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O componente estético do socialismo

Por David Walsh

19 Dezembro 2006

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Palestra proferida em 9 de janeiro de 1998, na Escola Internacional de Verão sobre Marxismo e os Problemas Fundamentais do Século XX, organizada pelo Socialist Equality Party (Austrália) em Sidney de 3 a 10 de janeiro de 1998.

David Walsh é editor de artes do World Socialist Web Site, e autor de vários ensaios incisivos e críticos sobre a arte e a cultura contemporâneas de um ponto de vista marxista.

Em seqüência à palestra está a importante contribuição feita por Joanne Laurier do SEP (EUA): Um comentário sobre a arte e o partido marxista.

A atitude do marxismo clássico quanto à arte

Gostaria de começar o artigo destacando que a primeira obra que Karl Marx produziu como um jornalista revolucionário, aos 23 anos de idade, foi um comentário sobre uma série de regulamentos emitidos pelo censor do governo da Prússia.

Os regulamentos diziam que “a censura não irá impedir a investigação séria e moderada da verdade.” Em sua resposta irônica, Marx perguntava retoricamente: “Mas não é a tarefa primeira de quem busca a verdade mirar diretamente na verdade, sem olhar para a esquerda ou para a direita? Não irei eu esquecer a essência da matéria, se estiver obrigado a não esquecer de dizê-la na forma prescrita?”.

Ele continuava: “Além disso, a verdade é geral, ela não pertence a mim apenas, ela pertence a todos, ela me possui, eu não a possuo. Minha propriedade é a forma, que é a minha individualidade espiritual. Le style c’est l’homme [o estilo é o homem]. Isso mesmo! A lei me permite escrever, só que eu tenho que escrever num estilo que não é o meu! Eu posso mostrar meu rosto espiritual, mas primeiro eu tenho que ajustá-lo com as rugas prescritas! Que homem de honra não coraria diante desse fato...?”

“Você admira a variedade deliciosa, as riquezas inesgotáveis da natureza. Você não exige que a rosa cheire como a violeta, mas a maior riqueza de todas, o espírito, tem que existir num só tipo? Eu sou cômico, mas a lei me força a escrever seriamente. Eu sou audacioso, mas a lei manda que o meu estilo seja moderado. Cinza, toda cinza é a única, a legítima cor da liberdade. Cada gota de orvalho sobre a qual o sol brilha reluz num jogo inesgotável de cores, mas o sol espiritual, não importa quantas sejam as pessoas e quais sejam os objetos nos quais ele refrata, tem que produzir apenas uma cor oficial!”

Assim escreveu Marx no início de 1842, cinco anos antes de escrever o Manifesto Comunista. Cito essas palavras como forma de sublinhar, ou se necessário argumentar, que aqueles que fundaram nosso movimento há um século e meio tinham, incorporada na sua visão de mundo, uma certa postura quanto à cultura, à expressão artística e à liberdade intelectual. Essa postura, tenho certeza, continua sendo um componente insubstituível e objetivamente significante da visão marxista das coisas. Nossos esforços aqui hoje se dirigem principalmente para tentar elaborar, pelo menos de uma forma inicial, aquilo que pode compor o componente estético, se se pode chamar assim, da consciência socialista.

Se a defesa da liberdade artística e intelectual é tão indispensável para o marxismo, por que, pode-se perguntar, é tão fora do comum e até sem precedentes a nossa atual discussão? A resposta a isso tem muitos lados, lados demais para qualquer aprofundamento neste fórum. Mas eu penso que a questão requer alguma resposta, especialmente porque respondê-la pode lançar luz sobre os problemas em discussão hoje.

Existem, mais obviamente, as implicações objetivas da relação da política com a arte na luta pelo socialismo. Leon Trotski começou seu clássico Literatura e Revolução, escrito em 1922 e 1923, observando que o lugar da arte na União Soviética podia ser determinado pelo seguinte argumento geral: se os trabalhadores russos não tivessem derrotado os exércitos contra-revolucionários numa penosa guerra civil, o Estado Soviético não mais existiria e os marxistas na Rússia não estariam pensando sobre problemas econômicos, muito menos sobre problemas intelectuais e culturais. Meios eminentemente não-artísticos têm que ser usados para fazer nascer uma sociedade onde a arte irá florescer.

Combinada com isso está a realidade da opressão de classe no capitalismo. Trotski alertava em Literatura e Revolução contra qualquer identificação acrítica dos destinos históricos da burguesia e do proletariado. A classe capitalista tomou o poder político séculos depois de ter começado a desenvolver sua própria cultura. Ela assumiu o controle da sociedade quando já era um agrupamento social rico e educado. As coisas são muito diferentes para a classe trabalhadora.

Grande parte da energia que resta à disposição dos trabalhadores socialistas “após suprir as necessidades elementares da vida” necessariamente vai para o estudo da política e da história e para o esforço de educar e organizar a classe inteira com base em princípios marxistas. A enormidade e a urgência das tarefas fazem disso algo inevitável. Isso se mantém verdadeiro, em boa medida, até mesmo para os membros do nosso próprio partido.

Em outras palavras, enquanto a ascensão histórica da burguesia ocorreu com uma relativa uniformidade em todas as esferas da vida social—economicamente, filosoficamente, culturalmente—o processo de autodeterminação da classe trabalhadora, nas palavras de Trotski, “uma classe desafortunada economicamente, assume um caráter intensamente unilateral, revolucionário e político”, e alcança sua expressão máxima no partido socialista revolucionário. Nós lutamos contra essa unilateralidade, mas entendemos suas raízes objetivas. Não haveria necessidade da revolução social se a humanidade pudesse se desenvolver completamente sob o capitalismo. A classe trabalhadora tem que tomar o poder justamente porque ela é privada de cultura no mais amplo sentido da palavra.

Essas são considerações gerais para as quais ninguém deve fechar os olhos, nem precisa fechar, mas, na minha visão, talvez seja mais diretamente relevante fazer referência a certos problemas históricos na tentativa de explicar tanto o porquê de termos achado necessário quanto o porquê de sermos agora capazes de dedicar uma sessão especial desta escola para os problemas culturais.

Há uma ironia que deve ser levada em conta nessa discussão: a de que os grandes expoentes do marxismo nos três quartos de século seguintes à publicação do Manifesto Comunista, em 1847, tomariam como um dado o caráter inseparável entre a luta pelo socialismo e a luta em defesa da liberdade de criação artística.

Afinal, basta considerar novamente o caráter do indivíduo cujo nome é identificado com a fundação do socialismo científico, o próprio Marx. Ele era um homem—além de todos os seus outros atributos extraordinários—de imensa cultura. Paul Lafargue, o líder socialista francês e genro de Marx, falava em suas memórias: “ele [Marx] conhecia Heine e Goethe de cor e frequentemente os citava na conversas; era leitor assíduo de poetas de todas as línguas européias. Todo ano ele lia Ésquilo no original grego. Considerava Ésquilo e Shakespeare como os maiores gênios dramáticos que a humanidade já fez nascer. Tinha um respeito ilimitado por Shakespeare: estudou detalhadamente suas obras e conhecia até mesmo os seus personagens menos importantes. Considerava Cervantes e Balzac acima de todos os outros romancistas. Tinha uma imaginação incomparavelmente fértil: suas primeiras obras literárias foram poemas. Sua mulher preservou cuidadosamente a poesia que ele escreveu na juventude mas nunca a mostrou para ninguém. A família dele sonhara que ele fosse homem de letras ou professor, e pensava que ele estava se rebaixando por se engajar na agitação socialista e na economia política, que era então desdenhada na Alemanha.”

A pedido de Karl Kautsky, em 1895 Eleanor Marx escreveu um comentário sobre a amizade entre Heine e Marx. “Lembro-me dos meus pais (...) falando muito de Heine, que (no início dos anos 1840) eles viam constante e intimamente. Não é exagero dizer que Mohr [apelido de Marx] não apenas admirava Heine como poeta, mas tinha uma sincera afeição por ele. Ele inclusive inventava todo tipo de desculpas para os caprichos políticos de Heine. Mohr explicava que os poetas eram gente de outro tipo, e não deviam ser julgados por padrões de conduta ordinários nem extraordinários...

“Heine costumava, às vezes, ir aos quartos deles, ler seus ‘versos’ e perguntar por opiniões. Sempre de novo, Mohr revia alguma ‘coisinha’ de oito linhas, discutia, analisava...

“Politicamente, pelo que posso entender, eles raramente discutiam. Mas com certeza Mohr considerava Heine ternamente, e amava não apenas seu trabalho, mas o próprio homem.”

Ou, para pegar o caso de Trotski, só é preciso ler o capítulo de sua autobiografia intitulado “Livros e primeiros conflitos”, no qual ele descreve como, já criança, ele devorava obras de Pushkin, Nekrasov, Dickens e Tolstoi; a poderosa impressão causada por sua primeira viagem ao teatro; e o impacto enorme da visitas feitas à sua casa por uma família amiga que era conhecida no sul da Rússia como uma autoridade em Shakespeare.

