na área dos hidrocarbonetos ocorrida na Bolívia.
Pode-se esperar que tenha uma sorte mais afortunada que as outras
nacionalizações? As anteriores, apesar da mesma
retórica inicial, pouco a pouco retrocederam. Trata-se
desta vez de um ato que realmente coincide com os interesses dos
trabalhadores bolivianos? Trata-se agora de um ato antiimperialista
conseqüente? Trata-se de um avanço da revolução
boliviana em direção ao socialismo?
Parece-nos que essas hipóteses são, no mínimo,
pouco prováveis. Sobretudo, pensando nas diversas experiências
anteriores na Bolívia e na América Latina de setores
pequeno-burgueses que criaram novas fórmulas não-marxistas
para atingir o socialismo. O partido de Evo Morales, o MAS, não
escapa a essa característica de outros partidos pequeno-burgueses
da América Latina: designa-se como um movimento para
o socialismo, mas, desenvolveu também uma via absolutamente
própria para chegar à nova sociedade.
Conforme o teórico de Morales, o vice-presidente Álvaro
Garcia Liñera (sociólogo, ex-marxista e ex-guerrilheiro),
a nova via chama-se capitalismo andino-amazônico.
Segundo Liñera, em artigo publicado no Le Monde Diplomnatique,
trata-se agora na Bolívia de construir um Estado forte
que regule a expansão da economia industrial, e transfira
excedentes para o âmbito comunitário, desenvolvendo
formas de auto-organização andino amazônicas.
Mas, seriam estas formas andino amazônicas
metáforas para falar em socialismo? Não, o socialismo
somente viria, provavelmente, em cerca de meio século.
Como escreveu ele, no mesmo artigo: A descolonização
do Estado e a implementação de um novo modelo econômico
marcarão, desde o primeiro dia, o governo da esquerda indígena
que acaba de iniciar um processo de mudança irreversível
para o próximo meio século.
Mas, por enquanto, no momento presente, parece que Liñera
pretende ficar no capitalismo, ou melhor, nesse capitalismo
andino amazônico. Como ele escreve: O capitalismo
andino-amazônico é a forma que, acredito, melhor
se adapta à nossa realidade para melhorar as possibilidades
das forças de emancipação operárias
comunitárias a médio prazo. Por isso, o concebemos
como um mecanismo temporário e transitório.
Nesse sentido, esta nacionalização anunciada
por Evo Morales, provavelmente, jamais chegará a ser propriamente
uma expropriação em favor dos trabalhadores bolivianos.
Tratar-se-ia de uma maneira habilidosa para levar adiante esse
projeto de conservação do capitalismo na região
e bloquear a construção de organizações
propriamente revolucionárias.
Imediatamente, muitos observadores comentam que Morales realizou
essa nacionalização visando obter uma vitória
nas eleições da Assembléia Constituinte que
será realizada em julho. Caso não tome medidas consideradas
fortes, como as do decreto deste primeiro de Maio, corre o risco
de perder o controle dos rumos da Constituinte e, em pouco tempo,
ver as massas bolivianas marchando contra o seu governo, tornando-se,
talvez, mais um presidente do país que não consegue
cumprir até o fim o seu mandato.
Provavelmente, assim, as metas principais do MAS de Morales
e Liñera, ao decretar a nacionalização, longe
de expressarem um antiimperialismo conseqüente, visariam,
muito mais, as seguintes metas: vencer as eleições
de julho com certa margem suficiente; conservar o capitalismo
boliviano; se conservar no poder e conservar a estabilidade na
região, bloqueando o avanço do proletariado no cone
sul do continente.
Diversos fatos apontam para essas hipóteses. Em primeiro
lugar, como se sabe, foi dado às empresas estrangeiras
um prazo de 180 dias para estabelecer uma renegociação
dos contratos. Ora, depois das eleições de julho,
caso Morales obtenha uma vitória sólida nas eleições,
poderia ir cedendo sem maiores problemas às pressões
das companhias estrangeiras. Além disso, segundo o decreto,
no período de transição, para os campos de
exploração cuja média de produção
em 2005 tiver sido inferior a 33 milhões de metros cúbicos
diários de gás, será mantido o atual sistema
de distribuição do valor produzido, ou seja, não
ocorrerá alteração nenhuma.
