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Crise no Brasil: o fim de um ciclo histórico

Por Hector Benoit
29 Setembro 2005

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A profunda crise que se desenvolve no governo do Partido dos Trabalhadores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva marca o fim de um longo ciclo da dominação burguesa no Brasil, inaugurado pela queda da ditadura militar, há mais de vinte anos.

Com a retirada dos militares, após vinte anos de ditadura, no início da década de 80, abria-se um novo ciclo de dominação burguesa no Brasil: setores da oligarquia conservadora e corrupta do Norte e Nordeste do país passaram a ter hegemonia no Estado brasileiro. Ex-aliados dos militares, políticos como José Sarney, Collor de Melo, Antônio Carlos Magalhães e Inocêncio de Oliveira, passaram a ser os "sócios" majoritários na administração do Estado brasileiro. Tratava-se já de uma espécie de "burguesia compradora" que servia como intermediária ao grande capital em troca de uma fatia da mais-valia que passava pelo Estado. [1]

Veio depois o primeiro governo do intelectual Fernando Henrique Cardoso. Parecia algo novo. Alegava pretender romper com esse "modelo arcaico" de utilização do Estado. Falava-se em "modernizar" o Estado brasileiro e até em realizar uma "revolução burguesa" no Brasil, como chegou a escrever Francisco Weffort. [2] Em artigo escrito naquela época, Weffort justificava a sua traição ao PT, anunciando que FH,c com os seus quadros saídos das principais universidades brasileiras, comandaria transformações estruturais no país, inseriria o Brasil no processo da globalização, superaria as estruturas arcaicas e garantiria um espaço honroso para o país no cenário internacional.

Ora, durante todo o primeiro mandato de FH,c nada do que se prometera foi realizado, permanecendo o presidente como refém do PFL (partido de direita) com o qual se aliara para obter maioria no Congresso. Antonio Carlos Magalhães, conservador senador do estado da Bahia, em certa época, chegou a controlar o Senado e a Câmara Federal conjuntamente. [3] FHC nada realizava de novo Seria algo temporário? A agenda "modernizadora" e "revolucionária" seria cumprida no segundo mandato? Grande ilusão. Na metade do segundo mandato presidencial, quando FHC conseguiu finalmente reduzir o poder da velha oligarquia do Norte e Nordeste, libertando-se de Magalhães e reduzindo o poder de Sarney, a crise econômica se encarregou de bloquear qualquer cumprimento das metas "modernizadoras" e o governo terminou, sem nada realizar, mais prisioneiro ainda do capital internacional e do FMI.

Ao final de oito anos de governo, FHC e os quadros universitários do PSDB mostraram-se quase tão incapazes como a conservadora oligarquia nordestina para realizar qualquer reforma mesmo elementar da sociedade brasileira. O doutor FH,c o grande sociólogo, teórico da dependência, um dos cérebros dos economistas do CEPAL, terminava a sua era de poder, melancolicamente, como a paródia culta dos corruptos Menen (Argentina) e Fujimori (Peru).

Mas, perguntamos: como foi possível que, após a retirada dos militares, desaparecendo qualquer amplo processo de repressão, todos esses governos fracassados e incompetentes (Sarney, Collor, Itamar Franco e FHC) não tenham sofrido qualquer oposição mais forte, qualquer movimentação de massas mais perigosa e conseqüente? [4] Como todos esses governos puderam aprofundar tanto a miséria e o desemprego, multiplicar a dívida pública (interna e externa), explorar os trabalhadores com salários sempre em queda, sem que surgisse qualquer movimento de massas revolucionário?

O papel do PT e da CUT

Certamente, isso só foi possível graças ao PT e à CUT (Central Única do Trabalhadores) [5] que bloquearam, desde os anos 80, o desenvolvimento de um partido revolucionário no Brasil. Desde os anos 80, com sucesso, PT e CUT ajudaram a abortar ou, pelo menos retardar, as diversas tentativas da criação de um partido revolucionário no Brasil. Como se sabe, os diversos agrupamentos de inspiração trotsquista permaneceram anos e anos com ilusões a respeito do PT: Convergência Socialista (seguidora do argentino Nahuel Moreno), Organização Socialista Internacionalista (seguidora de Pierre Lambert, da França), Causa Operária (ligada ao grupo de Altamira da Argentina), Democracia Socialista (seguidora brasileira de Pablo e Mandel, lideres do Secretariado Unificado). [6]

Durante todos esses anos, de Sarney a FH,c o grande capital utilizou o Estado brasileiro como instrumento da acumulação capitalista da forma mais devastadora, conduzindo a população a níveis de miséria similares àqueles dos países mais pobres da América Latina. A imensa dívida pública brasileira é expressão máxima desse processo de utilização do Estado. Como dizia Marx, no capítulo XXIV de O capital, a dívida pública é a única parte da riqueza nacional que é socializada, isto é, paga por toda a população e foi isto que ocorreu nestes últimos anos no Brasil. Porém, isso só foi possível, impunemente, graças ao PT e à CUT que desviaram todas as tentativas de oposição para ilusões parlamentares e eleitorais. E, de fato, tiveram grande sucesso nesse caminho: elegeram cada vez mais vereadores, prefeitos, deputados, governadores, até que, finalmente, em 2002, venceram as eleições presidenciais e chegaram ao governo federal.