A partir da metade do século XIX, aquilo que chamamos de marxismo, em suas maiores figuras—Marx, Engels, Lênin, Trotski, Rosa Luxemburgo, Franz Mehring, Georgi Plekhanov, Lafargue, Antonio Labriola, e claro, incontáveis outras figuras de menor estatura—fez mais do que simplesmente providenciar um programa político; essa seria uma visão muito estreita.

O marxismo representou uma corrente de amplitude e profundidade intelectuais imensas. Ele continha em seu interior, de forma bastante consciente, as maiores conquistas da filosofia, da economia política, da historiografia e, eu insistiria, ao menos implicitamente, da produção artística burguesa. O marxismo tinha a única exposição coerente e racional das contradições e da crise crescentes da sociedade burguesa, e oferecia a única saída progressista para essa crise. As repercussões desencadeadas pela idéia do socialismo, com sua visão de um mundo livre da exploração e da miséria, foram sentidas em todas as esferas da vida intelectual.

E, inversamente, toda corrente e indivíduo que oferecia alguma percepção das estruturas dos universos físico, social ou mental tiveram seus impactos, de uma forma ou de outra, no marxismo. Quer fosse obra de naturalistas, antropólogos ou psicanalistas. Não se quer evitar falar das imensas contradições do movimento socialista entre 1890 e 1914, mas no sentido mais geral não há dúvida de que nesses anos a autoconsciência revolucionária das massas experimentou um crescimento imenso; processo que teve sua expressão máxima na Revolução de Outubro de 1917.

Se alguém começa a examinar, mesmo superficialmente, a história do período, topa com todo tipo de material. Há a reunião de 1890 que fundou o Freie Volksbühne, um grande teatro na Alemanha, onde, nas palavras de um historiador, uniram-se “os líderes da vanguarda berlinense com os líderes da social-democracia, numa busca comum que deu origem a uma série de reuniões nas quais escritores e trabalhadores industriais se uniam em discussões literárias.”

Ou considere, como outro exemplo, o departamento de artes do Workers Party, na Bélgica. Seus programas de 1891-92, organizados para trabalhadores, incluíam o estudo da literatura russa moderna, Ibsen, Wagner, música popular, Shakespeare, pintura flamenga, William Morris e a poesia de Paul Verlaine.

Na Alemanha, é claro, o Partido Social Democrata organizava associações de trabalhadores ao redor de uma variedade de questões—inclusive a cultura—totalizando milhares. Uma obra que pesquisei dava o exemplo de uma pequena cidade alemã com 10 ou 20 mil pessoas que tinha 100 associações de trabalhadores, de clubes de ciclismo a grupos dedicados à poesia e ao teatro. Os socialistas consideravam as questões da cultura e da arte como centrais para a elevação da classe trabalhadora ao nível de suas responsabilidades históricas.

Na França o jornal anarquista La Révolte publicava suplementos literários que incluíam obras de Tolstói, Flaubert, De Maupassant, dos irmãos Goncourt, de Anatole France e Zolà. Quando a lista de assinantes da publicação foi apreendida em 1894, ela incluía alguns dos mais refinados e “decadentes” estetas, inclusive Stephane Mallarmé, assim como os nomes dos pintores Paul Signac e Camille Pissarro e o próprio Anatole France—um corte transversal da vida intelectual francesa.

O artista e a reforma social, um estudo da situação sócio-cultural na França e na Bélgica no final do século XIX, nota: “quando Gustave Kahn [figura literária bem conhecida e futuro Dreyfusard] escreveu em 1886 sobre o estado estagnado da sociedade francesa contemporânea, na qual a burguesia triunfante bloqueava tudo que era novo na arte e nas idéias, ele ecoava uma queixa bem mais antiga, queixa que para ele, assim como para outros, combinava razões tanto artísticas quanto sociais. O tom de indignação social iria se tornar cada vez mais importante no ataque à burguesia. O artista se sentia não apenas vítima da sociedade, como já se sentia há algum tempo, mas começava a se identificar com a classe trabalhadora, ambos identificados como vítimas do mesmo tipo de injustiça.”.

Mesmo nas condições semi-legais da Rússia czarista, os marxistas travaram uma relação com os chamados Decadentes, “uma tendência [literária] jovem e perseguida” (Trotski)—e saíram em sua defesa.

Seria tolo sugerir que as relações entre os artistas e os socialistas, mesmo nos melhores desses casos, foram simples, harmoniosas e sem contradição. Como isso teria sido possível? Boêmia, individualismo e egotismo—associados a situação social bem específica—não são qualidades desconhecidas nos círculos artísticos. Assim como o filistinismo, no caso, não é desconhecido no movimento marxista. E fora o inevitável conflito político e de classe, há a diferença significativa, embora não absoluta, entre a cognição científica e a artística.

Discuti isso há alguns anos com relação aos artistas da vanguarda russa: “o próprio processo pelo qual o artista conhece o mundo, através de imagens; o contato próximo entre o domínio do artista e a percepção sensorial, as impressões imediatas e as emoções; e o papel preponderante da intuição a do inconsciente no trabalho artístico—tudo isso quase necessariamente faz com que o artista ‘fique para trás’ da política do dia.” Quer a consciência artística fique para trás, quer por vezes se adiante, ela raramente é sincronizada com a consciência político-revolucionária.

Levando tudo isso em conta, acho que permanece, num sentido geral, como uma proposição historicamente demonstrável, que no período que desemboca na Revolução Russa o movimento socialista certamente se via—e era visto por aqueles artistas e intelectuais que simpatizavam com seus objetivos gerais—como um aliado e defensor da criação artística e como um líder determinado da liberdade intelectual em geral.

É essa a percepção atual disseminada do marxismo? Seria um engano acreditar que sim. Se o “marxismo” na atualidade não é identificado abertamente com o aniquilamento do pensamento e do trabalho artístico críticos por burocratas estúpidos e brutais, com o desterro para o Gulag como punição para os de mente independente, ele mais provavelmente se identifica com as idiotices do pós-modernismo, da política de identidades e minorias e com toda a sorte de prescrições anti-artísticas propostas pela esquerda pequeno-burguesa.

Com relação à identificação do marxismo com a supressão totalitária das idéias, pode-se dar a palavra às ideologias da direita. Estas dirão que “a alegação dos socialistas de representar a liberdade provou ser um blefe e uma decepção. Eles eram indivíduos sedentos por poder, que prometeriam qualquer coisa para conseguir seu objetivo. Uma vez no topo, eles mostraram sua verdadeira face.”.

Isso seria um argumento poderoso se não fosse totalmente contrariado pelos fatos históricos. A Revolução de Outubro deu um impulso enorme à criação artística, particularmente no campo das artes visuais, da poesia e do cinema. Apenas os nomes—Malevich, Maiakovski, Tatlin, Eisenstein, Pudovkin, Vertov, Shostakovich, Rodchenko, Popova, Stepanova, El Lissitsky, Meyerhold, Babel, Mandelstam e muitos outros—já evocam um universo artístico. O impulso cultural dado pela revolução foi a contragosto reconhecido até mesmo pelo seus mais honestos oponentes políticos. Figuras preeminentes do Partido Bolchevique—Lênin, Trotski e principalmente Lunacharski—encorajavam o trabalho artístico e contrariavam as tentativas de impor critérios supostamente “proletários” e “revolucionários” sobre os artistas soviéticos. “Quando o estado dos trabalhadores”, escreveu Trotski em “A revolução traída”, “tinha uma agitada base de massa e a perspectiva da revolução mundial, ele não tinha medo de experimentos, pesquisas, luta entre escolas, pois ele compreendia que apenas assim poderia ser preparada uma nova época cultural. As massas populares ainda estavam agitadas em todas as suas fibras, e pensavam alto pela primeira vez em mil anos. Todas as melhores forças artísticas jovens foram postas em movimento.”.

Está fora do escopo desta discussão examinar o caráter, o crescimento e o significado do estalinismo, mas claramente a supressão—e eventual destruição—da vida cultural soviética a partir do meio dos anos 20, foi um dos maiores crimes intelectuais do século. A ascensão da burocracia criou o que Trotski chamou de “uma espécie de campo de concentração da literatura artística.” Os melhores artistas se suicidaram, silenciaram ou foram exterminados.

A burocracia não apenas assassinou, corrompeu ou desmoralizou gerações inteiras de artistas na URSS e no estrangeiro, mas também tomou emprestadas ou inventou teorias para justificar sua tirania na arte: era a “cultura proletária” e o “realismo socialista” no tempo de Stalin. O impacto cultural do estalinismo não acabou com a morte do tirano em 1953, nem teve efeitos destrutivos apenas na URSS, no leste europeu e na China. Pode-se traçar a origem de várias escolas de “arte do povo” na sua influência perniciosa. Claro que o estalinismo não foi a única influência em atividade; várias concepções populistas e burguesas-nacionalistas nativas também tiveram seu papel, mas o estalinismo certamente funcionou como um fundamento ideológico e organizativo.

Desde que Trotski escreveu Literatura e revolução, várias concepções essencialmente hostis à arte e à criação intelectual se passaram como “marxistas” e foram assim identificadas por um grande número de pessoas. Nós insistimos, e por isso talvez seja significativa a organização desta discussão hoje, que o período em que foi possível sustentar essa fraude chega ao fim.