Nesta situação, sem alterações,
se enquadrariam os casos da maioria das companhias estrangeiras.
Assim é que, por exemplo, a British Petroleum (BP), segundo
o jornal Estado de São Paulo, declarou que
está analisando o impacto da medida, mas, deseja buscar
fórmulas para continuar trabalhando com o governo boliviano.
Para a BP, segundo a mesma fonte, o ponto principal são
os 180 dias de negociações, mas, desde já
a companhia observa que tem pouca presença no país.
De forma similar, o consórcio Enron e Shell não
demonstrou qualquer alarme, e anunciou seu respeito à
decisão soberana do governo boliviano.
As mais atingidas seriam a Repsol (hispano-argentina) e, principalmente,
a Petrobrás (estatal brasileira), que fizeram grandes investimentos
nos últimos anos na Bolívia. Mas, parece que mesmo
nestes casos não há grande motivo de alarme, pois
o decreto sustenta que o Ministério de Hidrocarbonetos
avaliará os investimentos feitos pelas empresas, bem como
amortizações, custo operacional e rentabilidade
de cada campo. Os resultados obtidos, segundo o mesmo jornal,
servirão de base para a YPFB (Yacimientos Petroliferos
Fiscales de Bolívia) determinar compensação
ou participação definitiva de cada companhia nos
novos contratos.
Parece, portanto, que a nacionalização será
realmente sem expropriação e, no final dos 180 dias,
após as negociações e, sobretudo, após
as eleições de julho, a grande nacionalização
pode mostrar-se, na verdade, uma grande farsa.
Nesse sentido, compreende-se a tranqüilidade do diretor
de Gás e Energia da Petrobrás, Ildo Sauer, que declarou:
O contrato de transporte de gás está assegurado
até 2019, com volume entre 24 milhões e 30 milhões
de metros cúbicos por dia. Nada mudou.
Da mesma forma, a mesma tranqüilidade se notou na Bolsa
de São Paulo em relação às ações
da Petrobrás: na abertura, as ações caíram
levemente, recuando 0,21%, mas, logo durante o dia 3, ocorreu
recuperação; a ação Petrobrás
PN fechou em alta de 1,77% e a Petrobrás ON avançou
3,41%.
Da mesma maneira, o presidente Lula, apesar dos ataques dos
parlamentares e políticos oposicionistas, que lhe cobravam
medidas rígidas de defesa dos interesses nacionais, demonstrou
total tranqüilidade e aproveitou para defender o direito
à autodeterminação das nações
e do povo pobre da Bolívia.
Sem dúvida, para o governo Lula, é preferível
que Evo Morales, seu aliado e a quem apoiou na campanha presidencial,
saía fortalecido nas eleições de julho, pois,
ele próprio, Lula, certamente, espera que Morales lhe retribua
o favor nas próximas eleições presidenciais
que ocorrerão no Brasil em outubro de 2006. Além
disso, a política externa de Lula na América Latina,
sistematicamente, tem sido a repetição do que faz
internamente: manter a todo custo a estabilidade política
e garantir, assim, a continuidade dos lucros do capital financeiro
internacional.
Grande parte da imprensa brasileira, ex-diplomatas, políticos,
empresários e a central sindical mais conservadora, a Força
Sindical (adversária da Central Única dos Trabalhadores
- CUT), aproveitaram para criticar o governo Lula e acusá-lo
de irresponsável. O governo não estaria defendendo
os enormes interesses nacionais da Petrobrás na Bolívia.
De fato, os interesses do Brasil e da sua maior empresa estatal,
a Petrobrás, são enormes na Bolívia. Segundo
o site de notícias da UOL, a filial boliviana da Petrobrás
responde por 24% da arrecadação de impostos da Bolívia,
18% do Produto Interno Bruto total daquele país e 20% dos
investimentos estrangeiros diretos da Bolívia.
