A profunda crise que se desenvolve no governo do Partido dos
Trabalhadores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva marca
o fim de um longo ciclo da dominação burguesa no
Brasil, inaugurado pela queda da ditadura militar, há mais
de vinte anos.
Com a retirada dos militares, após vinte anos de ditadura,
no início da década de 80, abria-se um novo ciclo
de dominação burguesa no Brasil: setores da oligarquia
conservadora e corrupta do Norte e Nordeste do país passaram
a ter hegemonia no Estado brasileiro. Ex-aliados dos militares,
políticos como José Sarney, Collor de Melo, Antônio
Carlos Magalhães e Inocêncio de Oliveira, passaram
a ser os "sócios" majoritários na administração
do Estado brasileiro. Tratava-se já de uma espécie
de "burguesia compradora" que servia como intermediária
ao grande capital em troca de uma fatia da mais-valia que passava
pelo Estado. [1]
Veio depois o primeiro governo do intelectual Fernando Henrique
Cardoso. Parecia algo novo. Alegava pretender romper com esse
"modelo arcaico" de utilização do Estado.
Falava-se em "modernizar" o Estado brasileiro e até
em realizar uma "revolução burguesa" no
Brasil, como chegou a escrever Francisco Weffort. [2] Em artigo
escrito naquela época, Weffort justificava a sua traição
ao PT, anunciando que FH,c com os seus quadros saídos das
principais universidades brasileiras, comandaria transformações
estruturais no país, inseriria o Brasil no processo da
globalização, superaria as estruturas arcaicas e
garantiria um espaço honroso para o país no cenário
internacional.
Ora, durante todo o primeiro mandato de FH,c nada do que se
prometera foi realizado, permanecendo o presidente como refém
do PFL (partido de direita) com o qual se aliara para obter maioria
no Congresso. Antonio Carlos Magalhães, conservador senador
do estado da Bahia, em certa época, chegou a controlar
o Senado e a Câmara Federal conjuntamente. [3] FHC nada
realizava de novo Seria algo temporário? A agenda "modernizadora"
e "revolucionária" seria cumprida no segundo
mandato? Grande ilusão. Na metade do segundo mandato presidencial,
quando FHC conseguiu finalmente reduzir o poder da velha oligarquia
do Norte e Nordeste, libertando-se de Magalhães e reduzindo
o poder de Sarney, a crise econômica se encarregou de bloquear
qualquer cumprimento das metas "modernizadoras" e o
governo terminou, sem nada realizar, mais prisioneiro ainda do
capital internacional e do FMI.
Ao final de oito anos de governo, FHC e os quadros universitários
do PSDB mostraram-se quase tão incapazes como a conservadora
oligarquia nordestina para realizar qualquer reforma mesmo elementar
da sociedade brasileira. O doutor FH,c o grande sociólogo,
teórico da dependência, um dos cérebros dos
economistas do CEPAL, terminava a sua era de poder, melancolicamente,
como a paródia culta dos corruptos Menen (Argentina) e
Fujimori (Peru).
Mas, perguntamos: como foi possível que, após
a retirada dos militares, desaparecendo qualquer amplo processo
de repressão, todos esses governos fracassados e incompetentes
(Sarney, Collor, Itamar Franco e FHC) não tenham sofrido
qualquer oposição mais forte, qualquer movimentação
de massas mais perigosa e conseqüente? [4] Como todos esses
governos puderam aprofundar tanto a miséria e o desemprego,
multiplicar a dívida pública (interna e externa),
explorar os trabalhadores com salários sempre em queda,
sem que surgisse qualquer movimento de massas revolucionário?