Há já alguns anos no Comitê Internacional nós temos tentado reviver um enfoque genuinamente marxista da arte. Esse tem sido um aspecto do que penso que temos justamente referido como um renascimento da teoria marxista que sucedeu à ruptura definitiva com o oportunismo, na forma do British Workers Revolutionary Party, no meio dos anos 80. Parece que o movimento trotskista—o marxismo em sua forma moderna—se liberou de um bando de influências alheias e que, por assim dizer, encontrou seu eixo novamente.

Isso não se deve, é claro, apenas à ruptura com um grupo de oportunistas, por mais significativa que tenha sido. Processos históricos muito poderosos estão acontecendo. O renascimento está ligado a uma mudança na relação entre o marxismo e o oportunismo, entre a classe trabalhadora e a burocracia, uma relação que foi extremamente desfavorável ao movimento revolucionário socialista por todo um período histórico. Creio que a dominação da classe trabalhadora pelas burocracias estalinistas e reformistas serviu diretamente como apoio àquelas noções de arte que se fantasiaram de marxistas, e foram tomadas como confiáveis ou pelo menos não foram desafiadas nem mesmo por socialistas sinceros e honestos, por meio século.

Acredito que se hoje nós somos capazes de nos liberarmos da influência dessas concepções falsas e perniciosas, isso tem um significado objetivo profundo. Isso sublinha nossa própria evolução, como uma tendência que se coloca firmemente contra os aparatos burocráticos, e aponta para a emergência mais uma vez da classe trabalhadora com uma classe que atua nos seus próprios interesses históricos. Irei tratar desse aspecto do problema com mais detalhes adiante.

Certas discordâncias

Como eu ia dizendo, há já alguns anos fazemos um esforço consciente para elevar o nível de nossos escritos sobre questões artísticas e para tratar de problemas da cultura contemporânea, assim como questões históricas, à luz da herança marxista à qual brevemente me referi. Muito, muito trabalho está por ser feito, mas eu acho que pelo menos tiramos algumas pedras do meio do caminho.

Nossa ênfase na necessidade de compreender o significado objetivo da produção artística e de levar a sério as suas leis de desenvolvimento encontrou oposição recentemente, como a maioria de vocês deve saber, de um leitor do Workers News aqui na Austrália. O Sr. Brad Evans escreveu para o jornal no fim de agosto para expressar sua discordância com relação a um artigo que apareceu no verão passado brevemente avaliando o significado da vida e da obra de Oscar Wilde.

Nós respondemos à carta no jornal, e ele recentemente respondeu por sua vez com outra carta que eu penso que deixa ainda mais claras as diferenças em nossas perspectivas. Eu gostaria de retornar a essas questões hoje, porque penso que a visão expressa pelo Sr. Evans é típica de todo um ambiente social. Evidentemente ele tem direito a ter opiniões, mas nós também. E não pretendemos ser acanhados na defesa de nossas concepções nem em divisá-las daquilo que acreditamos ser idéias falsas e retrógradas.

Suponho que a maioria de vocês aqui leu o artigo original sobre Wilde e a troca de cartas que apareceu em novembro, mas pode ser útil, mesmo assim, eu brevemente retomar as questões.

O próprio artigo sobre Wilde teve uma pré-história. Foi escrito sob a influência, por assim dizer, do trabalho para escrever o artigo que publicamos anteriormente sobre André Breton e o surrealismo. Continuo a acreditar que Breton é uma figura crucial. Estou convencido de que sua atitude principista nas questões políticas—sua rejeição do estalinismo e seu apoio a Trotski e à Quarta Internacional—estava conectada à sua ênfase no papel do subjetivo, da consciência, na arte e na história. Eu sei de poucos seres humanos na história que acreditaram mais verdadeira e sinceramente que o processamento da imaginação criativa absolutamente desimpedida era crítico para o sucesso da revolução.

Quando eu abordei Wilde, me surpreendi com o fato de que certos temas similares apareciam em seu trabalho. Claro que é preciso tomá-lo com certas restrições. Wilde é ou pode ser um esnobe terrível; ele frequentemente despacha pessoas de forma totalmente errada; a maior parte de sua poesia é incrivelmente empolada; a maioria de suas peças nunca supera o nível da comédia de salão de tipo francamente inócuo. E, no entanto, não se pode esconder que ele às vezes se aproxima de algo extremamente profundo. Particularmente em A alma do homem sob o socialismo, O crítico como artista, O retrato de Dorian Gray, Salomé, De profundis, e talvez também em A importância de ser fiel.

Quando Wilde provocativamente declarou que a arte não refletia a vida e a natureza, mas que a vida e a natureza é que imitavam a arte, isto é, que elas levavam a marca da ação humana, ele demonstrava alcançar a dialética que era muito incomum para a época. Aquele comentário, de novo, é claro, lido criticamente, sempre me traz à mente a passagem sobre o materialismo de Feuerbach na Ideologia Alemã, na qual Marx e Engels indicam que “a natureza, a natureza que precedeu a história humana, não de forma alguma a natureza na qual Feuerbach vive.” Em outras palavras, quer se deparando com produtos do pensamento, da sociedade e mesmo da natureza, os seres humanos estão geralmente confrontando os resultados de sua própria atividade ou da atividade das gerações anteriores.

Mais uma vez, o que me tocou em Wilde foi sua ênfase na atividade humana subjetiva e sua recusa categórica a ver a arte como veículo de reflexão passiva; isso foi uma postura incomum num período em que tendências para o materialismo passivo se manifestavam até mesmo dentro do socialismo da Segunda Internacional. E achei muito tocante e inspirador o fato de que aqui estava um homem que proclamava na cara da complacente opinião pública britânica: “é através do grito de alguém nas selvas que os caminhos dos deuses têm de ser preparados.”

E me pareceu, além disso, que esse tipo de perspectiva se ligava à sua defesa da “arte pela arte”. Sua insistência de que o artista não era o “porta-voz de seu tempo”, o dócil transmissor de seus valores, ligava-se claramente a uma insistência na independência da arte com relação à moralidade burguesa, à realidade política imediata e outras considerações similares. Para Wilde o esteticismo e a noção de que a arte era inútil representavam uma rejeição da ordem social existente e de suas demandas. Pode-se ver as óbvias limitações de sua visão, mas acho que ninguém deve subestimar a profundidade e a seriedade dessa rejeição.

Então escrevi sobre essas coisas. E o Sr. Evans escreveu expressando discordância em vários pontos. Ele declarou, pelo que pude entender, que Wilde não podia ter sido um defensor da arte pela arte porque tal visão “pequeno-burguesa” era incompatível com ser socialista. Ele declarou ainda que a arte tem que ter, em suas palavras, “envolvimento ético ou função sociopolítica.”

Em minha resposta eu enfatizei que o marxismo, na minha visão, concebe a arte como uma esfera de atividade humana com suas próprias leis de desenvolvimento, leis relativamente autônomas. Claro que a arte é um produto do homem social, uma de suas formas de consciência social, mas não pode ser reduzida a nenhuma das outras formas. Eu perguntava: “os problemas e temas abrangidos pela arte são distintos daqueles tratados pela ciência, pela política, pela filosofia e pela ética? Ela faz uso de materiais diferentes? Se não, se o seu papel coincide substancialmente ou pode até ser substituído por outras formas de consciência social, por que a arte existe?”.

Em outra passagem eu escrevia: “A arte, ao que me parece, navega livremente entre os mundos interior e exterior, entre o mundo dominado pelos que combatem, na frase de Trotski, por “uma vida harmoniosa e completa” e o mundo da realidade imediata. Na minha visão a arte está muito ligada com a luta, tão antiga quanto a consciência humana, por dar forma ao mundo, inclusive à relações humanas, de acordo com a beleza e as demandas da liberdade, de acordo com a vida como esta deve ser.

“Também é o caso de dizer que a forma artística tem um poder independente e objetivamente significativo, uma habilidade para enriquecer a experiência espiritual e para refinar o sentimento...”

Em sua carta mais recente o Sr. Evans reitera os pontos de sua primeira carta. Ele sugere ainda que a minha visão é a de que “a arte não tem propósito outro do que o de satisfazer o olhar estético dos sacerdotes das artes em várias sociedades.“ Ele faz uma série de observações na mesma linha. Não compreendo o sentido desse tipo de comentário, sem nenhuma relação com a realidade. Nunca expressei interesse nem aprovação da “arte pura”, da arte que meramente se perde no jogo da forma pura. Então isso é uma tentativa de desviar o assunto, e não vou gastar meu tempo tentando responder a ela.