Além disso, é a própria Petrobrás
que opera 75% das exportações de gás enviadas
da Bolívia para o Brasil, 46% das reservas do país,
95% da capacidade de refino e 23% da distribuição
de derivados. Além de tudo isso, a empresa produz 100%
da gasolina e 60% do diesel consumido na Bolívia. Os investimentos
da Petrobrás naquele país somaram, entre 1994 e
2005, US$ 1,5 bilhão de forma direta.
Deve-se lembrar também, ainda segundo a UOL, que o Brasil
e a Bolívia assinaram, em 1991, uma Carta de Intenção
de Integração Energética, à
qual se seguiu a construção de um gasoduto binacional
entre 1997 e 2000, operado pela Petrobrás e por onde o
hidrocarboneto é conduzido ao território brasileiro.Esse
gasoduto tem capacidade para 30 milhões de metros cúbicos
por dia. Esse gasoduto opera também nos países vizinhos:
em 2005, suas vendas tiveram média de 22,9 milhões
de metros cúbicos para o Brasil e 0,9 milhão para
a Argentina.
A Petrobrás explora poços de petróleo
e de gás natural em seis dos nove estados bolivianos (Tarija,
Chuquisaca, Cochabamba, Beni, La Paz e Santa Cruz de La Sierra)
e opera os gigantescos campos de gás de San Antonio e San
Alberto, no sul do país. Foi justamente San Alberto que
Morales escolheu como o local ideal para anunciar, no último
primeiro de maio o decreto de nacionalização.
A mesma fonte, recorda ainda que o gás boliviano representa
52,5% da participação em novas descobertas internacionais
e das reservas da Petrobrás no exterior e que na Bolívia
estão a maior parte das reservas, 158 bilhões de
metros cúbicos, contabilizadas pela Petrobrás dentro
de seus ativos próprios de acordo com os critérios
da Securities and Exchange Commission, dos Estados
Unidos, entidade que regula os mercados de valores do país.
Ainda relata o site da UOL, que a estatal brasileira Petrobrás
negocia suas ações nas bolsas de valores de Nova
York, Madri, Buenos Aires e São Paulo. Lembra ainda a mesma
fonte que a filial Petrobrás Bolívia Refinación
S.A. (PBR) opera as duas principais refinarias bolivianas,
Gualberto Villaroel, em Cochabamba, e Guillermo Elder Bell, em
Santa Cruz de la Sierra, e que estas duas juntas processam uma
média de 40 mil barris de petróleo por dia, tendo
sido compradas pela Petrobrás por US$ 100 milhões
em 1999. A Petrobrás também é dona de 100
dos 400 postos de gasolina existentes na Bolívia. Além
disso, relata a mesma fonte, a empresa emprega 750 pessoas na
Bolívia.
Será possível que com tantos interesses na Bolívia
a Petrobrás e Lula não sabiam antecipadamente das
medidas tomadas por Morales no último primeiro de Maio?
Teriam sido inocentemente surpreendidos pelo revolucionário
Morales? Isto é tão inacreditável como as
afirmações de que Lula nada sabia da corrupção
que o Partido dos Trabalhadores, partido do próprio presidente
brasileiro, comandou durante todo o seu governo, corrupção
que existiu, sobretudo, nas empresas estatais (ente elas, a própria
Petrobrás).
A respeito da nacionalização de Morales e diante
das críticas ao governo brasileiro, o hábil assessor
para assuntos internacionais de Lula, Marco Aurélio Garcia,
professor universitário e grande conhecedor da história
da América Latina, deixou escapar a seguinte frase: O
Brasil não levou uma punhalada pelas costas. Diante
dessa afirmação, podemos perguntar: a quem, então,
Morales apunhalou com a sua nacionalização? Morales
teria apunhalado pelas costas às companhias estrangeiras
ou, então, ao próprio proletariado boliviano? Após
os 180 dias saberemos melhor.