Desde o dia 03 de dezembro, os grandes fazendeiros da região
de Liniers na Argentina estão boicotando o fornecimento
de gado para abate. O boicote no fornecimento de carne é
um protesto da burguesia agrária contra as restrições
impostas pelo governo à exportação de carne
de gado.
O governo argentino limitou as exportações de
carne ao máximo de 45 mil toneladas mensais (cerca de 70%
da produção nacional). A medida do governo visa
garantir um abastecimento regular do produto no país, evitar
o aumento da inflação e manter os salários
dos trabalhadores num nível médio, já que
a carne de gado é um alimento básico do trabalhador
argentino. O governo de Kirchner justifica esta restrição
com discurso demagógico, dizendo ser uma política
social de apoio ao trabalhador e ao povo argentino em geral.
Apesar de parecer pairar acima dos conflitos e interesses das
classes e dizendo governar para todo o povo argentino, o governo
peronista de Kirchner é um governo claramente burguês
que já faz muitas concessões aos ruralistas. Mas,
precisa se equilibrar entre os diversos setores da burguesia instalada
no país. O que ele pretende agora ao controlar a oferta
de carnes no mercado nacional e ao garantir um preço mais
baixo do produto ao consumidor argentino é sustentar, para
toda a burguesia instalada no país, um preço estável
da força de trabalho e, deste modo, garantir as atuais
taxas de lucro, para todos os ramos da produção.
Claro que isto serve também para simular uma defesa dos
trabalhadores consumidores de carne.
Esta medida, no entanto, entra em choque com a sede de lucro
insaciável dos grandes produtores de carne que agora respondem
com o boicote. Essa burguesia agrária pretende usufruir
sem limites das vantagens de ser proprietária do pampa
argentino, local excelente para a criação de gado,
que lhe permite competitividade, sem igual, no comércio
internacional. O custo de produção de um kilo de
carne na Argentina é de 1,30 pesos e chega ao consumidor
final por cerca de 6,50 pesos. Esta diferença de preços
garante ao ruralista argentino uma taxa de lucro próxima
das taxas obtidas em qualquer outro setor econômico nacional.
No mercado mundial, contudo, esta mesma carne pode ser vendida
por 13 dólares o kilo (cerca de 40 pesos), isto é,
por um preço cerca de 30 vezes acima do preço nacional.
No mercado mundial esta mesma carne fornece ao ruralista argentino
um lucro exorbitante e extraordinariamente muito acima de todos
os outros setores da produção nacional.
Os ruralistas argentinos, porém, já desfrutam
de grandes subsídios estatais do governo Kirchner, subsídios
dados no preço do combustível e no da energia elétrica.
Portanto, existe já uma política estatal generosa
de controle indireto de preços aos insumos do setor. Assim
mesmo, os fazendeiros querem ainda desfrutar da liberdade total
de comércio sem qualquer intervenção do Estado.
Por um lado, eles exigem protecionismo do Estado na forma de subsídios
e, por outro, exigem deste mesmo Estado liberdade irrestrita de
comércio. Como se vê, a sede de lucro desse setor
é insaciável entrando em choque com outros setores
burgueses que pressionam o Estado.
Com o fim da dolarização da economia após
a crise de 2001 e a desvalorização cambial que se
seguiu, hoje 1 dólar vale cerca de 3 pesos, o setor agro-exportador
foi o que mais cresceu e lucrou no país. Nos últimos
três anos o preço da terra subiu cerca de 200% e
ingressaram no bolso dos fazendeiros, via exportações
agrícolas, cerca de 33 milhões de pesos a mais do
que nos anos anteriores.
Entre 1988 e 2002 o número de unidades produtivas no
campo foi reduzido em 25%, passando de 397.000 para 318.000. Na
província de Córdoba esta redução
percentual foi muita mais intensa, chegando a 34%. O despovoamento
do campo argentino é brutal e algumas regiões do
país se assemelham a gigantescos desertos de seres humanos,
onde só existe gado. Com a concentração fundiária
o tamanho médio de uma propriedade agrícola subiu
de 420 para 540 hectares.
Neste período, 1988-2002, cerca de 80.000 famílias
de pequenos proprietários perderam suas terras e tiveram
que migrar para as cidades. Muitas destas famílias compõem
parte do contingente de trabalhadores desocupados que povoam toda
a Argentina, contingente formado especialmente depois da grave
crise econômica de 2001 que arrasou a economia do país.
A insaciável sede do capital rural que não se
deixa frear por nenhuma barreira exterior, é o que explica
o boicote dos fazendeiros à oferta de carne no mercado
argentino, pondo em risco o abastecimento regular de um produto
de consumo habitual da população. Para os fazendeiros,
o argentino só teria direito a consumir sua carne caso
estivesse disposto a pagar por ela o preço internacional,
isto é, o preço pago pelos consumidores europeus.
Nesta greve ruralista fica explícito o que entendem
os fazendeiros argentinos por questão nacional. Para eles,
assim como para todo capitalista, a questão nacional se
mede pelo tamanho de suas próprias questões, isto
é, pelo tamanho de seus próprios interesses privados.
O caso do campo argentino evidencia com todas as letras que a
pátria amada e defendida pelo capital é a pátria
do dinheiro, e o dinheiro só possui como pátria
a sua auto-valorização, mesmo que isto custe deixar
de abastecer milhões de pessoas do seus alimentos básicos.
O exemplo dos fazendeiros argentinos se repete, de diversas
formas, em várias regiões da América Latina.
Fazem assim os exportadores de café, soja, laranja, frango
e outros produtos agrícolas. Enquanto amplos setores da
população latino-americana é privada de uma
alimentação saudável e suficiente, os grandes
proprietários agrícolas ganham milhões com
as suas exportações para o mercado mundial, e em
geral ainda com subsídios de governos que dizem representar
os trabalhadores. Evidentemente, às vezes, esses governos,
como é o caso agora do governo Kirchner, são pressionados
por outros setores da burguesia, que diante de tal política
agrícola exportadora, são prejudicados pelo encarecimento
excessivo da reprodução da força de trabalho
local.
Medidas restritivas ao setor exportador agrícola são
então tomadas, mas, apesar da propaganda demagógica
de sempre, longe de visarem o bem-estar dos trabalhadores locais
ou da nação, visam apenas equilibrar
as contas de outros setores do capital que, como aquele, somente
atuam como exploradores insaciáveis da força de
trabalho e procurando também, como aquele, colocar de forma
competitiva os seus produtos no mercado mundial.
Nesse sentido, hoje, mais do que nunca, com a integração
total do processo produtivo mundial, quando mesmo as pequenas
empresas são integradas em redes mundiais de distribuição
do grande capital, todas as medidas ou programas nacionalistas,
em geral, beneficiam somente este ou aquele setor da burguesia,
e dificilmente de forma duradoura propriamente os trabalhadores.
Hoje, mais do que nunca, todas as medidas nacionalistas,
em geral, escondem interesses capitalistas voltados para o mercado
mundial.