Gostaria de citar duas passagens que valem ser consideradas:

Num dado momento da carta o Sr. Evans escreve: “Na página 5 de sua resposta, você menciona: ‘A nossa visão é a de que quando a arte é sincera a seus próprios e distintos propósitos ela faz um caminho próximo àquele da revolução social.’ Esse comentário apresenta um conceito interessante. Se a questão não é lutar contra as classes e a opressão num interesse coletivo e capacitado, então como o proletariado será capaz de conquistar sua liberdade? Qual é seu motivo para apoiar os gostos individuais da arte estética? Se a arte não apresenta uma perspectiva realista com relação à luta de classes, como a maioria das pessoas irá entender seus objetivos? Na atualidade, a maioria das pessoas não tem um entendimento das classes, nem mesmo pela educação estatal. Essas pessoas estão ocupadas demais trabalhando para sobreviver, não têm tempo de aprender o conceito de classe, potencialmente a arte é uma ferramenta de reeducação que pode possibilitar isso, através de várias mídias.”

E mais para a frente em sua carta ele escreve: “Sobre a ‘forma artística’, você disse que ela tem ‘um poder independente e objetivamente significante, uma habilidade para enriquecer a experiência espiritual e para refinar o sentimento.’ Se Marx escutasse essas palavras de ‘experiência espiritual’ ele riria na sua cara!

“Que tipo de ‘experiência espiritual’ irá mudar o estado material (político e econômico) deste mundo? Forças materiais podem alterar estados materiais, deixe as experiências espirituais para o New Age.”

Eu gostaria de tratar dessas duas questões: é o propósito primordial da arte apresentar um retrato realístico da luta da classes moderna? E que papel—se é que há algum—tem a “experiência espiritual” (risível, segundo o Sr. Evans) na luta pelo socialismo?

Entretanto, eu gostaria de fazer isso de uma certa maneira indireta, por um exame dos escritos de Trotski do início dos anos 20 sobre problemas da arte e da cultura, particularmente Literatura e revolução.

A importância da obra de Trotski nos anos 20

Literatura e revolução é, na minha opinião, a mais significativa contribuição já feita ao enfoque marxista da arte. Entretanto, é bastante difícil obter o livro, pelo menos em inglês. Espero que nós mesmos o publiquemos no futuro, talvez numa nova tradução, pois a atual deixa muito a desejar.

É uma obra extraordinária, mas que foi negligenciada, notavelmente por aqueles de quem não se esperaria isso—os escritores de “esquerda”, autores que trataram do marxismo e da arte. Ao examinar os incontáveis volumes produzidos pelos auto-intitulados acadêmicos e críticos “marxistas” sobre problemas estéticos, encontramos pouquíssimas referências a Literatura e revolução e aos outros escritos de Trotski sobre cultura.

Georg Lukács, como parte do seu pacto com o estalinismo, não podia fazer referências a Trotski, a não ser referências hostis. Herbert Marcuse, que não tinha a desculpa de temer por sua vida, ignorou Trotski completamente em A dimensão estética, obra supostamente dedicada a uma análise crítica das visões marxistas sobre a arte. Não encontrei nenhum esforço significativo de Adorno ou Horkheimer para chegar a um acordo com a obra de Trotski. Fredric Jameson, o acadêmico norte-americano, em seu pretensioso Marxismo e forma: teorias dialéticas de literatura do século XX, conseguiu mencionar o nome de Trotski apenas uma vez, de passagem. De forma igualmente notável, o falecido Raymond Williams, em sua obra Marxismo e Literatura, fez uma referência essencialmente enganosa e depreciativa a Literatura e revolução. A essa lista pode-se somar Cliff Slaughter igualmente. Em seu Marxismo, ideologia e literatura, publicado em 1980, Slaughter de fato dedicou um capítulo a Literatura e revolução, mas um capítulo de caráter mecânico e ritualista, sem um único insight significativo.

Penso que essa hostilidade e esse silêncio coletivos têm a ver precisamente com o problema já referido: a predominância do estalinismo e de concepções estalinistas às quais esses intelectuais ou se acomodaram, ou à qual em todo caso não conseguiram oferecer nenhuma alternativa coerente e desenvolvida.

A hostilidade ainda hoje dirigida a Literatura e revolução é completamente coerente se levarmos em conta que a obra foi de fato um dos primeiros marcos na luta dos marxistas na URSS para resistir à ascensão da burocracia. Ela forneceu uma perspectiva na arte, na vida e na sociedade, completamente estranha ao horizonte das camadas complacentes, nacionalistas e pequeno-burguesas que compunham o campo stalinista—e completamente estranha, pode-se somar, ao horizonte da nossa esquerda pequeno-burguesa contemporânea. Ao defender a tradição marxista genuína da crítica literária, através de sua aplicação aos problemas culturais então correntes, Trotski lançou uma alternativa à exasperante atmosfera social encorajada pelo grupo dominante.

As circunstâncias nas quais o livro foi escrito têm certo significado. No verão de 1922, durante suas férias, Trotski dedicou-se a escrever um prefácio a um conjunto de ensaios pré-revolucionários sobre literatura, que os editores do Estado soviético pretendiam lançar como um volume especial de suas obras. O prefácio, um exame da evolução da vida literária soviética desde 1917, cresceu e permaneceu inacabado em 1922. No verão seguinte Trotski retornou a ele a completou o trabalho, chamando-o de Literatura e revolução.

Em outras palavras, Trotski escreveu seu livro ao longo do ano imediatamente anterior à formação da Oposição de Esquerda em 1923, e ao começo da luta declarada contra a casta burocrática na URSS. Foi um período marcado por acontecimentos trágicos e de mau-agouro: os últimos dias da vida política de Lênin; a campanha de difamação contra Trotski, conduzida pelo triunvirato de Stalin, Zinoviev e Kamenev; a consolidação do regime fascista de Mussolini na Itália; a contra-revolução na Bulgária, ajudada pela passividade do Partido Comunista; a crise revolucionária na Alemanha, provocada pela ocupação francesa do rio Ruhr e a falência total da coragem política por Stalin e Zinoviev e pela liderança do Partido Comunista alemão na outono de 1923.

Sei que há os que acreditam que Trotski cometeu um erro político ao se devotar a uma obra sobre arte numa época de eventos tão graves. Penso que essa visão é um pouco estreita, mas admito que tenho uma propensão pessoal. Acredito que Literatura e revolução seja uma obra insubstituível; não posso imaginar não tê-la como guia e uma fonte de conhecimento. Mas posso dar uma justificativa mais substancial.

Com a baixa na onda de lutas insurrecionais que se seguiram ao fim da Primeira Guerra Mundial, o regime bolchevique encarou um período mais ou menos prolongado como um estado proletário isolado. Lênin, antes que a doença o forçasse à inatividade, alertou claramente contra os perigos ao regime revolucionário representados pelo legado do atraso econômico e cultural russo, inclusive seu reflexo no Partido Bolchevique. Colaborador de Lênin nas primeiras batalhas contra os elementos conservadores e burocráticos, Trotski, quando da morte de Lênin, assumiu o desafio de elaborar uma resposta marxista aos novos problemas que confrontavam o partido e o regime.

O fato de Trotski procurar as respostas também dedicando-se ao trabalho sobre os problemas culturais certamente expressou sua percepção de que o futuro da União Soviética não dependia simplesmente da elaboração do programa político apropriado, muito menos do lançamento de certos slogans ou do desenvolvimento de táticas engenhosas. No primeiro ensaio do que viria a compor a obra chamada Questões do modo de vida, publicado em julho de 1923, Trotski expressava bem diretamente sua frustração com relação a esse enfoque. Claro, isso foi antes da organização da Oposição de Esquerda e não responde diretamente à questão de organizar uma resistência à facção dominante, mas acho que sua posição reflete claramente seu pensamento naquele momento.

O artigo chama-se Nem só de política vive o homem, e Trotski começa apontando a relevância dessa frase: “Essa simples idéia, é preciso que a compreendamos de uma vez por todas e que nunca a esqueçamos na nossa propaganda oral e escrita. Cada época tem a sua divisa. A história pré-revolucionária do nosso partido foi uma história de política revolucionária. A literatura de partido, as organizações de partido, tudo se encontrava submetido à política no sentido direto e estreito da palavra... Atualmente, a classe trabalhadora têm clareza das conseqüências fundamentais da revolução. A repetição mecânica da história dessas conseqüências nada lhe trará de novo; antes poderá desvanecer na sua consciência as lições do passado... nossas tarefas fundamentais deslocaram-se para o campo da reconstrução econômica e cultural.” [grifos meus]

Os trabalhadores russos, Trotski apontava, romperam de forma relativamente fácil com a burguesia russa, que nunca lhes dera nada; mas ele complementava: “a história não dá nada de graça: se faz um desconto numa coisa, sobre política, vai recuperá-lo por outro lado, sobre a cultura.”

Trotski, em todos os seus escritos desse período, identifica claramente um “monstruoso” (ele usa esse adjetivo repetidamente) atraso espiritual e cultural como o principal obstáculo ao lançamento de fundações socialistas na URSS e como uma das realidades sociais principais que contribuem para a emergência de uma casta burocrática bruta, egoísta e ignorante.

Seus principais escritos e observações da vida cultural e social de meados dos anos 1920—Literatura e revolução; Questões do modo de vida; Cultura e socialismo; a discussão do partido conhecida como Classe e arte; Rádio, ciência, tecnologia e sociedade; Jovens, estudem política! e muitas outras obras—constituem um corpo extraordinário de conhecimento objetivo, assim como um dos argumentos mais fortes a favor da reorganização socialista das relações humanas.