O papel do PT e da CUT
Certamente, isso só foi possível graças
ao PT e à CUT (Central Única do Trabalhadores) [5]
que bloquearam, desde os anos 80, o desenvolvimento de um partido
revolucionário no Brasil. Desde os anos 80, com sucesso,
PT e CUT ajudaram a abortar ou, pelo menos retardar, as diversas
tentativas da criação de um partido revolucionário
no Brasil. Como se sabe, os diversos agrupamentos de inspiração
trotsquista permaneceram anos e anos com ilusões a respeito
do PT: Convergência Socialista (seguidora do argentino Nahuel
Moreno), Organização Socialista Internacionalista
(seguidora de Pierre Lambert, da França), Causa Operária
(ligada ao grupo de Altamira da Argentina), Democracia Socialista
(seguidora brasileira de Pablo e Mandel, lideres do Secretariado
Unificado). [6]
Durante todos esses anos, de Sarney a FH,c o grande capital
utilizou o Estado brasileiro como instrumento da acumulação
capitalista da forma mais devastadora, conduzindo a população
a níveis de miséria similares àqueles dos
países mais pobres da América Latina. A imensa dívida
pública brasileira é expressão máxima
desse processo de utilização do Estado. Como dizia
Marx, no capítulo XXIV de O capital, a dívida
pública é a única parte da riqueza nacional
que é socializada, isto é, paga por toda a população
e foi isto que ocorreu nestes últimos anos no Brasil. Porém,
isso só foi possível, impunemente, graças
ao PT e à CUT que desviaram todas as tentativas de oposição
para ilusões parlamentares e eleitorais. E, de fato, tiveram
grande sucesso nesse caminho: elegeram cada vez mais vereadores,
prefeitos, deputados, governadores, até que, finalmente,
em 2002, venceram as eleições presidenciais e chegaram
ao governo federal.
Mas, por que e para quê chegaram ao governo federal?
Certamente, não para iniciar uma transição
socialista: o socialismo já fora esquecido há alguns
anos, se é que algum dia ele foi realmente parte do projeto
do setor majoritário do PT. [7] Os petistas, então,
chegaram ao poder para realizar as transformações
burguesas que os outros não fizeram? Pensamos que nem sequer
isso foi proposto ou projetado seriamente. Fora a retórica
vazia, os petistas chegaram ao governo federal apenas para continuar
e preservar a mesma forma de dominação burguesa
destas duas últimas décadas. Tarefa esta, em 2003,
já difícil para qualquer coligação
burguesa tradicional. Somente o PT e a CUT podiam cumprir a continuidade
dessa forma de dominação. Somente um governo semi-bonapartista,
com características de frente-popular, podia permitir a
continuidade dessa política econômica devastadora
(continuar a pagar a dívida externa, continuar a praticar
os juros mais altos do mundo, manter um superávit primário
acima de 4% do Produto Interno Bruto, cortando, assim, sempre,
mais e mais, os gastos com educação, saúde
e políticas sociais). Para isso o governo Lula galgou o
poder. O PT, graças a sua ampla base social e sindical,
era a única opção que permitiria a continuidade
desse ciclo da dominação burguesa no Brasil. O grande
capital financeiro sabia disso e, por isso mesmo, apostou no PT.
[8]
A nova "casta"
Inicialmente, o novo governo conseguiu realizar a reforma da
previdência, atacando as conquistas do funcionalismo. Chegou
a anunciar a reforma trabalhista e preparar a reforma universitária,
reformas todas voltadas para os cortes de gastos sociais e obedecendo
a recomendações do FMI. Após dois anos, no
entanto, as novas contradições começaram
a aflorar. O PT e a CUT mostraram-se como poderosa casta parasitária
dentro do Estado, uma casta muito maior e mais custosa (pela sua
própria extensão social) do que qualquer oligarquia
que nesses anos intermediava o poder do grande capital no Estado
brasileiro. Este é o ponto de implosão da atual
crise. O setor majoritário do PT e da CUT passou a engolir
uma fatia imensa da mais-valia extraída dos trabalhadores.
A burocracia petista e cutista é numericamente muito maior
do que a oligarquia do Norte e Nordeste, assim como, muito mais
extensa do que a tecno-burocracia do PSDB e de qualquer grupo
partidário burguês, provocando maiores contradições
na luta inter-burguesa pelo controle do Estado.