Mas, por que e para quê chegaram ao governo federal? Certamente, não para iniciar uma transição socialista: o socialismo já fora esquecido há alguns anos, se é que algum dia ele foi realmente parte do projeto do setor majoritário do PT. [7] Os petistas, então, chegaram ao poder para realizar as transformações burguesas que os outros não fizeram? Pensamos que nem sequer isso foi proposto ou projetado seriamente. Fora a retórica vazia, os petistas chegaram ao governo federal apenas para continuar e preservar a mesma forma de dominação burguesa destas duas últimas décadas. Tarefa esta, em 2003, já difícil para qualquer coligação burguesa tradicional. Somente o PT e a CUT podiam cumprir a continuidade dessa forma de dominação. Somente um governo semi-bonapartista, com características de frente-popular, podia permitir a continuidade dessa política econômica devastadora (continuar a pagar a dívida externa, continuar a praticar os juros mais altos do mundo, manter um superávit primário acima de 4% do Produto Interno Bruto, cortando, assim, sempre, mais e mais, os gastos com educação, saúde e políticas sociais). Para isso o governo Lula galgou o poder. O PT, graças a sua ampla base social e sindical, era a única opção que permitiria a continuidade desse ciclo da dominação burguesa no Brasil. O grande capital financeiro sabia disso e, por isso mesmo, apostou no PT. [8]

A nova "casta"

Inicialmente, o novo governo conseguiu realizar a reforma da previdência, atacando as conquistas do funcionalismo. Chegou a anunciar a reforma trabalhista e preparar a reforma universitária, reformas todas voltadas para os cortes de gastos sociais e obedecendo a recomendações do FMI. Após dois anos, no entanto, as novas contradições começaram a aflorar. O PT e a CUT mostraram-se como poderosa casta parasitária dentro do Estado, uma casta muito maior e mais custosa (pela sua própria extensão social) do que qualquer oligarquia que nesses anos intermediava o poder do grande capital no Estado brasileiro. Este é o ponto de implosão da atual crise. O setor majoritário do PT e da CUT passou a engolir uma fatia imensa da mais-valia extraída dos trabalhadores. A burocracia petista e cutista é numericamente muito maior do que a oligarquia do Norte e Nordeste, assim como, muito mais extensa do que a tecno-burocracia do PSDB e de qualquer grupo partidário burguês, provocando maiores contradições na luta inter-burguesa pelo controle do Estado.

A burocracia petista-cutista, como casta parasitária, se eleva com projetos e interesses próprios. Para realizar seus objetivos de perpetuar-se no poder e realizar os seus desejos privados de apropriação, ainda por cima, reativou parte da antiga oligarquia política (Sarney, Renan, Jefferson e outros ex-sócios de Fernando Collor) e aliou-se aos mais corruptos partidos de direita (PP, PL, PTB). A luta pela utilização do Estado brasileiro, para fins exclusivamente privados, virou uma luta de vida ou morte entre setores da própria burguesia. A corrupção que se manifestara em Santo André a nível municipal apareceu a nível nacional. [9]

Escândalos se sucederam um atrás do outro: primeiro foi Waldomiro Diniz (assessor de José Dirceu, ministro da Casa Civil) envolvido em cobrança de propinas com controladores de jogos de azar; depois apareceram suspeitas de que os cartões de crédito de uso presidencial haviam multiplicado espetacularmente os gastos; logo começaram a aparecer licitações fraudulentas de contratos públicos; depois manipulações das aplicações nos fundos de pensão de empresas estatais; a seguir, ocorreu a vitória na eleição para presidente da Câmara Federal de Deputados do inexpressivo Severino Cavalcanti, deputado corrupto e da extrema direita.

Todos esses e outros fatos similares foram se sucedendo, formando elos de uma mesma cadeia que explodiu com as denúncias do deputado R. Jefferson: o PT subornava mensalmente ( com cerca de R$ 50.000,00 para cada um) os deputados dos diversos partidos para que votassem a favor de projetos do governo. Ora, de onde viria tanto dinheiro, senão do desvio de dinheiro público?