Seria completamente errôneo insinuar que há algo fatalista na postura de Trotski com relação à situação na URSS, ou que ele estaria resignado com a vitória da facção stalinista, mas ele claramente reconhecia que a única base possível para o sucesso da tendência marxista era uma mudança profunda no nível cultural das massas soviéticas, e ele iniciou o trabalho para que houvesse essa mudança. Sabemos que os marxistas não conseguiram evitar o crescimento do câncer burocrático, mas isso não serve como argumento contra os esforços de Trotski. Sua obra demonstra hoje ser uma das armas mais valiosas que possuímos na nossa luta por criar um clima favorável ao crescimento de idéias socialistas.

Marxismo versus cultura proletária

Literatura e Revolução, Cultura e Socialismo e Classe e Arte formam um substancial e densamente argumentado conjunto de trabalhos. Seria inapropriado, mesmo se eu estivesse apto, fazer uma revisão de todas as questões que eles colocam. Para nossos objetivos de agora, que inclui considerar as implicações desta história para nosso próprio trabalho, como prover respostas para as colocações que eu levantei antes em relação à carta de Mr. Evans, será muito oportuno se concentrar nos seguintes problemas: o que é cultura, incluindo cultura espiritual, de um ponto de vista histórico e científico? Qual é o valor e quais são as limitações de aplicar um critério de classe para cultura e arte? Quais são as contribuições que arte e experiências estéticas em si fazem para gerar a libertação do homem?

Eu gostaria de esclarecer esta parte de minha exposição da seguinte maneira. Se nós parecemos aprovar aqui a “contribuição” dada pela arte, isto não deve ser interpretado em um sentido estreito, utilitário, e nem deve ser visto com a implicação de que os artistas precisem de um “selo de aprovação” de nossa parte para seguirem adiante com seus trabalhos. As obras de arte têm influenciado os homens profundamente, já há muito tempo, e continuariam a influenciar mesmo que nós não as aprovássemos. O entendimento de que uma das nossas tarefas é a de dar a benção marxista a este ou aquele trabalho, artista ou estilo sempre me irritou profundamente, e ainda vejo traços dessa postura em alguns artigos que aparecem na nossa produção.

Em outras palavras, nós não iniciamos uma reflexão sobre a estética marxista tendo em mente questões como a de recomendar ou não um drama do período elisabetano ou uma pintura do quatroccento ou quintoccento para os trabalhadores. É um pressuposto desta exposição de que somos tão fervorosos em nosso partido de criação artística e livre acesso aos seus produtos quanto em relação ao direito—e à responsabilidade—dos cientistas de explorar o universo físico e fazer suas descobertas conhecidas para o maior público possível. Estamos falando em avanços objetivos feitos pela mente humana, e isso não admite questionamentos. Isto tem implicações na maneira que tratamos as questões culturais e históricas. Nós fazemos esta resenha com uma concepção e objetivo claros e determinados.

Em tudo que Trotsky disse e escreveu sobre arte e cultura entre 1922 e 1926 ele estava respondendo, pelo menos em parte, ao desafio teórico e político representado pelos setores da classe média, que giravam em torno da liderança de Stalin e que, junto com o Partido Comunista, estavam transformando o marxismo em um vulgar e esquemático substituto das análises sérias. Uma das formas que este esquematismo tomou, à qual fiz referência anteriormente, foi a da identificação não-crítica da revolução burguesa com a revolução proletária. Isto quase sempre vinha de mãos dadas com a elaboração de teorias que afirmam ser tarefa da classe trabalhadora soviética descartar todas as conquistas culturais do passado e construir sua própria cultura, a “cultura proletária”.

De acordo com esta concepção anti-marxista, que não foi característica do movimento Proletcult unicamente, mas que teve consideráveis influências nos círculos partidários, os desenvolvimentos culturais do passado da humanidade estavam incuravelmente infectados com influências de classe. O que a antiga intelectualidade da Rússia capitalista e aristocrática, por exemplo, poderia dizer aos cidadãos do novo estado dos trabalhadores?

Este tipo de argumentação ecoou no pensamento populista do século XIX mais do que no marxismo clássico. Ao lermos O que é arte? de Tolstoi, escrito em 1896 seguindo seu “renascimento espiritual”, achamos formulações parecidas. Ele denuncia a arte contemporânea como cultura da classe superior, que poderia somente “evocar no trabalhador perplexidade e desprezo ou indignação.” Ele deixa espaço somente para dois tipos de arte, a arte cristã, e a arte que transmitiria “os sentimentos mais simples da vida comum... a arte de um povo—a arte universal.” Assim, o resto da arte “deveria ser jogada fora, negada e desprezada.” O ponto, é claro, não é misturar o novelista Tolstoi com a burocracia stalinista; estamos falando de certas correntes ideológicas e de classe.

A atitude de Trostsky era um tanto diferente. E a de Lenin também, é claro. Como um ponto de referência, pode-se considerar a resolução em que Lênin escreveu em resposta ao que considerou ser comentários favoráveis à Cultura Proletária, feitos por Lunacharsky em outubro de 1920. Um trecho da resolução: “o marxismo ganhou seu significado histórico como a ideologia do proletário revolucionário porque, longe de rejeitar os mais valiosos desenvolvimentos da época burguesa, ele assimilou e remodelou tudo o que havia de valor nos mais de 2 mil anos de desenvolvimento do pensamento e da cultura humana.”.

Trotsky, em Cultura e Socialismo, define cultura como “tudo que já foi criado, construído, aprendido, conquistado pelo homem no curso de toda a sua história, em distinção do que foi feito pela natureza”.

E, depois disso, aponta a contradição que está no cerne dos avanços da cultura humana, e escreve: “consideramos como certa a afirmação básica de que a cultura nasceu da luta do homem com a natureza, um luta pela existência, pela melhoria de suas condições de vida, pelo crescimento de seu poder. Mas desta base também nasceram as classes... Isso significa que a cultura, ao longo da história, adquiriu um caráter de classe... Mas será que isso significa que somos contra toda a cultura do passado?

“Aqui existe, na verdade, uma profunda contradição. Tudo que foi conquistado, criado, construído pelos esforços humanos e que serve para elevar o poder do homem é cultura. Mas como isso não é uma questão do homem individual, mas sim do homem social ... a cultura é vista como o instrumento básico da opressão de classes.”

E mesmo assim, aponta Trotski, “apelamos aos trabalhadores para que estudem e dominem esta cultura”. Como isso é possível? Ele nota que muitos tropeçaram nesta contradição, esquecendo que fundamentalmente a sociedade de classes é a organização da produção.

“Qual”, continua Trotsky, “é a base fundamental—a organização de classes da sociedade ou suas forças produtivas? Sem dúvida as forças produtivas... Nas forças produtivas está expressa a materialização da habilidade econômica humana, a sua habilidade histórica de assegurar a existência do homem.” [minha ênfase]

Penso que isto é muito importante para nossa presente discussão. Trotsky está enfatizando, parece-me, o princípio da cultura como uma conquista objetiva da humanidade, como a forma materializada de suas habilidades historicamente adquiridas, como um absoluto, acima de sua característica de classe, o seu transitório e relativo repositório. Mais tarde voltarei a este ponto.

A arte, como uma forma de cultura espiritual, tem também este caráter objetivo, na visão de Trotsky. “É uma das maneiras com que o homem encontrou sua posição no mundo; neste sentido a herança da arte não é distinta da herança da ciência e tecnologia—e é tão contraditória quanto estas últimas. Diferente da ciência, em qualquer situação, a arte é uma forma de cognição do mundo, não como um sistema de leis, mas como um grupo de imagens.”

Este lado da questão foi exposto na sua forma mais trabalhada em A Arte como Cognição da Vida de Aleksandr Voronsky. Voronsky era uma figura da crítica na vida literária soviética, foi membro da Oposição de Esquerda e, em 1937, vítima do genocídio anti-socialista de Stalin. Como muitos de vocês devem saber, em breve estaremos publicando uma importante seleção destes artigos e colocações. Voronsky escreveu: “como a ciência, arte cogniza a vida. Tanto a arte como a ciência têm o mesmo sujeito: a vida, a realidade. Mas a ciência analisa, a arte sintetiza, a ciência é abstrata, a arte é concreta; a ciência se refere à mente humana, a arte à sua natureza sensorial. A ciência compreende a vida com ajuda dos conceitos, a arte com a colaboração de imagens na forma de uma contemplação viva, sensorial ...o poeta, o artista genuíno é aquele que vê as idéias.”

Não é difícil ver que esta análise prometia resultados muito mais ricos e recompensadores de que aquela análise levantada pela fórmula simplista da “cultura proletária.” Em Literatura e Revolução Trotsky aplicou as concepções marxistas na vida literária soviética e nos problemas da criação artística, com resultados extraordinários.