A burocracia petista-cutista, como casta parasitária,
se eleva com projetos e interesses próprios. Para realizar
seus objetivos de perpetuar-se no poder e realizar os seus desejos
privados de apropriação, ainda por cima, reativou
parte da antiga oligarquia política (Sarney, Renan, Jefferson
e outros ex-sócios de Fernando Collor) e aliou-se aos mais
corruptos partidos de direita (PP, PL, PTB). A luta pela utilização
do Estado brasileiro, para fins exclusivamente privados, virou
uma luta de vida ou morte entre setores da própria burguesia.
A corrupção que se manifestara em Santo André
a nível municipal apareceu a nível nacional. [9]
Escândalos se sucederam um atrás do outro: primeiro
foi Waldomiro Diniz (assessor de José Dirceu, ministro
da Casa Civil) envolvido em cobrança de propinas com controladores
de jogos de azar; depois apareceram suspeitas de que os cartões
de crédito de uso presidencial haviam multiplicado espetacularmente
os gastos; logo começaram a aparecer licitações
fraudulentas de contratos públicos; depois manipulações
das aplicações nos fundos de pensão de empresas
estatais; a seguir, ocorreu a vitória na eleição
para presidente da Câmara Federal de Deputados do inexpressivo
Severino Cavalcanti, deputado corrupto e da extrema direita.
Todos esses e outros fatos similares foram se sucedendo, formando
elos de uma mesma cadeia que explodiu com as denúncias
do deputado R. Jefferson: o PT subornava mensalmente ( com cerca
de R$ 50.000,00 para cada um) os deputados dos diversos partidos
para que votassem a favor de projetos do governo. Ora, de onde
viria tanto dinheiro, senão do desvio de dinheiro público?
Começaram a surgir mais escândalos envolvendo
as diversas empresas estatais, como a empresa estatal dos Correios,
tudo isso vinculado a esquemas espetaculares de bancos privados
e empresas de publicidade, que distribuíam mensalmente
malas de dinheiro a deputados. Os escândalos já derrubaram
o ministro José Dirceuprincipal liderança
do PT e do governo Lula, o ministro Gushiken- assessor direto
de Lula, assim como o presidente do PT, José Genoíno
e toda cúpula do partido, incluindo aqui o tesoureiro,
Delúbio Soares, que seria o grande articulador de todo
o processo financeiro. [10]
Certamente, todos esses fenômenos são elos de
uma única cadeia. Todos esses fatos juntos expressam uma
forma privada extrema de utilização do Estado brasileiro
para fins do grande capital, uma forma apoiada em uma casta burocrático-sindical
traidora do proletariado. Empresários viajavam pelo mundo
(África, China, Europa) com o presidente Lula, acompanhados,
às vezes, do tesoureiro do PT, Delúbio Soares (o
homem que manipulava o dinheiro da enorme estrutura corporativa
do PT). Todos faziam grandes negócios à custa da
população brasileira. No balcão de negócios
que virou o Estado brasileiro, a Sadia, empresa privada exportadora
de alimentos do ministro Luiz Fernando Furlan, obtém lucros
fantásticos juntamente com o agro-negócio exportador
do ministro Roberto Rodrigues, detentor da pasta da agricultura.
Os bancos, graças aos juros altíssimos, multiplicam
os seus lucros em até 200%. Realiza-se, assim, uma espécie
de acumulação originária, "com lama
e sangue por todos os lados" (como dizia Marx), à
custa da população brasileira.
Fim de um ciclo de 25 anos
Ainda que Lula sobreviva a este processo, o que parece dia
a dia mais remoto, com o desgaste da crise, dificilmente o PT
vencerá as eleições presidenciais de 2006.
Por outro lado, com esse profundo desgaste do PT e da CUT, seria
ainda possível girar para trás a história?