Começaram a surgir mais escândalos envolvendo as diversas empresas estatais, como a empresa estatal dos Correios, tudo isso vinculado a esquemas espetaculares de bancos privados e empresas de publicidade, que distribuíam mensalmente malas de dinheiro a deputados. Os escândalos já derrubaram o ministro José Dirceu—principal liderança do PT e do governo Lula, o ministro Gushiken- assessor direto de Lula, assim como o presidente do PT, José Genoíno e toda cúpula do partido, incluindo aqui o tesoureiro, Delúbio Soares, que seria o grande articulador de todo o processo financeiro. [10]

Certamente, todos esses fenômenos são elos de uma única cadeia. Todos esses fatos juntos expressam uma forma privada extrema de utilização do Estado brasileiro para fins do grande capital, uma forma apoiada em uma casta burocrático-sindical traidora do proletariado. Empresários viajavam pelo mundo (África, China, Europa) com o presidente Lula, acompanhados, às vezes, do tesoureiro do PT, Delúbio Soares (o homem que manipulava o dinheiro da enorme estrutura corporativa do PT). Todos faziam grandes negócios à custa da população brasileira. No balcão de negócios que virou o Estado brasileiro, a Sadia, empresa privada exportadora de alimentos do ministro Luiz Fernando Furlan, obtém lucros fantásticos juntamente com o agro-negócio exportador do ministro Roberto Rodrigues, detentor da pasta da agricultura. Os bancos, graças aos juros altíssimos, multiplicam os seus lucros em até 200%. Realiza-se, assim, uma espécie de acumulação originária, "com lama e sangue por todos os lados" (como dizia Marx), à custa da população brasileira.

Fim de um ciclo de 25 anos

Ainda que Lula sobreviva a este processo, o que parece dia a dia mais remoto, com o desgaste da crise, dificilmente o PT vencerá as eleições presidenciais de 2006. Por outro lado, com esse profundo desgaste do PT e da CUT, seria ainda possível girar para trás a história? Seria possível, como se nada houvesse acontecido, eleger uma coligação burguesa PSDB-PFL ou algo similar? Sim, claro que esta possibilidade não deve ser afastada. Mas, se isto é possível, essa ou outra coligação burguesa não poderá governar o país da mesma maneira e com a mesma tranqüilidade.

Diante das contradições objetivas, ninguém poderá mais governar o Brasil da mesma maneira e aplicando tais níveis de exploração. Pois, quem bloqueará as massas após a grande derrocada do PT e da CUT? Seria algum novo partido pequeno burguês, tal como o Partido do Socialismo e da Liberdade (PSOL), composto de dissidentes do PT? Não acreditamos! Suas bases sindicais são muito fracas, quase todas concentradas no funcionalismo público, ao contrário do PT que surgiu em 1980 no movimento metalúrgico e a partir de grandes greves operárias. Nada parece poder ocupar o espaço deixado pela falência do PT e da CUT. Quem impedirá, então, o desencadear objetivo de um grande movimento revolucionário de massas no Brasil? Hoje está posta a problemática da construção de um partido revolucionário no Brasil.

Notas:
[1] No sentido dado a essa expressão pela III Internacional: ou seja, a burguesia compradora é composta por setores nacionais corruptos que atuam como intermediários do grande capital internacional.
[2] F. Weffort, sociólogo e célebre professor universitário, foi fundador do PT e seu secretário-geral por alguns anos. Quando FHC venceu as eleições presidenciais, abandonou o PT e assumiu cargo de ministro da cultura do novo governo.
[3] Antônio Carlos Magalhães era o presidente do Senado e o seu filho, Luís Eduardo, era o presidente da Câmara Federal.
[4] O movimento que levou ao impeachment de Collor, apesar de ter uma participação de massas, foi totalmente controlado pelos setores burgueses, jamais podendo ser considerado como um risco para a classe dominante.
[5] Trata-se da central sindical fundada quase conjuntamente ao PT, sempre dominada por sindicalistas vinculados ao núcleo metalúrgico fiel a Lula, ou setores aliados do sindicato dos bancários ou professores secundaristas.
[6] Observe-se que o grupo de Lambert, a OSI, hoje insignificante, continua no PT. Desta organização saíram boa parte dos principais quadros do PT e do governo Lula: ministro Gushiken, ministro Palocci (da Economia), Glauco Arbix (presidente do IPEA) e muitos outros quadros médios (todos abandonaram o trotsquismo, evidentemente, há muito tempo). A Democracia Socialista, como se sabe, ainda permanece no PT e é representada no ministério Lula pelo ministro da Reforma Agrária, Miguel Rosseto.
[7] Lula, logo após vitória eleitoral, chegou a confessar: "nunca fui de esquerda".
[8] Lembremos que uma das primeiras medidas de Lula foi nomear como presidente do Banco Central a Henrique Meireles (ex-presidente mundial do Banco de Boston e membro do PSDB, partido de FHC).
[9] Santo André é pequena cidade industrial administrada pelo PT. Em 2003, o prefeito petista Celso Daniel foi assassinado. Na época, investigava-se processo de corrupção que envolvia a prefeitura e as empresas de transporte da cidade. Hoje, levantam-se suspeitas que o prefeito teria sido assassinado por petistas envolvidos em processo de comissões. Suspeita-se que José Dirceu, até pouco tempo, o principal ministro de Lula, esteja envolvido. Em processo similar, o prefeito de Campinas, o Toninho do PT, foi assassinado e jamais foi esclarecido tal crime.
[10] Somente um publicitário, Marcos Valério, que teria sido o agente intermediário do PT, hoje cobra ao partido uma dívida de cerca de 100 milhões de reais, ou seja, cerca de 40 milhões de dólares.