Diferente dos nossos críticos contemporâneos, “teorico-críticos”, que escrevem infindáveis, contemplativas e abstratas teses que nunca lançam nenhum esclarecimento sobre o atual desenvolvimento da arte e não ajudam em nada os seus criadores, Trotsky se aplicou com afinco numa discussão muito concreta sobre várias tendências, trabalhos e figuras individuais da literatura russa e soviética. Suas análises das carreiras e escritos de Alexander Blok, Boris Pilnyak e Vladimir Maiakovski, por exemplo, são modelos de crítica marxista.

Ao longo de todo o livro o tom de Trotsky nunca é arrogante, nem condescendente. Ele diz o que pensa, com força, sem nenhum traço de provocação ou petulância. Ele está realizando diversas tarefas de uma só vez: tentando elevar o nível cultural dos trabalhadores soviéticos e dos membros do partido, polemizando contra aquilo que considerava falso e restrito na concepção de cultura, e engajando os próprios artistas—na medida em que estes poderiam estar interessados em participar—em um diálogo sobre as perspectivas artísticas e sociais.

Ele define precisamente o que pensa ser o seu papel e do partido marxista: “existem domínios em que o partido lidera, diretamente e imperativamente. Há outros domínios em que o partido apenas coopera. E existem, finalmente, domínios onde o partido apenas orienta. O campo da arte não é um dos que o partido é chamado a comandar. O partido pode e deve proteger e ajudar a arte, mas somente pode orientar indiretamente.” O que o método marxista pode fazer, ele sugere, é “ajudar as tendências mais progressistas com uma iluminação crítica dos caminhos a serem trilhados”. Literatura e Revolução, em minha opinião, incorpora este processo de “iluminação crítica.”.

Gostaria agora de voltar à oposição entre estética marxista e as várias teorias da “cultura proletária”, que nos traz ao cerne de nosso assunto de hoje e ao cerne de nossas diferenças com Mr. Evans.

O que está realmente em pauta aqui? Talvez neste ponto eu possa falar menos formalmente.

O que nós valorizamos na arte? O Sr. Evans e outros sugerem que o papel da arte deveria ser o de prover uma perspectiva realista para a luta de classes. Ele está, assim, no meu ponto de vista, exigindo ao mesmo tempo muito e muito pouco da arte. Além do mais, se o propósito da arte é o de iluminar a realidade da luta de classes moderna, o que se torna a cultura do passado? Devo admitir que estou temeroso em perguntar. Tudo escrito antes de 1848 ou 1871 ou 1917, ou qualquer data que não estiver nestes períodos, é aparentemente jogado na lata de lixo. Mas e a pintura, abstrata ou qualquer outra, a música instrumental, a arquitetura, e outras dúzias de formas artísticas que não têm nenhum valor prático para a causa proletária? Vão para o lixo também. Nós sabemos perfeitamente para onde este tipo de pensamento leva, e nós rejeitamos isso.

Vamos retornar ao problema da cultura do passado. Por que as pessoas continuam a ler Homero ou Dante ou Shakespeare? Em 1990 o lançamento de numa nova tradução da Ilíada para o inglês foi considerado um grande evento intelectual. Os estudiosos estimam que o trabalho de Homero foi escrito 2700 anos atrás. A Ilíada reconta certos episódios que o autor diz terem acontecido no ano final da guerra de Tróia, centrando a história na fúria de Aquiles e suas conseqüências fatais para as forças gregas. Os deuses intervieram no campo de batalha, conspiraram uns contra os outros, favoreceram um herói de um exército ou outro; todos os tipos de acontecimentos improváveis aconteceram. Centenas de centenas de exemplares da nova tradução foram vendidos. Isto pode ser explicado meramente como uma afetação do público comprador de livros? Ou o resultado de um inexplicável interesse em um fragmento da história da Grécia antiga ou mitologia? Eu não acredito nisso. Eu cito este exemplo para indicar que uma aproximação pragmática, ultra-utilitária da estética não diz nada sobre o poder ou valor duradouro da arte.

Precisamente este tema foi no cerne da discussão do partido, acontecida em maio de 1924, em que Trotsky interveio brilhantemente, e que sua intervenção hoje nos é conhecida como Classe e Arte. Naquele dia, antes de Trotski aconteceu a intervenção do líder bolchevique Fyodor Raskolnikov. Em sua fala, este afirmou que o valor da Divina Comedia para o leitor moderno estaria no fato de que a obra de Dante o habilitaria a entender a psicologia de uma certa classe em determinada época.

Em seus comentários, Trotsky nota que esta visão da obra de arte ignorava o que as teria feito obras de arte. Raskolnikov transformava a Divina Comédia em um mero documento histórico. Uma obra de arte, observa Trotsky, precisa de alguma forma fazer sentido para o leitor ou espectador, precisa mover, inspirar, deprimir a ela ou a ele. Uma abordagem histórica pode ser útil, mas não pode ser confundida com uma abordagem estética. Como é possível, Trotsky pergunta, ter alguma relação estética direta entre o leitor moderno e um livro escrito no século XIV? E responde: porque na sociedade, tirando as grandes variações nas circunstâncias sociais imediatas, existem alguns aspectos comuns, que persistem. O gênio do artista é capaz de registrar esses elementos comuns, e os sentimentos e pensamentos que provocam, transformando-os em imagens de uma maneira tão insolúvel que descobrimos que eles fazem sentido para nós também, apesar de estarmos a centenas e até milhares de anos de distância da criação das obras.

Trotsky usa como exemplo o medo da morte. A manifestação deste medo mudou ao longo das épocas e nos diferentes ambientes sociais. Mas, de qualquer maneira, o que Shakespeare, Byron, Goethe ou o Antigo Testamento falam sobre a morte ainda nos comove e nos afeta.

Ele pergunta porque recomendar Pushkin aos trabalhadores. Seria porque se desejava que estes entendessem como o nobre e o senhor feudal lidavam com as mudanças de estação? Claramente não. É claro que este elemento social existe, “mas a expressão que Pushkin traz aos seus sentimentos é tão saturada com a experiência artística e psicológica de séculos, uma experiência tão cristalizada que perdurou até nossos dias... E, quando alguém me diz que o significado artístico de Dante para nós está em expressar o modo de vida de certa época, quase desisto da discussão, em desespero.”

Aqui chegamos ao ponto. Nós gostamos de Dante não por que ele era um pequeno burguês florentino dos séculos XIII e XIV, “mas, em certa medida, apesar destas circunstâncias”.

Apesar deste elemento histórico da arte, motivado e determinado por um caráter de classe, existe nas obras-primas algo que transcende a história, algo objetivamente verdadeiro, um componente relativamente universal. E este componente—que contém grãos de verdade absoluta—é o principal, é o que há de mais interessante para nós. Certamente alguém pode dizer que este é um dos elementos que definem uma grande obra de arte: não ficamos impressionados com a imediatez ou com o caráter de classe da obra, mas sim com o fato de que esta, além de captar o imediato e o efêmero, eleva a experiência de uma época a uma magnitude artística tremenda. O caráter de Aquiles de Homero, queiramos ou não acreditar que sua mãe fosse uma deusa do mar, ainda nos afeta; a descrição artística de sua fúria, seu orgulho, seus ciúmes, continua a nos tocar como uma representação de algo verdadeiro sobre os seres humanos.

Tudo isso significa que a aplicação de análise ou critérios de classe não tem nenhum valor? Não, absolutamente. Esta é uma parte essencial da crítica de qualquer obra de arte, porque reflete a realidade da vida social, a realidade que gerou a obra. Somente o marxismo pode explicar como e porque certa tendência surgiu em determinada época—e que força social ou realidade provocou o impulso psicológico deste ou daquele trabalho. “A criação artística é sempre uma complicada reversão das velhas formas”, Trotsky explica, “sob a influência de um novo estímulo originado fora da própria arte”. A arte “não é um elemento solto se alimentando de si mesmo, mas uma função social do homem,” tanto quanto a ciência, filosofia ou qualquer outra forma de consciência social.

Mas a tarefa de esclarecer as circunstâncias sociais e históricas em que uma obra específica surgiu não pode ser confundida com a tarefa de avaliá-la sob uma perspectiva estética, o que acontece com freqüência. Mesmo tendo esclarecido a visão de classe de um diretor ou novelista, nosso trabalho ainda não está pronto, não está nem pela metade, para ser sincero. Eu reconheço que superar este tipo de abordagem não é simples - é o resultado mais freqüente da inexperiência, e não de má-vontade - mas devemos dizer claramente que isto não basta para uma estética marxista.

Deve haver uma tentativa de confrontar os novos pensamentos e sensações que a obra evoca, o atual conteúdo da experiência estética em si. Aqui concordo com o comentário de Breton que diz: “qualquer especulação sobre uma obra de arte é mais ou menos fútil se falhar em revelar alguma coisa sobre o centro da questão: mais especificamente, o segredo da atração exercida por aquela obra.” Que processo psíquico a obra iniciou, ou falhou em iniciar, dentro de nós?

Retornando à União Soviética, em 1923 o slogan da “cultura proletária” parecia ser para muitos inteiramente compatível com o marxismo, um slogan militante, um slogan com princípio. Mas que processos sociais estão por trás dessa repentina popularidade? A quais interesses este pensamento—e as teorias similares que hoje reaparecem—correspondem?