Seria possível, como se nada houvesse acontecido, eleger
uma coligação burguesa PSDB-PFL ou algo similar?
Sim, claro que esta possibilidade não deve ser afastada.
Mas, se isto é possível, essa ou outra coligação
burguesa não poderá governar o país da mesma
maneira e com a mesma tranqüilidade.
Diante das contradições objetivas, ninguém
poderá mais governar o Brasil da mesma maneira e aplicando
tais níveis de exploração. Pois, quem bloqueará
as massas após a grande derrocada do PT e da CUT? Seria
algum novo partido pequeno burguês, tal como o Partido do
Socialismo e da Liberdade (PSOL), composto de dissidentes do PT?
Não acreditamos! Suas bases sindicais são muito
fracas, quase todas concentradas no funcionalismo público,
ao contrário do PT que surgiu em 1980 no movimento metalúrgico
e a partir de grandes greves operárias. Nada parece poder
ocupar o espaço deixado pela falência do PT e da
CUT. Quem impedirá, então, o desencadear objetivo
de um grande movimento revolucionário de massas no Brasil?
Hoje está posta a problemática da construção
de um partido revolucionário no Brasil.
Notas:
[1] No sentido dado a essa expressão pela III Internacional:
ou seja, a burguesia compradora é composta por setores
nacionais corruptos que atuam como intermediários do grande
capital internacional.
[2] F. Weffort, sociólogo e célebre professor universitário,
foi fundador do PT e seu secretário-geral por alguns anos.
Quando FHC venceu as eleições presidenciais, abandonou
o PT e assumiu cargo de ministro da cultura do novo governo.
[3] Antônio Carlos Magalhães era o presidente do
Senado e o seu filho, Luís Eduardo, era o presidente da
Câmara Federal.
[4] O movimento que levou ao impeachment de Collor, apesar de
ter uma participação de massas, foi totalmente controlado
pelos setores burgueses, jamais podendo ser considerado como um
risco para a classe dominante.
[5] Trata-se da central sindical fundada quase conjuntamente ao
PT, sempre dominada por sindicalistas vinculados ao núcleo
metalúrgico fiel a Lula, ou setores aliados do sindicato
dos bancários ou professores secundaristas.
[6] Observe-se que o grupo de Lambert, a OSI, hoje insignificante,
continua no PT. Desta organização saíram
boa parte dos principais quadros do PT e do governo Lula: ministro
Gushiken, ministro Palocci (da Economia), Glauco Arbix (presidente
do IPEA) e muitos outros quadros médios (todos abandonaram
o trotsquismo, evidentemente, há muito tempo). A Democracia
Socialista, como se sabe, ainda permanece no PT e é representada
no ministério Lula pelo ministro da Reforma Agrária,
Miguel Rosseto.
[7] Lula, logo após vitória eleitoral, chegou a
confessar: "nunca fui de esquerda".
[8] Lembremos que uma das primeiras medidas de Lula foi nomear
como presidente do Banco Central a Henrique Meireles (ex-presidente
mundial do Banco de Boston e membro do PSDB, partido de FHC).
[9] Santo André é pequena cidade industrial administrada
pelo PT. Em 2003, o prefeito petista Celso Daniel foi assassinado.
Na época, investigava-se processo de corrupção
que envolvia a prefeitura e as empresas de transporte da cidade.
Hoje, levantam-se suspeitas que o prefeito teria sido assassinado
por petistas envolvidos em processo de comissões. Suspeita-se
que José Dirceu, até pouco tempo, o principal ministro
de Lula, esteja envolvido. Em processo similar, o prefeito de
Campinas, o Toninho do PT, foi assassinado e jamais foi esclarecido
tal crime.
[10] Somente um publicitário, Marcos Valério, que
teria sido o agente intermediário do PT, hoje cobra ao
partido uma dívida de cerca de 100 milhões de reais,
ou seja, cerca de 40 milhões de dólares.