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Argentina: fazendeiros boicotam abastecimento de carne da população do país

Por Jadir Antunes
19 Dezembro 2006

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Desde o dia 03 de dezembro, os grandes fazendeiros da região de Liniers na Argentina estão boicotando o fornecimento de gado para abate. O boicote no fornecimento de carne é um protesto da burguesia agrária contra as restrições impostas pelo governo à exportação de carne de gado.

O governo argentino limitou as exportações de carne ao máximo de 45 mil toneladas mensais (cerca de 70% da produção nacional). A medida do governo visa garantir um abastecimento regular do produto no país, evitar o aumento da inflação e manter os salários dos trabalhadores num nível médio, já que a carne de gado é um alimento básico do trabalhador argentino. O governo de Kirchner justifica esta restrição com discurso demagógico, dizendo ser uma política social de apoio ao trabalhador e ao povo argentino em geral.

Apesar de parecer pairar acima dos conflitos e interesses das classes e dizendo governar para todo o povo argentino, o governo peronista de Kirchner é um governo claramente burguês que já faz muitas concessões aos ruralistas. Mas, precisa se equilibrar entre os diversos setores da burguesia instalada no país. O que ele pretende agora ao controlar a oferta de carnes no mercado nacional e ao garantir um preço mais baixo do produto ao consumidor argentino é sustentar, para toda a burguesia instalada no país, um preço estável da força de trabalho e, deste modo, garantir as atuais taxas de lucro, para todos os ramos da produção. Claro que isto serve também para simular uma defesa dos trabalhadores consumidores de carne.

Esta medida, no entanto, entra em choque com a sede de lucro insaciável dos grandes produtores de carne que agora respondem com o boicote. Essa burguesia agrária pretende usufruir sem limites das vantagens de ser proprietária do pampa argentino, local excelente para a criação de gado, que lhe permite competitividade, sem igual, no comércio internacional. O custo de produção de um kilo de carne na Argentina é de 1,30 pesos e chega ao consumidor final por cerca de 6,50 pesos. Esta diferença de preços garante ao ruralista argentino uma taxa de lucro próxima das taxas obtidas em qualquer outro setor econômico nacional.

No mercado mundial, contudo, esta mesma carne pode ser vendida por 13 dólares o kilo (cerca de 40 pesos), isto é, por um preço cerca de 30 vezes acima do preço nacional. No mercado mundial esta mesma carne fornece ao ruralista argentino um lucro exorbitante e extraordinariamente muito acima de todos os outros setores da produção nacional.

Os ruralistas argentinos, porém, já desfrutam de grandes subsídios estatais do governo Kirchner, subsídios dados no preço do combustível e no da energia elétrica. Portanto, existe já uma política estatal generosa de controle indireto de preços aos insumos do setor. Assim mesmo, os fazendeiros querem ainda desfrutar da liberdade total de comércio sem qualquer intervenção do Estado. Por um lado, eles exigem protecionismo do Estado na forma de subsídios e, por outro, exigem deste mesmo Estado liberdade irrestrita de comércio. Como se vê, a sede de lucro desse setor é insaciável entrando em choque com outros setores burgueses que pressionam o Estado.

Com o fim da dolarização da economia após a crise de 2001 e a desvalorização cambial que se seguiu, hoje 1 dólar vale cerca de 3 pesos, o setor agro-exportador foi o que mais cresceu e lucrou no país. Nos últimos três anos o preço da terra subiu cerca de 200% e ingressaram no bolso dos fazendeiros, via exportações agrícolas, cerca de 33 milhões de pesos a mais do que nos anos anteriores.

Entre 1988 e 2002 o número de unidades produtivas no campo foi reduzido em 25%, passando de 397.000 para 318.000. Na província de Córdoba esta redução percentual foi muita mais intensa, chegando a 34%. O despovoamento do campo argentino é brutal e algumas regiões do país se assemelham a gigantescos desertos de seres humanos, onde só existe gado. Com a concentração fundiária o tamanho médio de uma propriedade agrícola subiu de 420 para 540 hectares.

Neste período, 1988-2002, cerca de 80.000 famílias de pequenos proprietários perderam suas terras e tiveram que migrar para as cidades. Muitas destas famílias compõem parte do contingente de trabalhadores desocupados que povoam toda a Argentina, contingente formado especialmente depois da grave crise econômica de 2001 que arrasou a economia do país.

A insaciável sede do capital rural que não se deixa frear por nenhuma barreira exterior, é o que explica o boicote dos fazendeiros à oferta de carne no mercado argentino, pondo em risco o abastecimento regular de um produto de consumo habitual da população. Para os fazendeiros, o argentino só teria direito a consumir sua carne caso estivesse disposto a pagar por ela o preço internacional, isto é, o preço pago pelos consumidores europeus.

Nesta greve ruralista fica explícito o que entendem os fazendeiros argentinos por questão nacional. Para eles, assim como para todo capitalista, a questão nacional se mede pelo tamanho de suas próprias questões, isto é, pelo tamanho de seus próprios interesses privados. O caso do campo argentino evidencia com todas as letras que a pátria amada e defendida pelo capital é a pátria do dinheiro, e o dinheiro só possui como pátria a sua auto-valorização, mesmo que isto custe deixar de abastecer milhões de pessoas do seus alimentos básicos.

O exemplo dos fazendeiros argentinos se repete, de diversas formas, em várias regiões da América Latina. Fazem assim os exportadores de café, soja, laranja, frango e outros produtos agrícolas. Enquanto amplos setores da população latino-americana é privada de uma alimentação saudável e suficiente, os grandes proprietários agrícolas ganham milhões com as suas exportações para o mercado mundial, e em geral ainda com subsídios de governos que dizem representar os trabalhadores. Evidentemente, às vezes, esses governos, como é o caso agora do governo Kirchner, são pressionados por outros setores da burguesia, que diante de tal política agrícola exportadora, são prejudicados pelo encarecimento excessivo da reprodução da força de trabalho local.

Medidas restritivas ao setor exportador agrícola são então tomadas, mas, apesar da propaganda demagógica de sempre, longe de visarem o bem-estar dos trabalhadores locais ou da “nação”, visam apenas equilibrar as contas de outros setores do capital que, como aquele, somente atuam como exploradores insaciáveis da força de trabalho e procurando também, como aquele, colocar de forma competitiva os seus produtos no mercado mundial.

Nesse sentido, hoje, mais do que nunca, com a integração total do processo produtivo mundial, quando mesmo as pequenas empresas são integradas em redes mundiais de distribuição do grande capital, todas as medidas ou programas nacionalistas, em geral, beneficiam somente este ou aquele setor da burguesia, e dificilmente de forma duradoura propriamente os trabalhadores. Hoje, mais do que nunca, todas as medidas “nacionalistas”, em geral, escondem interesses capitalistas voltados para o mercado mundial.