Trotsky argumentou contra o programa da cultura proletária na seguinte base: os seus defensores de basearam, como mencionei anteriormente, em analogias vulgares entre as revoluções burguesas e as proletárias. A burguesia tomou o poder e deu vida à cultura burguesa, e, portanto, a revolução proletária erguerá a cultura proletária—a fórmula é simples assim. Existe apenas uma dificuldade neste argumento. Os marxistas, incluindo os bolcheviques, não viam a tomada de poder pela classe trabalhadora como uma inauguração de uma época histórica inteira de domínio proletário, mas sim uma transição para o socialismo, isto é, para uma sociedade sem classes—e para uma cultura sem classes. A cultura proletária, Trotsky afirma categoricamente, “nunca existirá, por que o regime proletário é temporário e transitório.”.

Aqui, é claro, encontra-se a chave da discórdia—nesse ponto estão duas perspectivas totalmente opostas. Trotsky, defensor dos prognósticos bolcheviques de 1917, começa pelo programa da revolução socialista mundial. Por isso a sua visão da situação política e cultural da União Soviética: “nós somos, como antes, meros soldados em campanha. Acampamos por um dia. Nossa camisa deve ser lavada, o cabelo deve ser cortado e arrumado e, o mais importante de tudo, o rifle deve ser limpo e receber óleo. Todo nosso trabalho econômico e cultural atual é nada mais do que nos colocar entre duas batalhas e duas campanhas... Nossa época ainda não é a época da nova cultura, mas apenas a entrada nesta época”.

Qualquer um pode imaginar o tipo de reação furiosa que este argumento provocou no confortável nepman ou no oficial de estado que desejava, acima de qualquer coisa, se distanciar das demandas de uma revolução mundial e aproveitar o que ele acreditava ser seu espaço na recém-estabilizada ordem soviética. A alegação da nascente burocracia e seus parasitas pequeno-burgueses era a de que o estado soviético encontraria um período extenso de desenvolvimento isolado. Durante este período uma “cultura proletária” poderia florescer aceitando implicitamente a continuação da existência do capitalismo fora da URSS e a necessidade de se ajustar a este estado de coisas.

O apoio à “arte proletária” foi um reflexo, no campo da cultura, do mesmo profundo ceticismo em relação à capacidade revolucionária da classe operária e ao potencial de superação internacional do capitalismo; este ceticismo encontrou a sua expressão, no campo da política, no programa do “socialismo em um só país”. Apesar de sua sonoridade de “esquerda”, a cultura proletária sempre acompanhou políticas nacionalistas, oportunistas e reformistas.

Os defensores da cultura proletária denunciavam a preocupação com valores estéticos e o refinamento da arte em geral.Trotsky respondia: “eles dizem ‘dê-nos algo que pode mesmo ser malfeito, ruim, desde que seja nosso’ Isto é falso e mentiroso. Uma arte ‘ruim’ não é arte e portanto não é necessária para as massas trabalhadoras. Aqueles que acreditam em uma arte ‘ruim’ estão imbuídos do desprezo pelas massas”.

Os revolucionários não devem glorificar ou idealizar a vida da classe trabalhadora, a vida dos oprimidos, seja imediatamente depois de uma revolução socialista, como no caso de Trotsky, ou antes dela, como no nosso caso. Fazemos este julgamento com sobriedade. Mas, neste caso, há um agrupamento social cujo interesse é enaltecer as virtudes da “cultura da classe trabalhadora” em sua existência atual; para obstruir qualquer tentativa de elevar o nível intelectual do povo; para dirigir a atenção dos trabalhadores para as questões mais imediatas e banais; para trazer para si o direito de decidir ou não o que os trabalhadores podem ver; para rejeitar como “esotérico” ou “decadente” qualquer coisa que não consiga entender. Em que grupo social esse tipo de pensamento é comum? Justamente na classe média que vive parasitariamente fora da condição de opressão do proletariado: a burocracia trabalhista, seja ela stalinista, social-democrata reformista ou do sindicalismo norte-americano.

Insisto que a predominância, ao longo de todo um período histórico, de concepções anti-marxistas hostis ao valor estético na arte, incluindo invariavelmente “conversas disformes” (como disse Trotsky) sobre a possibilidade de uma cultura proletária independente, esteve estreitamente ligada ao domínio da burocracia sobre a classe trabalhadora, às custas do movimento socialista. Os propositores da cultura proletária e da utilidade social como únicos critérios na arte são essencialmente os representantes desta burocracia da intelligentsia pequeno-burguesa. E ainda diria que, como indiquei no início do texto, se hoje somos capazes de manter essa discussão—do ponto de vista de suas bases objetivas—é por que esta burocracia está morrendo, tendo se mostrado imprestável e apodrecida; estamos agora em uma posição muito melhor para nos libertarmos destas falsas teorias estéticas, assim como estamos em uma posição muito mais favorável para ajudar os trabalhadores a se libertarem das amarras colocadas pelo controle burocrático destes aparelhos.

Eu deveria acrescentar, como uma nota pessoal, que ainda não encontrei um único trabalhador consciente, de pensamento socialista, que deseje ver apenas filmes, peças ou livros que tratem da vida da classe trabalhadora e a luta de classes moderna exclusivamente. Trabalhadores verdadeiramente revolucionários desejam se educar em todos os aspectos da vida, da história e da cultura. Também nunca vi nenhum trabalhador consciente que tenha se sentido acuado por alguma dificuldade ou pela experimentação em arte, mesmo que achasse que esta estivesse acima de sua compreensão; isso desde que a obra tenha sido produzida com honestidade, não apenas pela aparência. Por termos uma confiança na classe trabalhadora não sentimos a necessidade de estabelecer prescrições do que deve ou não ser discutido. Este é o espírito de O que fazer” assim como de Literatura e Revolução.

Enquanto estamos tratando de tabus, aproveito para mencionar os resquícios de decoro que ainda nos ressentimos por vezes. Eu não posso resistir em citar um artigo de Engels, escrito em 1883 para o Sozialdemokrat. Não é necessário citar Engels para provar o que quero dizer, mas o artigo é delicioso.

O texto era um tributo ao poeta e revolucionário alemão Georg Weerth, que foi editor cultural do Neue Rheinische Zeitung, o jornal editado por Marx e Engels em1848-49.

Engels escreveu: “Existe apenas uma coisa na qual Weerth era insuperável, e aqui ele tinha mais maestria do que Heine (por ser mais saudável e menos artificial)—apenas Goethe na língua alemã o superou nisso: na expressão de uma sensualidade natural e robusta e das manifestações da carne. Muitos leitores do Sozialdemokrat ficariam horrorizados, se eu republicasse aqui no Neue Rheinische Zeitung os folhetins deste autor. Não tenho a mínima intenção de fazê-lo, mas não posso me omitir de apontar que chegará uma hora quando os socialistas alemães também irão de maneira triunfal superar os últimos traços dos preconceitos filistinos e desse decoro moralista e hipócrita—que só servem como fachada para obscenidades secretas...

“É um tempo áureo para que os trabalhadores alemães se acostumem a falar de uma maneira livre e fácil como as pessoas das terras românicas, como Homero e Platão, Horácio e Juvenal, como o Velho Testamento e o Neue Rheinische Zeitung, sobre as coisas que elas mesmo fazem durante o dia ou a noite, estas naturais, indispensáveis e altamente gratificantes coisas.”

Arte e revolução social

Como você pode se lembrar, Trotsky perguntou em Classe e Arte porque os marxistas recomendavam Pushkin—um poeta da classe proprietária feudal—para os trabalhadores. Eu gostaria de voltar para essa questão novamente, como ela nos mostra ainda mais concreta avançando na relação entre arte e revolução social.

O Sr. Evans se opõe à expressão “experiência espiritual.” Apesar dessa objeção, o empobrecimento espiritual de amplas camadas da população se mantém como um obstáculo muito real e material para o desenvolvimento de um movimento socialista. Os marxistas se deparam com o desafio considerável de criar um público que consiga compreender e responder a seu programa político e suas perspectivas. Menosprezar a necessidade de uma ascensão da consciência popular nas condições atuais parece ser uma grande irresponsabilidade.

Como surge uma revolução? Seria ela simplesmente o produto da agitação e propaganda socialista realizadas em condições objetivas favoráveis? Foi assim que a Revolução Russa aconteceu? Nós estivemos por muito tempo, como partido, pensando sobre isso. Uma de nossas conclusões foi de que a revolução de 1917 não foi um simples produto de um processo político-social nacional ou mesmo internacional: a revolução foi o resultado de um esforço de várias décadas, para construir um cultura socialista internacionalista, uma cultura que trouxe à sua órbita e assimilou as maiores conquistas do pensamento político e social burguês, da arte e da ciência. A bases intelectuais essenciais para a revolução de 1917 estavam estabelecidas, claramente, por aqueles teóricos políticos e revolucionários que conscientemente fizeram o fim do modo de produção capitalista a sua meta principal. Mas os percursos e contribuições que alimentam isso e fazem possível um levante revolucionário são inúmeros, um complexo sistema de influências que interagem, contradizem e reforçam umas às outras.

A criação de um ambiente no qual se torna repentinamente possível que um grande número de pessoas se levantem e conscientemente orquestrem o desmantelamento da velha sociedade, deixando de lado todos os preconceitos, hábitos e comportamentos de décadas, até mesmo séculos; preconceitos, hábitos e comportamentos que inevitavelmente criaram vida própria, que têm aparentemente um grande poder de permanência; a superação da inércia histórica e a criação de um clima para insurreição não pode ser concebido meramente como uma tarefa política.

Nós reconhecemos que todos ser humanos socialista perfeito é uma criatura do futuro—de um futuro não muito distante, acreditamos. Mas isso não é a mesma coisa que dizer que não devem haver mudanças nos corações e mentes das massas, antes da revolução social se tornar realidade. Nós vivemos em uma época marcada pela estagnação e declínio cultural, na qual as maravilhas da técnica são usadas prioritariamente na tentativa de anestesiar e paralisar as pessoas, como também para as deixar vulneráveis às concepções e aos temperamentos mais atrasados.

O aprofundamento das faculdades críticas da população—sua habilidade coletiva de distinguir verdades de mentiras, o essencial do dispensável, seus próprios interesses elementares dos interesses de seus inimigos mortais—e a elevação de seus níveis espirituais ao ponto que um enorme número de pessoas demonstrarem nobreza, fazendo grandes sacrifícios, e pense apenas em seus companheiros homens e mulheres—todas as elevações do nível intelectual e moral devem ser produto de um avanço da cultura humana como um todo.

A arte expressa coisas sobre a vida, sobre pessoas e sobre o ser que não são reveladas pelo pensamento político ou científico; o seu grande poder consiste na possibilidade que tem de conectar os seres humanos, como com fios invisíveis, nos níveis mais profundos e íntimos. Para se tornarem completos, os seres humanos requerem a verdade sobre o mundo, e sobre si mesmos; verdade que a arte nos oferece.

Trotsky comenta no texto Cultura e Socialismo que a arte dos séculos passados fez com que o homem se tornasse mais complexo e flexível, elevando a mentalidade humana a um nível mais alto, enriquecendo-a de maneira versátil. Em Literatura e Revolução, após escrever que individualidade genuína é exatamente o que a maioria dos trabalhadores não tem, Trotsky sugere que a arte contribua para uma elevação “da qualidade objetiva e da consciência subjetiva da individualidade.” E continua: “o que um trabalhador tirará de Shakespeare, Pushkin, ou Dostoievski, será uma idéia mais complexa da personalidade humana, de suas paixões e sentimentos, um entendimento mais profundo das forças psicológicas, do papel do subconsciente etc. Em uma análise final, o trabalhador estará mais rico”.

E no que a qualidade perturbadora ou subversiva da arte consiste? Será que esta qualidade se manifesta exclusivamente através da apresentação de um conteúdo explicitamente social e político? Pode-se, no sentido contrário, falar da qualidade subversiva em uma peça de orquestra, ou de uma pintura abstrata, ou de um poema amoroso, ou de um filme popular? Certamente, acredito que sim.

O impulso para a liberdade, a luta por uma existência completa, repleta, psicológica e mentalmente, em oposição à realidade ingrata, é algo absoluto. O lirismo, diz Breton, é o começo de um protesto. Este protesto, conscientemente ou inconscientemente, é um elemento de todo trabalho criativo.

Uma obra de arte verdadeira surge para liberar forças poderosas no espectador. Eleva ao ponto de mais alta tensão, às “camadas mais profundas do mecanismo psíquico” (como chamou Freud), o conflito entre a vida como ela é hoje e aquela vida que existe apenas nos sonhos humanos. Os produtos da arte liberam energia libidinal e destrutiva, evoca necessidades e desejos que não podem ser satisfeitos nas circunstâncias imediatas do individuo ou no contexto da estrutura social opressiva, necessidades e desejos que demandam uma resposta, resposta que só pode ser encontrada na revolução social. Breton fala em percepções estéticas que “são surpreendentes e revolucionárias, no sentido de que gritam urgentemente por alguma resposta na realidade externa.”

Acredito que em alguns dos primeiros escritos de Marx, apesar de seu caráter político ainda não resolvido, dialogam com estas questões. Ele discorre brilhantemente sobre a luta e o desejo contínuos de libertação, um elemento nunca desaparece ao longo das épocas, não importando quanto desencorajantes as condições sociais estivessem, em relação aos esforços artísticos da humanidade.

E 1843, Marx escreveu: “assim, nosso mote deve ser: reforma da consciência não através de dogmas, mas pela análise da consciência mística que não permite o conhecimento de si mesma, esteja ela manifesta em uma forma religiosa ou política. Então se tornará evidente que o mundo há tempos sonha com uma coisa que do qual ele apenas precisa ter consciência para que possa possuí-la na realidade. Ficará evidente que a questão não é desenhar uma grande linha imaginária que separe passado, futuro e presente, mas de realizar os pensamentos do passado. E, por fim, se tornará evidente que a humanidade não estará começando um novo trabalho, mas conscientemente tornando realidade um antigo trabalho.” [minhas ênfases]

Trazer esta “coisa sonhada” para a vida consciente e inconsciente da humanidade é o trabalho eterno da arte.

Conclusão

Concluindo esta exposição, gostaria de voltar rapidamente para os nossos próprios desafios. O partido revolucionário tem imensas responsabilidades na esfera da arte hoje, e na cultura em geral. Chegamos à conclusão de que muito do que socialistas e artistas poderiam ter tomado como certo a 60 ou 70 anos atrás—uma hostilidade fundamental, por exemplo, à moral burguesa, ao patriotismo, às forças da lei e da ordem, à superstição religiosa—é praticamente ignorado pelos círculos intelectuais de hoje. A reconstrução de uma cultura, ou mais precisamente a construção de uma nova cultura, não é algo simples, que pode ser feito da noite para o dia.

Também insistimos que a chama do gênio humano não se apagou, mas que, bloqueada pelo impacto paralisante do estalinismo, se deslocou unilateralmente para aspectos científicos e técnicos, por meio século. Um renascimento artístico e social é inevitável. Talvez esta escola indique que isto já começou.

Usei a palavra “unilateral” algumas vezes neste artigo, talvez mais do que gostaria. Mandarei a precaução às favas e sugerirei, aqui, que declaremos guerra à unilateralidade. Os levantes sociais que virão precisarão de uma “multilateralidade” sem precedentes, por parte dos marxistas.

Espero que ninguém se choque aqui caso eu sugira que existem perigos objetivos na unilateralidade “revolucionária e política” que Trotsky descreveu—eu acredito—com palavras pesarosas em Literatura e Revolução. O aviso dado por André Breton, colocando-se contra a estreiteza do Partido Comunista estalinizado, na França de 30, não deve ser esquecido. “Quantos riscos o revolucionário não estaria assumindo”, Breton declarou, “se, para atingir seus objetivos, fosse contar apenas com a tensão de uma corda bamba, cuja distância inteira teria que ser vencida sem nenhum olhar para cima ou para baixo!”.

Gerry Healy, líder da Liga Socialista Trabalhadora Britânica e mais tarde do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (WRP), costumava dizer no final da década de 60 e começo de 70, admitindo candidamente a sua própria falta de conhecimento sobre os problemas culturais, que “nós não tivemos tempo para estudar essas coisas”. Não estou em posição para fazer um julgamento, ou de sugerir que tal estudo especializado fosse objetivamente possível no contexto das imensas dificuldades do movimento trotskista no pós-guerra. Estou apenas falando de fatos objetivos. Novamente, considero que a unilateralidade de nosso partido por um período histórico foi em parte conseqüência da predominância de burocracias reacionárias, ignorantes, burocracias trabalhistas anticomunistas, além do isolamento da tendência marxista.”.

Certamente não estou associando a degeneração da liderança do WRP, Healy, à ausência da devida atenção ao significado das questões culturais. Mas argumentarei que esse despreparo em uma série de questões o fizeram politicamente e teoricamente vulnerável quando um novo cenário de problemas surgiu na década de 70, incluindo principalmente o desafio representado pelo influxo dos intelectuais da classe média, e que seu despreparo provou ser um fator desestabilizador.

A história moderna demonstrou que toda crítica cultural através do capitalismo girou em torno do marxismo. Os artistas e intelectuais que estiverem atentos e que tiverem algo a dizer, inevitavelmente se aproximarão deste partido. Não poderemos então continuar a improvisar e configurar a nossa posição enquanto caminhamos.

Penso que esta escola e todo desenvolvimento do partido no ultimo período dão bases para uma forte confiança no futuro. Nosso partido tem uma bandeira clara. Somos os inimigos declarados do capitalismo e da burocracia. Nenhum outro movimento pode oferecer bases como estas aos trabalhadores. E nenhum outro movimento tem o mesmo apelo para os artistas. Assim, não tenho nenhuma razão para alterar as palavras com as quais Trotsky e Breton concluíram seu manifesto em 1938:

“Nossas metas:

A independência da arte para revolução.

A revolução para a completa libertação da arte!”